Convencionou-se que o consumo de substâncias entorpecentes é algo mau e que se deve, portanto, buscar reduzí-lo. Sistemas como os de bases legais recorrem, então, a leis, para buscarem os objetivos que supostamente são compartilhados pela maioria da coletividade.
Ocorre que tanto as causalidades, quanto as finalidades entendidas em cadeia levam à confusão, quase sempre pela inserção de um elemento moralizante que nada tem a ver com a objetividade que supostamente conduziria a fixação de objetivos.
Especificamente com relação às substâncias entorpecentes, o problema estaria em que levariam a maior propensão delitiva, além de maiores custos de seguridade e saúde públicas. Essas consequências do consumo de entorpecentes ilícitos são bastante discutíveis e partir de números pode-se chegar às mais diversas conclusões, a depender do que se enfatiza.
Para quem pense destravadamente, o consumo de substâncias ilícitas, por si só, é quase um nada, em quase todos os termos em que se o considere, desde que não se insiram elementos moralizantes e confusões causais seletivas.
Proibir-se o consumo de qualquer coisa não encontra razões objetivas, exceto sob a ótica de quem as vende e de quem lava o dinheiro envolvido, além, é claro, dos interesses de quem se deixa subornar.
O interessante, nisso da proibição de entorpecentes ilícitos, é que ela atende apenas aos anseios moralizantes de quem não quer que algo aconteça, por várias razões que não têm a mínima objetividade. Além de servir a nada além que algo semelhante a querer que a cor amarela não exista, não serve aos objetivos que os anseios moralizantes declaram como capa de suas intenções.
Se a intenção é reduzir criminalidade – inclusive aquela contra as regras da circulação e guarda das riquezas – é de clareza do céu algarvio que muito melhor é a supressão de todas as proibições.
Do ponto de vista da teoria criminal, a autolesão – se ela acontece – não é punível, porque inapta a gerar danos que extrapolem o indivíduo. Daí que é profundamente contraditório o discurso pietista da proteção do indivíduo à revelia da vontade dele, exatamente para o defender. É contraditório e até meio ridículo, porque esse pietismo tem raízes liberais e volta seu discurso para o indivíduo.
O pietismo coletivizante, esse é ditatorial e anti-liberal, porque quer limitar o indivíduo no que se crê ser autolesivo, a bem dos outros. Aqui, a contradição redobra-se.
Ou seja, ambos os pietismos moralizantes a embasarem o discurso da proibição ao consumo disto e daquilo são formas de defender vontades de que algo não aconteça, independentemente de porquê o queiram. E, certamente, este porquê nada tem a ver com cálculos objetivos de finalidades a apontarem que as proscrições são eficazes contra algo que a sociedade julga indesejável.
É algo menos que óbvio que a maior parte da sociedade reputa, sinceramente, desejável que haja o mínimo de criminalidade. Por isso, apostando tudo na crença meio ingênua no sujeito livre e inteligente, acreditou-se que sendo o homicídio indesejável, fosse desejável prever para ele uma punição de privação de liberdade ou de vida.
Haverá quem deixe de matar por medo de perder a liberdade ou a vida e provavelmente o números desses é maior que o daqueles que matarão sem medo de qualquer coisa. A maior parte dos criminosos, a enorme maior parte, não se compõe de loucos ou gênios para que a punição não pesa como ameaça. Por isso, em linhas bastantes gerais, o sistema criminal tem, de fato, racionalidade.
Com a proibição do consumo de entorpecentes ilegais, a racionalidade está ausente. O meio é ineficaz para a consecução do objetivo formalmente declarado. Três conclusões possíveis emergem: ou a escolha deu-se por profunda burrice; ou por profunda desonestidade; ou pela mistura das duas precedentes.
Quando temos duas faces de um discurso, ambas contraditórias com as duas maiores linhas ideológicas de pensamento, certamente estamos diante de um grande negócio, âmbito em que vicejam os discursos cujo nível de oportunismo transborda em contradições sem com isso preocupar-se.
O que há é um tremendo negócio, com várias agências governamentais envolvidas – ópio, cocaína, entorpecentes sintéticos e etc – vários bancos envolvidos e vários níveis de burocracia estatal repressiva envolvidos: todos a se justificarem e ganharem muito dinheiro. Isso, enquanto o sujeito que pratica a autolesão – se aceitarmos esse conceito meio piegas – nada mais faz que se autolesionar e por isso ser punido!
Quando os dois setores, o acriticamente conservador e o calculadamente predador marcham juntos, provavelmente temos grande mentira alçada a verdade, em detrimento de quem nada mais fez do que fazer o que fazem partes da população desde que o mundo é mundo.
As duas forças sociais mais intensas existentes são a vontade de aniquilar o signo do dominado e a vontade de ganhar dinheiro. A utilização de entorpecentes sempre associou-se à magia, ao misticismo, à percepção não-linear, à tentativa da percepção não mediada pelos parâmetros racionais e convencionais aceitos pelo maior número, ao escâdalo do humano destravado.
Ou seja, mete medo no homem médio, contido e compartimentado nas paredes de meia dúzia de idéias que não se devem a razões físicas, metafísicas, científicas ou anti-científicas. A conservação teme o que há de menos temível, mas assim teria que ser com o maior número, que se não temesse o não perigo, não seria escravo.
Engraçado, mas muito engraçado mesmo, é que este medo, antes de tentar a repressão moralizante, tentou um contraponto quase impossível: a mística, a magia, a não linearidade pseudo-científicas e superficiais. É por isso que o conservadorismo médio, conservador e moralizante, nunca percebeu que algumas gnoses, algumas retrações, alguns monaquismos, algumas asceses, nada mais eram que a saída sem o entorpecente, e que elas demandavam algo que por definição foge ao número: conhecimento.
O entorpecido sem entorpecentes – o dos manuais de iluminação – ainda é melhor que o conservador medroso que pede leis. Ele nunca será o que percebeu que os mitos e os ritos são apenas disciplinas, não disciplinas de repetir mantras, mas de conhecer e conhecer, mas ainda são mais que o nazi por nazi e nada mais.
Descendo aos rés-do-chão, o sujeito que entrega seu tempo – não digo entregar seus neurônios, porque isso não acontece – a dizer que usuário disso ou daquilo deve ser punido porque é ameaça à paz pública, é o sujeito que, burro, por um lado, e medroso dos pobres, por outro, não encontra outra maneira de exigir que o mundo á sua volta seja à sua imagem e semelhança.
Todos ou quase todos negam, mas é fortíssima a rejeição à forma de trajar-se diversa, à forma de falar diversa, à forma de perceber diversa. Isso ameaça o mundo do sujeito que precisa viver ameaçado.
Retornando ao início, é desejável que as pessoas delinquam menos contra as vidas e patrimônios alheios, é preciso que se sofram menos agressões contra vida e patrimônio próprios. O que nisso implica haver substâncias entorpecentes ilícitas e quem as use? Implica que haverá, pela ilogicidade adotada, estruturas que reprimam esses usos.
Haverá, delcaradamente, estruturas que visem a reprimir os tais consumos. Mas, porque elas só agem contra os consumidores, que, em perspectiva liberal, nada mais fazem que atuar dentro de suas liberdades?