Viajar é bom, desde que não seja a trabalho. Retornar pode ser bom também, mas é sempre meio complicado e trabalhoso. De volta a casa, constato que nada há para comer e beber, além de lembrar da necessidade de desfazer mala e pôr roupa para lavar. Tudo com a pressa de quem vai trabalhar no dia do retorno…

A obrigação de ir ao mercado com pressa é ruim, embora ir ao mercado, para um velho como eu, seja bom. Vou comprar coisas básicas: pão, queijo, fiambre – recuso-me a chamar presunto o que não é – alho, cebolas, tomates, alguma carne, feijões, cerveja. Mesmo rapidamente, o mercado agrada-me.

Chego ao caixa, ainda vazio, e há apenas um cliente na minha frente, na fila. Percebo que a funcionária do caixa conversa animadamente com a funcionária que põe as compras nos sacos, algo que estranhamente perdura por aqui e que deve perdurar, afinal é um emprego a mais.

Conversam sobre o ENEM, que a menina a empacotar as compras tinha feito, no final de semana imediatamente anterior. Era uma segunda feira e o exame ocorrera nos dias anteriores. O ENEM, deve-se explicar rapidamente, é o exame nacional do ensino médio.

Uma coisa tão óbvia quanto tardia; veio substituir o exame vestibular, como meio de seleção para ingresso no ensino superior. Trata-se de exame de avaliação a que se submete quem concluiu o ensino médio, o que antes chamava-se segundo grau. A nota obtida neste exame pode ser usada para concorrer a vagas nas faculdades que o aceitam como meio de seleção. Hoje, quase todas aceitam-no, a provar a eficácia do modelo.

Somado ao Sisu, ele aumentou imensamente as chances de preenchimento de vagas nas universidades, universalizou a concorrência e permitiu menores gastos para os pretendentes ao ingresso nas faculdades. Um só exame permite ao candidato concorrer aos cursos que quiser, no país inteiro, em igualdade de condições com os demais. O exame vestibular feito por cada universidade, para cada curso, era um filtro sociocrático, não meritocrático.

Na sistemática do ENEM e do Sisu, um candidato obtém nota e com ela candidata-se ao que quiser, onde quiser, em disputa com todos os demais, do país inteiro. É a ampla concorrência em forma quase pura.

Mas, retornemos à fila do caixa do supermercado. À minha frente havia um fulano com muitas coisas e ares de preocupação. Não estava contra a, b ou c, especificamente, mas estava preocupado com algo da vida. Esperou passarem todas as compras e pagou. As moças conversavam animadamente.

Atrás de mim estava uma dondoca. É impossível – e seria artificial também – não a caracterizar assim, porque era isto mesmo. Uma senhora jovem, de cabelos pintados a loiro, assim como loiros eram o relógio e os anéis. Vestida para festa, às oito horas da manhã, e com ar de discreta abjeção pela realidade, o que é diferente de distância ou devaneio. Não disfarçava a impaciência, embora não houvesse qualquer demora excessiva, nem fosse crível que tivesse algum compromisso.

Chega a minha vez. A moça do caixa vai passando as compras e logo pergunto à dos sacos se falavam do ENEM. Ela responde imediato que sim. Perguntei das provas. Respondeu-me que as primeiras tinham sido de língua portuguesa, matemática e não sei o que mais. Explicou-me, enfim, quais as provas e a ordem delas. Perguntei se ela tinha se saído bem. Disse-me que sim e continuou a falar, bem tecnicamente, para minha surpresa.

A senhora atrás não se conteve e nisso não deveria haver surpresa. Não se conteve mesmo que a conversa não tenha atrasado o andar da fila. Eu não me propunha a conversar a ponto de retardar a marcha normal de passar produtos, pô-los nos sacos e afinal pagar a conta. Ela não se conteve por conta do fato da moça ter feito o tal ENEM e dele falar com tanto desembaraço.

Virou-se para mim e disse: Esse negócio de ENEM é o fim do mundo, coisa desse governo! Ao que repliquei: Por que, minha senhora?

Continuou – e se dirigia apenas a mim – a dizer: O mérito, o mérito, era vestibular, as vagas dos melhores… isso tira a concorrência.

Respondi: Olha, isso aumenta muito a concorrência. A concorrência agora é todo mundo.

Ela ouve e não compreende, é claro, e segue: O senhor vê que acabaram com a justiça na faculdade.

Perco a paciência: Qual o problema? A moça não deve estudar? É pra ficar sempre onde esteve, não pode melhorar?

Ela: Não, não é isso, ela deve ser premiada pelo esforço!

Eu: Minha senhora, o esforço dela é maior que o meu; que o seu não sei, que não sei o que diabo faz ou estuda ou estudou. O meu mérito é simples: foi ter nascido onde nasci, estudado nos jesuítas, ter sido alfabetizado em três línguas, passado no exame vestibular mais difícil que havia há vinte anos. Só isso. Menos era vagabundagem. E eu não tenho raiva da menina que fez ENEM.

Não pude deixar de acrescentar, em epígrafe: A senhora, com mais méritos que eu, não pode ter medo dessa menina estudar!

Felizmente a dondoca calou-se. Deve ter percebido algo. Pouco é verdade.