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A morte de uma estrela. Ou, tentativa de compreender os efeitos da decadência norte-americana.

Este texto foi originalmente escrito em abril de 2010.

Era previsível que o processo histórico acelerado cobrasse aos EUA algum preço. A decadência é real, no sentido de perda de soft-power. A influência é exercida diversamente; não mais organizada e nitidamente, mesmo que por meio da guerra, mas por intermédio do caos, da destruição levada quase como imposição de solidariedade na agonia que se avizinha. As faces mais destacadas do processo são econômicas. É lugar-comum fixar-se no econômico, como nas obviedades em geral. Mas a desordem é para muito além do econômico. Esse é o risco para o mundo em geral e para os sul-americanos particularmente.

Dois processos se distinguem, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas e suas mortes serão diferentes, portanto. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

Alegoria da decadência norte-americana.

Texto originalmente publicado aqui, em 27 de abril de 2010, sob o despropositado nome de A morte de uma estrela.

Dois processos de morte distinguem-se, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

A decadência do império norte-americano.

Há meses escrevi mais ou menos sobre esse assunto, aqui http://www.apocaodepanoramix.com/?p=927

Na ocasião, fi-lo sob um título propositalmente escolhido para não sugerir o tema explicitamente, até porque o texto de então falava mesmo da morte das estrelas, ainda que bastante superficialmente.

O processo da decadência norte-americano é longo, mas já iniciou-se; muitos sinais confirmam-no. As comparações também permitem identifica-lo, muito embora não se devam fazer como se a história se repetisse, que ela é muito complexa para isso, ou seja, para repetir-se.

Portanto, as comparações são se destinam a firmar relações de identidade, apenas de semelhança entre processos históricos. Elas permitam identificar fatos e ações que, em suas conformações gerais, costumam estar presentes em situações assemelhadas.

Hoje, os Estados Unidos da América têm metade de seus contigentes militares engajados em serviço – no Iraque e no Afeganistão, por exemplo – compostos de mercenários. Algo à volta de 195.000 homens contratados por empresas de prestação de serviços militares. Desses contingentes mercenários, apenas 05% são norte-americanos.

As cidades-estados gregas do período de ouro e do período helénico serviam-se de mercenários, mas não eram impérios. A Pérsia servia-se regularmente de mercenários gregos – basta lembrar-mos do grande Xenofonte – e era um império. Roma serviu-se episodicamente de mercenários, todavia a sua forma clássica era inclusão por concessão de cidadania aos anteriormente bárbaros.

A utilização militar de estrangeiros no formato romano tem mais similitude com a Legião Estrangeira francesa e com os Regimentos Gurkhas nepaleses, incorporados regularmente às forças nacionais francesas e inglesas, respectivamente. Trata-se, nesses casos, de uma assimilação, de uma incorporação às forças regulares nacionais.

Os norte-americanos estão simplesmente contratando mercenários estrangeiros para a defesa de seus interesses, para a defesa daquilo que faz de seu país um império global. Essa gente, embora tradicionalmente não reivindique a glória militar e o poder político, custa caríssimo. Os problemas que não dão por um lado, dão por outro, na forma do alto preço, que põe o Estado a retirar dinheiro da população para repassa-lo às grandes corporações militares.

Não há precedentes significativos da utilização massiva de mercenários pelos EUA, que até antes dos anos de 1990 iam às guerras com seus cidadãos e davam-lhes a retribuição pecuniária e honorífica pelos esforços feitos para o estabelecimento e manutenção do império. É verdade que o envolvimento dos EUA em guerras têm uma peculiaridade notável: o reduzidíssimo número de baixas humanas.

Um império não se percebe somente por suas características e condicionantes econômicas, ao contrário do que muitos querem. Também não se compreende apenas a partir das variáveis propriamente militares, também ao contrário de algumas opiniões. E, por fim, não se faz somente com a imposição cultural. Quer dizer, esses três fatores andam juntos; e é bobagem tentar apontar o que  se destacou primeiramente.

Se tudo se reduzisse ao econômico, não haveria qualquer problema na guerra por mercenários, como também não haveria qualquer problema no abandono de toda a simbologia nacional, bandeira e hino, por exemplo. Mas isso não acontece, nem está próximo de acontecer, provando que os Estados não estão a caminho de se tornarem em corporações empresariais, embora estejam a serviço delas.

Por outro lado, se tudo se reduzisse ao militar, seria absurdo ocorrerem decadências de impérios que, isoladamente, ainda são mais fortes que todos os outros possíveis rivais. Os impérios, na verdade, costumam ter forças muito além das suas necessidades, evidentemente desproporcionais a uma demanda de manutenção ou até de expansão. Isso demonstra que o setor militar consegue impor seu discurso para além de qualquer proporcionalidade.

O desvio de percepção aqui deve-se à confusão entre início e consumação de alguma decadência. A decadência romana, por exemplo, não se confunde com os saques da cidade no século V, quando nada mais havia, quando já não havia exércitos. A decadência começou quando esses exércitos estavam no auge de sua força. Ter um dia estado no auge de suas potências não lhes serviu de coisa alguma ou, melhor dizendo, um auge não serve às situações futuras senão, talvez, como indício de seu drama.

Dos aspectos culturais não falarei assim, como se fosse um tópico, porque são o fio condutor de tudo, permeiam e dão sentido a todo o processo. São eles que permitem a um historiador dizer que uma guerra de setecentos anos não pode ter sido de reconquista, senão de conquista; ou que permitiram a um cruzado inteligente afirmar que não havia quem ser liberado em uma certa Jerusalém invadida a bem dos estandartes galileus.

Outro aspecto factual assustador: o Império cria dinheiro do nada, em volumes enormes. Sabe-se que a mentira, assim como a burrice, não tem limites, mas sua eficácia tem. Cria dinheiro para que os outros comprem-lhe os produtos e eles próprios comprem dos outros o que necessitam e querem, com dinheiro barato. Mas, isso pode quebrar os outros.

Para andar sempre no limite da utilidade das comparações, lembro que Roma, em certos momentos, fraudou as quantidades de ouro e prata nas suas moedas, que eram usadas para a liquidação de quase todas as transações no mundo de então, quer dizer, na bacia do Mediterrâneo. Semelhante? Sim, mas diferente, apenas é um ponto de contato interessante.

A decadência do Império Norte-Americano será uma tragédia, não um drama. A vida, a história, enfim, é uma tragédia; dramas são situações interpessoais, não os grandes processos. E será trágico para eles e para os vizinhos próximos, embora seus efeitos devam ser sentidos pelo globo inteiro.

As decadências são tumultuadas e repletas de vai-e-vem. Haverá ondas de desarrumação, que se projetarão sobre uma América Latina que tenta, agora, arrumar-se um pouco melhor. Essas ondas não obedecerão a qualquer lógica pré-existente, o que vai exigir muito poder de percepção imediata da realidade, algo raríssimo.

As decadências consagram aquilo que os irresponsáveis fetichistas propõem, no seu democratismo raivoso. Ou seja, elas promovem uma avalanche de alternância de poder que nenhum democrata seria capaz de conceber. Um tumulto avassalador, que alguns convenientemente percebem como o convite ao totalitarismo fascista.

Esses períodos são profundamente demóticos, embora não democráticos, porque esta última pressupõe alguns rigores formais, impossíveis nos tumultos decadentistas. Todos os radicalismos apresentam-se na cena, geralmente de formas contraditórias aos próprios discursos e aos próprios interesses.

O caso recente do movimento político Tea Party é interessantíssimo. Essa gente afirma-se puramente liberal. Assim sendo, seria de supor-se que são a favor do livre comércio e da livre circulação de pessoas, que são corolários do liberalismo puro. Mas, não! Eles são contra a imigração e muito contra a imigração ilegal, ou seja, eles propõem intervenções e planejamentos estatais muito profundos para uma crença liberal.

A imigração ilegal, abstraindo-se de aspectos legais ou políticos, é o evento mais puramente exemplificador da dinâmica liberal de mercado, porque não passa do ajuste da oferta e da demanda e mão-de-obra barata. Então, reclamações de um Tea Party contra a imigração ilegal, feitas a bem das doutrinas liberais, não passam de uma enorme contradição.

Eis os perigos que coisas desse tipo representam: grupos organizados que têm uma base teórica e discursiva que no fundo desconhecem. Suas ações são desconformes ao que dizem seguir e defender, ou seja, são grupos de ação que precisam invocar alguma doutrina, embora ignorem-na solenemente.

Grupos assim destinam-se a organizar insatisfações muito difusas, que acabam por dirigir-se contra si mesmos. Novamente, o Tea Party fornece o exemplo. O grupo auto-proclamado ultra liberal e composto de novos-ricos fala contra os ricos! Os dados apontam que 20% dos integrantes do Tea Party declaram rendimentos anuais superiores a U$ 100.000, ou seja, não é uma congregações de pobres ou excluídos.

Antielitismo de elite é algo caricatural, é uma simulação que somente pode dever-se a profundas ignorâncias e a difusos desencantamentos. Ora, o vale-tudo liberal capitalista, incluindo-se aí a oferta abundante de mão-de-obra barata de imigrantes ilegais serviu-lhes para aumentar as riquezas e a concentração delas, nos EUA. Curiosamente, um dos financiadores do Tea Party é o bilionário David Koch.

A esse caldo de todos os ingredientes à mão, acrescentam-se religiosidades protestantes fundamentalistas, daquelas que pregam desde a abstinência sexual até o avistamento de profetas iluminados pelo sol do Texas e, provavelmente, calçados em botas de couro com esporas douradas.

Outro forte indício de que as várias indignações estão somente a iniciar suas organizações foi dado pelo Bureu Federal de Recenseamento. Hoje, 44 milhões de norte-americanos encontram-se abaixo da linha de pobreza e 01% da população controla metade das riquezas do país! Para quem gosta de números, eis deles que têm forte capacidade de antever o tamanho dos problemas que se avizinham.

Não haveria qualquer problema que os EUA se afundassem nisso tudo, se eles não comprassem grandes partes das produções do resto do mundo, se a moeda deles não fosse a unidade padrão de trocas, se não tivessem 10.000 bombas atômicas e se não tivessem a maior industria de entretenimento do mundo.