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Divindade mesquinha. Ou, no começo, o Homem criou Deus.

Os pontos centrais da idéia de divindade são criação e transcendência. Embora o primeiro ponto não implique logicamente hierarquia, assim admite-se que seja e, portanto, que criadores são superiores a criaturas. Os primeiros sabem perfeitamente bem o que são os segundos; o que farão; quais obras serão as suas.

Esses dois pontos centrais imbricam-se. Convém separá-los, todavia, que mesmo parecidos não são a mesma coisa. Mas, ambos são insistentemente negados nas afirmações mais comuns dos crentes de todos os credos greco-judaicos. As negações têm o mesmo sentido e permitem abordá-las todas conjuntamente.

A divindade greco-judaica é um decalque do pior homem disponível. Ela é, sob esse ponto de vista, construção democrática a reunir muitíssimos caracteres e inclinações, de forma a compor algo que permita pontos de identificação amplos.

É difícil apontar se é o legislador ou é o juiz o pior modelo humano, então reunem-se as duas figuras e tem-se o modelo prototípico em torno a que gira tudo na religiosidade greco-judaica. Ela estrutura-se juridicamente, seus cleros são funções burocráticas de dar regras e interpretações.

Não há maiores dificuldades para perceber que divindades assim criadas – e aqui convém dizer que o serem criadas não lhes retira existência – revestem aspirações de seus criadores e comumente as mais comezinhas. O mesmo sucede com a legislação autorizada por essas divindades, corpo jurídico que desce a minúcias sobre vestimentas e alimentos e, evidentemente, condutas sexuais.

Nada obstante tudo isso seja de humanidade claríssima, é imperioso traçar-lhe genealogia divina e dizer das regras que são emanadas da divindade criadora e transcendente. Entra em cena o absurdo em forma pura: a revelação. Absurdo porque o transcendente nada pode dizer ao intranscendente, pois que romper a incomunicabilidade significa nada mais que negar a própria transcendência.

Todavia, a maior paixão humana não é por dinheiro, sexo ou poder político. A coisa mais sedutora, mais apaixonante, aquela que mais atrai o homem, é o paradoxo, a contradição profunda, o absurdo. Conviria aceitá-lo sem mais arrodeios e entregar-se a este vinho resinado irresistível que nos conduz a celebrar os mistérios porque são misteriosos e nada mais.

Mas, não. Precisamos estruturar as coisas juridicamente, a partir do dogma da estratificação normativa piramidal, assumindo a existência de norma fundamental perene que dá legitimidade às inferiores, deduzidas logicamente por um corpo de especialistas que se ungiram em meio-deuses.

Não é de estranhar-se que o fetiche constitucionalista seja tão forte na parte do mundo inspirada na cultura greco-judaica, afinal todas elas vivem sob estruturas clericais paralelas, uma falando da divindade, outra da constituição. No fundo, legisladores, juízes, padres, rabinos, intérpretes do Corão, pastores, são todos funcionários de um mesmo modelo.

Nessa marcha da insensatez, o normativismo hierarquizado visou e visa sempre a definir algo essencialmente anti-normativo: a natureza humana. Não por humana, mas por natural, ela é inapreensível dogmaticamente e impossível postular-se objeto de alguma revelação. Ela é e basta-lhe alguma ontologia e que fique pelo ser sem predicativos.

No modelo greco-judaico o estar conforme à religiosidade afere-se exatamente como se afere a legalidade de uma conduta, o que é muito coerente, deve-se dizer. Não se cuida aqui de mais que a conformidade a regras jurídicas que ditam comportamentos e visam a proscrever outros.

A absurdidade, contudo, está em que os juízes e os legisladores são os mesmos e agem de maneira nitidamente casuística, o que se evidencia na flexibilização das regras. Ora, se se tratasse de averiguar a conformidade de condutas humanas com regras dadas pela divindade, estaríamos diante da impossibilidade de qualquer flexibilização e não haveria intérpretes, porque um deus legislador ambíguo seria também um piadista.

Margens, interpretações, ambiguidades, sentidos falsos e verazes de uma proposição são coisas demasiado humanas e soa a heresia pô-las na conta da divindade. Anacronismo e perda de vigência por conta da história, por outro lado, não são coisas que se harmonizem com um legislador eterno e portanto fora do tempo.

Um criador transcendente não implica absolutamente um legislador, sob pena de, sendo parcial, não ser criador trancendente. Ora, legislar é fazer qualquer coisa contra alguém e a favor de outrem, política, enfim. Contra e a favor não são adjetivos que se possam apor a ações de um criador transcente, até porque a única ação minimamente cognoscível seria a própria criação, que não é adjetivável.

Decorre outra contradição profundamente blasfema, que é a crença na possibilidade de se agradar algum deus. Ora, um deus que sinta júbilo, que se sinta agradado com essa ou aquela homenagem, não é transcendente, nem que se torça a lógica aristotélica até que ela verta lágrimas. Um deus sedento de homenagens é o pior dos homens, na verdade.

Os deuses morrem de rir.

A proposta mais interessante que já vi, para interpretação do conhecido postulado de Nietzsche, é de Deleuze. Ele diz que os deuses morrem de rir quando um deles afirma-se único.

Poucas coisas fazem rir mais que a afirmação de desigualdade a partir de aspectos que, ao contrário, embasam precisamente a igualdade. Se fosse um deus, eu riria muito também, se escutasse tal reivindicação.

A necessidade de afirmação – em termos que são mesmo políticos – de monoteísmo é paradoxal. O um não precisa afirmar-se senão em face ao dois. Afirmando-se contra o dois ele o reconhece, porque seria ocioso fazê-lo contra o nada. Ou seja, é proposta tendente a girar em círculos.

A única saída para o um, se existisse, era ser absolutamente positivo, ou seja, afirmativo de nada. Ser negativo significa admitir os outros – ao menos como referências potencialmente existentes – e implica necessariamente o tempo, duas coisas com que o um absoluto é teoricamente incompatível.

Lembro-me bastante de um precioso trecho de Ortega e Gasset sobre a simples negação ou contrariedade. Ele diz que afirmar-se anti – Pedro não passa de afirmar-se favorável a um momento anterior à existência de Pedro, ou seja, não é uma proposta, senão um anseio de regresso.

Daí, se um teísmo que se quer único afirma-se contra outro – ainda que tenha o cuidado retórico de dizer do outro que é falso – simplesmente está a propor o retorno ao momento em que o outro não havia, proposição que não tem qualquer relação com a unicidade ou pluralidade.

No fundo, essa necessidade de afirmar-se transparece a única coisa verdadeira que existe; coisa que é mais forte que a busca por afirmações coerentes e não paradoxais. Coisa que é mais forte que as tentativas do paradoxo esconder-se pelo esforço de quantos catedráticos de Bolonha ou Paris haja.

Não se trata aqui de elogiar essa coisa, mas de tentar deixá-la evidente pois, na verdade, é desejável que ela não se manifeste tanto e que se manifeste menos não por conta de racionalizações profundamente irracionais. Isso é o desejo de guerra, a unica realidade, ao fim e ao cabo. Um significado quase sem significante.

Convém não tentar aprisionar esse desejo com racionalizações superficiais e desonestas, extamente para que o âmbito da organização pelo racional possa ser plenamente desenvolvido, para que a potência racional torne-se em ato no seu espaço próprio, que não é negativo.

Apenas para inserir um fato – que não precisa ser visto sob a perspectiva acima, necessariamente – digo que o centro de Campina Grande tem visto um grupo de dez ou quinze ciganas, todas coerentemente trajadas. Nada tenho, contra ou a favor de ciganas, apenas não quero conversa com elas.

Não vou parar para escutar alguma coisa sobre as linhas da minha mão, mesmo que surja uma disposta a ler a esquerda, a que não veicula qualquer mensagem, estranhamente. Também não gosto do detestável hábito delas de pegarem nas pessoas; de porem as mãos nas pessoas, de se dirigirem a elas com um contato físico.

Mas, não vou parar em frente das ciganas para lhes dirigir insultos ou questões. Elas que se fiquem onde estão, que não fazem mal a ninguém.

Pois bem, outro dia desses, um evangélico – desses tão radicais quanto estúpidos – prestou-se a fazer um discurso repleto de insultos e asneiras, aos berros, de uma forma tal que constrangeu as ciganas, o que se sabe não ser coisa fácil. Imagine-se a violência desse discurso.

No fundo, ele reclama seu público, pois não faz mais que ler mãos, também. Reclama por conta da mistura louca da racionalização que é seu disfarce e das erupções da verdade, a ponto e ponto, que é seu desejo de matar.