Há certo tudo-ou-nada intelectual que confunde a linha das semelhanças com a identidade absoluta. Ora, a identidade só a temos entre nós e nós mesmos. A linha das identificações, percorre-se juntamente aos demais indivíduos e grupos deles.
O ponto de contato não é o signo de alguma igualdade absoluta, nem a recomendação de buscá-la. É o ponto de contato, a que se podem ajuntar outros e perceber maiores ou menores similitudes!
Quando fala-se em identificações culturais muitos percebem a escolha desse assunto como se fosse uma proposta ou um desejo. Não é. Trata-se de falar de algo que existe, como existe a vontade de comer ou a necessidade de dormir. Lembro-me, agora, de um episódio de há mais ou menos quinze anos, que vai sumariamente contado de memória.
A aviação naval norte-americana bombardeou a Sérvia, a partir de seus navios porta-aviões no Adriático. Depois da gloriosa missão, as naves atracaram no Pireu e os soldados desembarcaram como sempre o fazem. Ávidos das delícias do chão firme, de uma avidez aumentada pelo gozo dos recentes sucessos destrutivos.
Quem está fremitoso por gozos tende a não calcular bem a receptividade que terá por terceiros, que talvez cultivem outros gostos. Aconteceu que a soldadesca norte-americana pensasse que sua missão era indiscutivelmente bem-aventurada e que, portanto, seria celebrada pela receptiva população ateniense.
E aconteceu exatamente o contrário. Não somente os atenienses não os recebiam como a heróis de festa e descanso merecidos, como entraram em conflitos físicos com eles e lhes deram muitos sopapos. Se fossem gente mais atenta à história e à cultura, saberiam que não se matam sérvios e depois se confraterniza com gregos.
Sérvios e gregos são ortodoxos, estiveram sob o mesmo domínio otomano, lamentaram a queda do Patriarcado de Constantinopla, compartiram, enfim, muitas situações. Sérvios e gregos são diferentes e não querem tornar-se uns nos outros. Mas, têm pontos de contato e, embora um grego não seja, não se ache, nem se queira tornar em sérvio, tampouco fará festa com quem vem de matar sérvios.
Isso é identificação cultural e fica evidente – a repetição não é aqui inútil – que não é igualdade nem vontade dela. Imagino que se uma esquadra de qualquer nacionalidade, que acabasse de bombardear Madri, fosse comemorar o feito em Buenos Aires, passaria pelo mesmo que os norte-americanos em Atenas. E não significaria que os portenhos quisessem sem madrilhenos, apenas que há entre eles pontos de contato.
Imagino ainda que uma tropa que viesse de praticar a destruição e o morticínio em Londres não seria recebida com festa em Nova Iorque. E imagino que poucos imaginam os norte-americanos a quererem ser ingleses. É questão de identidades culturais.
Porque esse não é um texto de júbilo nem de instigação à felicidade, vou transbordar uma última imaginação, terrível. Imagino que se uma esquadra viesse de destruir Lisboa e aportasse em qualquer grande cidade brasileira, duas coisas ocorreriam, possivelmente. Ou a indiferença, ou a festa sem limites.
Somos sem raízes mais profundas e por isso não compreendemos quem as tem e as reconhece. Por isso acusamos qualquer busca de pontos de contato de ser vontade de tornar-se o outro. Achando ridículo que pontos de contato hajam, acreditamos nos que não há e, aí sim, transparecemos uma vontade servil de tornarmo-nos em outros que nunca seremos.
Corremos o risco, nós brasileiros, de sermos o povo mais perigoso do mundo, caso continuemos o rumo do enriquecimento que agora seguimos, de par com a profunda superficialidade de meninos mimados que professamos. Porque vamos ao sabor dos ventos, não reconhecemos ponto de contato algum e assim visamos a todos.