Uma maneira de exorcizar a morte é matar por deleite na estética da destruição. Outras, para os mais capazes, são a crônica e a poesia. Claro que capacidade, aqui, é termo de ambiguidade proposital, posto que pode significar falta de alternativas.
Boccaccio exorciza a peste a descrevê-la e seria para além de suas capacidades e sem efeito estético elevado tentar fazê-lo a matar. A Peste já matava demasiado e com feiura difícil de atingir por ofício humano…
A decadência do Império Norte-Americano é das coisas mais medonhas em que me ponho ocasionalmente a pensar.
Escrever sobre ela deve ser pelas beiradas, com receio do concreto, com analogias desconfiadas, simbolismos, sem cair na tentação de crer nas analogias, sem pensar em Roma.
O decadentismo do governo norte-americano do mundo parece, inicialmente, algo improvável e até contraditório, porque aceitou-se o lugar-comum do povo recente, do caldeirão fervente em que várias culturas e idades tornar-se-iam homogêneas.
Se isto pode ter alguma veracidade relativamente ao povo, nada tem de verídico relativamente aos governantes. Estes últimos são a gente mais velha do mundo atual, exceptuando-se os asiáticos, claro. Quem não perceber o que foi no período anterior ficará por achar que mergulho na contradição.
Esses governantes, no início longínquo de milênios, matavam para viver. O ciclo fecha-se quando matam para divertir o medo de morrer.
Fato é que os EUA e seus parceiros europeus, nomeadamente a Alemanha, neste caso, patrocinam a desestabilização selvagem da Ucrânia. Para isso, serviram-se da massa neo-nazista disposta a por abaixo toda Kiev e a trabalhar para meia dúzia de dirigentes e alguns milhões de pequenos-burgueses a sonharem com salários em euros.
A Ucrânia, como algo diferente da Rússia, é invenção recente. A grande Rússia nasce precisamente no principado de Kiev, o primeiro na grande região eslava a tornar-se ortodoxo; Moscou vem depois.
Não sei, sinceramente, se alguém no departamento de estado e no estado-maior percebe o que se pôs em marcha. Não sei se há gente nestes locais com alguma memória do que resultou da instalação dos mísseis nucleares na Turquia, há sessenta anos.
O Urso tem o segundo maior arsenal dessas maravilhas nucleares, as melhores defesas anti-aéreas que há e tem Putin que, infelizmente, não é imbecil nem trabalha para interesses outros além de russos. Ele não consentirá na instalação de mísseis nucleares norte-americanos na Ucrânia, isso é evidente e devia ser sabido.
Por outro lado, se não foi para instalar mísseis nucleares na Ucrânia que deram o golpe de Estado por meio da agitação das massas filonazistas, então a coisa é muito pior, porque começa a fugir à compreensão tentada a partir de história, geografia, política e lógica.
Realmente, se toda essa fúria destruidora visar apenas a poder comprar produtos alemães na moeda alemã, então os nazistas ucranianos são mais tolos que o comum da tolice nazista e pequeno-burguesa. Porque mediando a passagem do gás russo para a Alemanha, a Ucrânia poderia comprar tudo que quisesse, na sua própria moeda, ou em gás, ou em BTUs, ou em qualquer coisa que não implicasse gastar em marcos alemães e trabalhar por subsalários também em marcos.
Ou seja, qualquer que seja a motivação subjacente à desestabilização da Ucrânia, a coisa é estúpida demais e somente pode atribuir-se a algum senso estético da destruição, do caos, do abandono, da perda absoluta de travas, do gozo da estupidez em forma pura, da inconsequência.
Os governantes norte-americanos são facilmente apreensíveis por esquemas psicologizantes simples. Dizem temer que estes ou aqueles detenham armas nucleares, porque não seriam confiáveis. Dizem isto porque sabem, intimamente, que os menos confiáveis do mundo para deterem armas nucleares são exatamente eles.
Eles foram os únicos a lançarem bombas nucleares sobre pessoas, para nada. São os únicos que iniciam os jogos que podem ter implicações nucleares para o mundo todo, irresponsavelmente. Não é puerilidade, é senilidade.