Já nasci velho e sei bem disso. Sou muito intolerante com certas coisas, embora não seja capaz de matar por elas. Guardo minha intolerância para mim, como àlgum orgulho ou vaidade estóica.

Todavia, é irritante mesmo esse negócio de todos os visitantes d`algum lugar turístico sacarem de suas máquinas fotográficas antes de darem a mais tímida olhadela à volta, antes de mirarem a paisagem, o quadro, a escultura, o prédio, a fachada, o chão…

O tipo entra no local e fotografa! Pronto, reteve na memória digital da máquina aquilo que não parou para reter na memória cerebral dele mesmo.

Não achou belo o objeto fotografado, antes já tinham achado aquilo belo e por isso o tipo foi obrigado a visitar o ponto turístico. Aquilo estava indicado para ele, previamente, portanto era já belo, impositivo e fotografável!

O turista – que sempre é a pessoa normal na sua faceta de turista, portanto uma projeção – é o ser que não pensa. Ele é direcionado a certas coisas, antecipadamente. Não pode perder tempo, tem que cumprir um guia pre-estabelecido.

Isso de tempo até faz algum sentido, pois há que se escolherem coisas para se verem. Mas, não é sinônimo de obtusidade e espírito de manada, necessariamente.

Dou-me ao luxo de viajar sem máquina fotográfica. Minha mania são os mapas. Hoje, dei-me ao luxo de andar sem mapa: um teste. Resultou bem, afagou-me o ego a idéia de ter algum senso de orientação e de ter apreendido bem o mapa atentamente lido na véspera.

Subíamos o Paseig de Gracià. Era óbvio que, cedo ou tarde, veríamos a Casa Batlló. Óbvio, ainda, que mais adiante, sempre para cima, para o norte, veríamos a Casa Milà. Pois bem, as vimos, entramos nelas, percebemos que são lindas, realmente.

O arquiteto Gaudí e a burguesia florescente de Barcelona do princípio do século XX eram grandiosos. Gaudí não fez apenas a reinvenção do gótico, como fez arte-nova peculiaríssima. O homem não se limitou a copiar Paris; ele é melhor que o art-nouveau francês.

Ninguém m´obrigou a entrar nessas casas. Julgava que eram bonitas, por fotografias muitas já vistas. E são belíssimas…

Na Batlló, há efeito semelhante à altura do gótico, ou seja, os pátios internos à volta do elevador obrigam a olhar para cima. Quem olha é recompensado com tonalidades de azul variadas, nos azulejos.

Quem olha para cima é recompensado pelo esforço. Gaudí fez a proporção para que o cérebro do olhador não se baralhe. Ele fez a perspectiva no espaço pouco! As janelas vão se reduzindo à medida que se sobe. Ele criou um ponto de fuga artificial que parece real.

Queria deter-me a olhar para cima, mas vinham vagas de visitantes ansiosos pelo lugar que ocupava, para tirarem fotos!

Que tirem fotos, mas deixem-me olhar antes e olhem antes! No final, fotógrafos de turismos, suas máquinas viram tudo e vocês viram nada.

Paciência… Continua-se a a subir essa avenida que Madri gostava de ter e não tem. O edifício à direita, duas ou três quadras adiante, é um prédio de apartamentos que poderia ser belo de vulgar beleza, como vários ao redor.

Mas, é a Casa Milà, a Pedreira. É, em suma ordem social e econômica, um prédio vulgar: um prédio de apartamentos para as classes altas do início do século XX.

Mas, não é um prédio vulgar porque é novo, diferente de quantos prédios ricos há à volta, todos muito canonicamente belos, mas vulgares…

Não se trata apenas de curvas e de formas naturais ou inspiradas na natureza. Trata-se da inteligência do arquiteto. A natureza – assim simplesmente, como se diz – apareceu para todos, mas poucos foram chamados…

Bem, eu paro a olhar as chaminés no teto da Casa Milà e o que acontece? Acontece que estava parado a olhar e percebi que uma mulher posava para fotografia e seu marido esperava três degraus abaixo, com a máquina pronta, que eu saísse do campo de apreensão da imagem divina.

Não ponho obstáculos às fotografias dos outros, mas o fotógrafo e seu modelo tinham ou julgavam ter direitos sobre minha inclinação contemplativa. Isso assustou-me. Não me meteu medo, mas assustou-me. Fiquei-me, como se lhes dissesse: fodam-se!

O direito do turista a fotografar vem antes do direito do turista a olhar, é isso.