Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Tag: Golpe de Estado

Todos contra todos.

A contradição aparente permeia os processos desenvolvidos na dinâmica do espetáculo. No seu aspecto funcional, mostra-se muito óbvia: acrescenta camadas de confusão e, principalmente, de confusão cambiante. Cumpre, pois, a importante função de impedir ou, no mínimo, dificultar a percepção clara dos acontecimentos.

Porém, essas contradições são reais também, mesmo não deixando de ser aparentes. Conforme se as observe de perspectiva dinâmica ou estática, elas mostram-se aparentes ou reais, pois têm essas duas faces. Advirto que aparente não é o contrário de real, ou seja, não estou propondo uma oposição entre existência e inexistência, até porque à inexistência nada se opõe.

No processo em que se desenvolve o golpe de Estado no Brasil, parece ter-se chegado à fase da guerra interna total, do todos contra todos. Como supõe-se que os grupos envolvidos estão unidos para a consecução do fim, surge perplexidade quando suas comunhões de interesses mostram-se relativamente frágeis.

Na verdade, há três grandes grupos, ou linhas de atuação, que agem paralelamente e ajudam-se mutuamente em várias ocasiões. Porém, embora em última análise todos sirvam a um mesmo comando central, não é verdadeiro que suas relações sejam isentas de conflitos.

A finalidade primária do golpe de Estado é entregar aos estrangeiros as reservas de petróleo brasileiras e, subsidiariamente, desmontar outras articulações da soberania nacional, como as pesquisas nucleares e o reequipamento das forças armadas. Isso, em suma, é o que importa ao comando central do golpe, que não está no Brasil.

De certa forma, é possível afirmar a preponderância, entre os grupos operadores internos, da imprensa tradicional. Ela é que desencadeia os processos de destruição seletiva de pessoas ou grupos e ela é que protege também seletivamente pessoas e grupos. Ou seja, é o grupo agente mais ativamente definidor de estratégias e, por isso mesmo, o que mantém ligações mais estreitas com o comando externo.

A imprensa tradicional articula-se muito intimamente ao setor financeiro internacionalizado, ao mesmo tempo em que suga avidamente recursos públicos para suprir suas necessidades de fluxos de caixa. Sem publicidade estatal, estariam todos os principais meios golpistas impressos ou televisivos à beira da quebra.

Os grupos judicial e político, em condições ideais, conduziriam uma operação de destruição controlada dos representantes de interesses nacionalistas. Isto, porém, não foi possível. Dois fatores subjazem a esta impossibilidade: a enorme permeabilidade dos interesses políticos e o farisaísmo profundo de muitos agentes do grupo jurídico. Estas condições complicaram o processo.

A complicação do processo golpista, que em muito transmudou-se em algo pior que os célebres processos históricos de expurgos – inquisição católica, terror diretoriano e expurgos de Estaline são exemplos recentes – apresenta um sério problema para os grupos político e judicial, que podem ser inteiramente tragados na esquizofrenia que eles mesmos geraram. Para os interesses externos, contudo, isso não representa problemas; bem ao contrário, o caos serve-lhes bem.

Os grupos que vivem da institucionalidade, seja ela legal ou em fraude à lei, dependem de um mínimo de previsibilidade, algo que foi sumariamente afastado e deu lugar à lógica da espiral persecutória, em que se vive o hoje puro, como prévia de um amanhã inconcebível e incognoscível. É, de fato, estranho e contraditório que grupos dependentes do Estado trabalhem com afinco para a destruição deste Estado.

A única forma de superação das contradições é por meio da política, que não é atividade de santos nem de bandidos.

O grande capital não é o único poder.

Com relação ao golpe de Estado que se processa no Brasil, a ser consumado por meios que lhe conferem aparências de formalidade, muitos começam a dizer que não ocorrerá porque não interessa ao grande capital nacional.

Esta negação parte da premissa – muito sedutora e difundida – de que o grande capital é a única coisa a basear o poder. Chamam-no base do poder real, esteio deste a agir por intermédio de vários delegados nas estruturas do Estado e na imprensa. Isso é, em grande parte, verdadeiro. Não de todo, nem em todas as épocas, todavia.

O dinheiro não é sempre e em todas as épocas o maior poder social, mesmo sendo a grande força de cooptação de estruturas burocráticas e da imprensa. Corporações e grupos de interesse que vivem à margem do Estado apresentam dinâmicas próprias e nem sempre é possível guiar-lhes os passos estritamente. Sempre há alguma imprevisibilidade.

É óbvio que para o grande capital nacional e para partes do capital estrangeiro com interesses no Brasil não interessa o golpe de Estado, pelo caos subsequente que trará. De regra – exceto para a grandíssima finança – a desorganização e a insegurança que dela resulta não são coisas boas. Reduz os ganhos, evidentemente.

Acontece, por outro lado, que o processo de semeadura do fascismo na pequena burguesia já dá bons frutos. Bons são os semeadores e boa a terra que cultivaram. Chegou-se a um ponto de não retorno e a imprensa não pode simplesmente passar a desdizer todo o discurso de ódio e estupidez que fez nos últimos quatorze anos.

Nem a imprensa por seus donos pode fazer isso agora – porque o ódio pequeno burguês voltar-se-ia contra eles – nem os seus empregados editorialistas e jornalistas querem desdizer-se, porque são como os vendedores de cocaína viciados nela. Eles acreditam nas tolices e brutalidades que dizem, enfim.

Por isso, mesmo que o grande capital não tenha sob uma perspectiva lógica interesse no golpe, será muito difícil, a estas alturas do processo, travá-lo. Por outro lado, se perceber que a coisa está consumada, o grande capital não verá grandes problemas em pagar os custos da readequação e partirá para compensá-los com mais espoliação financeira.

O fato terrível é que tiraram do baú um grande poder e poder descontrolado: a fúria moralizante dos que tudo ignoram e pensam a partir de notícias de televisão. Esse poder é dificílimo de arrefecer antes de entrar em reação em cadeia. Historicamente, seu controle só é possível com ditaduras…

O decadentismo sabe a sangue e cheira a carne queimada. Ou, como na Ucrânia decorre a mais estúpida provocação em sessenta anos.

Uma maneira de exorcizar a morte é matar por deleite na estética da destruição. Outras, para os mais capazes, são a crônica e a poesia. Claro que capacidade, aqui, é termo de ambiguidade proposital, posto que pode significar falta de alternativas.

Boccaccio exorciza a peste a descrevê-la e seria para além de suas capacidades e sem efeito estético elevado tentar fazê-lo a matar. A Peste já matava demasiado e com feiura difícil de atingir por ofício humano…

A decadência do Império Norte-Americano é das coisas mais medonhas em que me ponho ocasionalmente a pensar.

Escrever sobre ela deve ser pelas beiradas, com receio do concreto, com analogias desconfiadas, simbolismos, sem cair na tentação de crer nas analogias, sem pensar em Roma.

O decadentismo do governo norte-americano do mundo parece, inicialmente, algo improvável e até contraditório, porque aceitou-se o lugar-comum do povo recente, do caldeirão fervente em que várias culturas e idades tornar-se-iam homogêneas.

Se isto pode ter alguma veracidade relativamente ao povo, nada tem de verídico relativamente aos governantes. Estes últimos são a gente mais velha do mundo atual, exceptuando-se os asiáticos, claro. Quem não perceber o que foi no período anterior ficará por achar que mergulho na contradição.

Esses governantes, no início longínquo de milênios, matavam para viver. O ciclo fecha-se quando matam para divertir o medo de morrer.

Fato é que os EUA e seus parceiros europeus, nomeadamente a Alemanha, neste caso, patrocinam a desestabilização selvagem da Ucrânia. Para isso, serviram-se da massa neo-nazista disposta a por abaixo toda Kiev e a trabalhar para meia dúzia de dirigentes e alguns milhões de pequenos-burgueses a sonharem com salários em euros.

A Ucrânia, como algo diferente da Rússia, é invenção recente. A grande Rússia nasce precisamente no principado de Kiev, o primeiro na grande região eslava a tornar-se ortodoxo; Moscou vem depois.

Não sei, sinceramente, se alguém no departamento de estado e no estado-maior percebe o que se pôs em marcha. Não sei se há gente nestes locais com alguma memória do que resultou da instalação dos mísseis nucleares na Turquia, há sessenta anos.

 O Urso tem o segundo maior arsenal dessas maravilhas nucleares, as melhores defesas anti-aéreas que há e tem Putin que, infelizmente, não é imbecil nem trabalha para interesses outros além de russos. Ele não consentirá na instalação de mísseis nucleares norte-americanos na Ucrânia, isso é evidente e devia ser sabido.

Por outro lado, se não foi para instalar mísseis nucleares na Ucrânia que deram o golpe de Estado por meio da agitação das massas filonazistas, então a coisa é muito pior, porque começa a fugir à compreensão tentada a partir de história, geografia, política e lógica.

Realmente, se toda essa fúria destruidora visar apenas a poder comprar produtos alemães na moeda alemã, então os nazistas ucranianos são mais tolos que o comum da tolice nazista e pequeno-burguesa. Porque mediando a passagem do gás russo para a Alemanha, a Ucrânia poderia comprar tudo que quisesse, na sua própria moeda, ou em gás, ou em BTUs, ou em qualquer coisa que não implicasse gastar em marcos alemães e trabalhar por subsalários também em marcos.

Ou seja, qualquer que seja a motivação subjacente à desestabilização da Ucrânia, a coisa é estúpida demais e somente pode atribuir-se a algum senso estético da destruição, do caos, do abandono, da perda absoluta de travas, do gozo da estupidez em forma pura, da inconsequência.

Os governantes norte-americanos são facilmente apreensíveis por esquemas psicologizantes simples. Dizem temer que estes ou aqueles detenham armas nucleares, porque não seriam confiáveis. Dizem isto porque sabem, intimamente, que os menos confiáveis do mundo para deterem armas nucleares são exatamente eles.

Eles foram os únicos a lançarem bombas nucleares sobre pessoas, para nada. São os únicos que iniciam os jogos que podem ter implicações nucleares para o mundo todo, irresponsavelmente. Não é puerilidade, é senilidade.