Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Urinei num pneu quente…

Padre Vasconcelos defendia os interesses da Santa Madre Igreja Católica no sertão nordestino, lá pelos anos de 1950. Era o segundo de cinco filhos de Dona Clementina Vasconcelos, que enviuvara dois anos depois de parir o último dos rebentos.

Dona Clementina tinha um caráter forte, daquela força das coisas práticas. Ou seja, não era o capricho, a curiosidade e o mandonismo vazio das senhoras vazias. Era, em resumo, proprietária de terras e negociava com gados, algodão, tratava com os rendeiros, tudo com bom êxito.

O irmão mais velho do reverendo tivera a sorte ou o azar de ir estudar na Faculdade de Direito do Recife, numa época em que nem quinze anos de getulismo tinham conseguido abater a fatuidade e a vontade de ler em alemão. Acontece que o mais velho irmão Vasconcelos era, em Recife, um semi-rural e semi-rico, ou seja, casaria com a filha de algum desembargador.

O padre, evidentemente, fora ao seminário e tivera a sorte de não ter sido o de Olinda. Quer dizer que Pe. Vasconcelos era autenticamente padre, rural, fazendeiro e conhecedor de muitas frases em latim. Conservou-se nas suas terras e sucedeu à mãe no mando da fazenda.

Quando a viúva morreu, Padre Vasconcelos tomou seu lugar, com mais prestígio ainda, posto que o regime das duas dedicações não representava qualquer escândalo. Os irmãos e irmãs pouco interessavam-se pelos negócios de bois, vacas e rendas e o padre, por sua vez, pouco lembrava-se desses irmãos.

Quem o visse e com ele conversasse pela primeira vez acharia o reverendo meio escasso de espiritualidade e deveras prático. Talvez, só e só prático. Nada obstante, não podia ser acusado de negligente com suas obrigações de dizer missa, baptizar, confessar, dar extrema-unção, encomendar corpos, enfim, toda a rotina burocrática de um cura.

Padre Vasconcelos, sem o saber de conceito enunciado, era ortodoxo e andava à margem do preconceito romano do celibato. Todavia, não adotava o modelo consagrado dos grandes párocos. Antes, comportava-se, nisto de prevaricações, mais como um caixeiro viajante.

Essa ginecofilia diversificada não o punha em apuros espirituais, pois aprendera que a mudança quantitativa, para fazer diferença qualitativa, tinha que ser muita. Assim, um pouco de Aristóteles e muito de hipocrisia absolviam o homem e a disciplina ritual mantinha o padre. Ele sabia que metade de seus colegas elogiavam a lei de Deus de maneiras diversas e mais enérgicas que com o celibato.

Um belo dia, Pe. Vasconcelos manda um moleque da fazenda convidar o Dr. Teles para almoçarem um cabrito assado, no dia seguinte. O médico não estranhou o convite, porque não era malicioso, nem esses convites eram raros. Apenas eram mais rituais e presos a datas certas, porque o padre e o médico não tinham mesmo muitos assuntos em comum; não eram amigos nem inimigos.

O reverendo mandou o único sujeito da fazenda além dele capaz de guiar o jipe Willys apanhar o Dr. Teles na cidade, lá pelas dez e meia. Se ele mesmo fosse no jipe, seria uma deferência que todos estranhariam, porque Vasconcelos viajava muito, mas sempre só.

Teles chega na fazenda e é recebido com aperto de mão e a opção de um copinho de aguardente ou de licor de jabuticaba. Aceita a aguardente – boa para abrir o apetite – e senta-se confortavelmente no alpendre ensombrado, afrouxa um pouco o nó da gravata e pergunta como vai o anfitrião.

O padre nunca era loquaz nem calado demais. Tinha certa habilidade para ajustar o discurso às circunstâncias e aos circunstantes, sobretudo se as coisas girassem em torno a assuntos práticos, preços de propriedades, chuvas, barragens, gados. Com o Dr. Teles as coisas necessariamente girariam torno a estas trivialidades ou a qualquer coisa ligada à profissão do médico.

Para Teles, não parecia que o convite fosse alguma consulta disfarçada, porque nestas ocasiões as perguntas eram diretas, embora eufemísticas. Então, emendou a perguntar pelos cabritos, bodes, carneiros, bois, se os barreiros tinham água e coisas do tipo, ligadas ao mundo daquela ruralidade lenta.

O reverendo parecia disperso, mesmo que os assuntos fossem os seus e que tivesse sido ele a convidar o médico. Não se atinha à conversa, não bebia da aguardente mais que o suficiente para molhar os lábios, nem ansiava iniciar o almoço.

Já era quase meio-dia e não se podia mais adiar a comilança. O cabrito no forno de lenha e algo que faz até o cronista – distante cronológica e geograficamente – salivar enquanto escreve. Teles afrouxou um pouco mais a gravata, afastou um tantinho as bordas do colarinho, provavelmente por gentileza com as gotas de suor que por ali escorreriam…

Curiosamente, Padre Vasconcelos comia pouco e devagar, a ponto de chamar atenção do médico. Mas, como não se tratasse de encontro de íntimos e o código de conduta do tempo e do local não impusesse aos convivas a tagarelice que se impunha às mulheres, o Dr. Teles ficou-se pelos sabores do cabrito e pelos silêncios do padre.

Havia, não se sabe bem porquê, uma garrafa de vinho do Porto na casa da fazenda, coisa rara. Na altura em que a cozinheira ofereceu doce de caju, uma xícara de café forte e um cálice de Porto, Teles achou-se muito bem aquinhoado de hospitalidade num dia que não era santo, nem cívico.

Para a sobremesa, o café e o Porto, o anfitrião resolveu que passariam para a varanda alpendrada e mandou a cozinheira para dentro. Era melhor, porque corria um vento na varanda e o calor na sala estava opressivo mesmo se só tivessem comido uma salada de folhas.

Pelas tantas, o padre resolve-se a falar: olhe, doutor, queria lhe perguntar uma coisa. É bobagem, mas…

Diga lá, Padre Vasconcelos, que é que há?

É bobagem Teles, bobagem mesmo. Mas, é que tá um certo queimor incômodo aqui pelas partes, não sabe?

Sim, tá queimando quando urina, é Vasconcelos?

Pois é isso mesmo, Teles, e não é engraçado? Isso começou por uma besteira que fiz.

Sei como é…

Pois foi, doutor, tava um dia desses viajando no jipe, fazia um calor danado, daquele que não se sabe de onde vem o vento quente. Daí, parei pra urinar e foi no pneu do jipe, no pneu quente… Acho que a quentura do pneu subiu e ficou essa ardência… Foi burrice mijar no danado do pneu quente…

Padre, quando o senhor saiu do seminário, um sujeito de apelido Fleming, que acho que era escocês, sei lá, já tinha resolvido esse negócio.

Sim?

Olhe, passe lá em minha casa amanhã e vá com uma garrafa de licor, que o povo pensa que é um presente seu pra mim. E olhe, pode mijar até no motor do jipe, mas aquelas meninas da rua do açougue velho, padre, aquelas ali é melhor dar a comunhão só na missa mesmo…

Água com gás.

As porções semi-áridas do Nordeste brasileiro viveram esporádicos ciclos econômicos favoráveis. Em regra, deveram-se ao sucesso de alguma cultura agrícola que se adaptou bem a estas plagas abandonadas pelos favores da natureza.

Por um período até longo, reinou o algodão, cultura rentável e viável no clima semi desértico. As coisas foram bem até que uma praga dizimou os cultivos. Até hoje, especula-se ter havido sabotagem na introdução do bicudo, mas parece-me coisa de migração de insetos mesmo.

Na verdade, a cotonicultura no Nordeste já declinava quanto se noticiou a presença do bicudo-do-algodoeiro. Ele veio apenas terminar o pouco que restava e já não era rentável. O cultivo no cerrado já se estabelecera e revelara-se muito mais produtivo.

Nas décadas de 1950 e de 1960 deu-se o apogeu da cultura do agave, espécie de cacto com uma folha larga e longa, a culminar, em cima, num espinho.

Esta planta tem origem nas regiões áridas da América Central e particular fama no México, onde se faz dela aguardente, que a aptidão dos mexicanos para a propaganda fez crer ao mundo tratar-se de bebida boa.

Introduzido no semi-árido nordestino, o agave logo revelou-se bastante rentável e adaptado ao clima inóspito. Dele, o mais precioso são as fibras, de que se fazem boas cordas, inclusive daquelas usadas em navios. Para tanto, é preciso secá-lo e depois desfibrá-lo. Quanto mais longas as fibras e mais claras, mais valiosas as cargas.

Pois bem, lá pelo início dos anos 60 um empresário fazendeiro estabelecido na região agreste do Estado da Paraíba, dotado de visão empresarial e de dinheiro público emprestado a juros irrisórios – é claro – resolveu aumentar a produtividade da sua produção de fibras de agave para exportação.

Depois de pensar um pouco, concluiu não haver o que fazer além de investir na qualidade das fibras, porque aumentar a produtividade por área plantada era impossível. Ou seja, teria que inverter capital na aquisição de máquinas modernas que desfibravam o agave em fibras mais longas e mais clarinhas que as amareladas e curtas mais comuns.

A coisa ficaria meio cara, mas para isso sempre houve um e outro programa do governo para emprestar dinheiro barato, senão a custo zero. Todavia, o homem não visava apenas ao financiamento e ao futuro calote; ele levou as coisas a sério.

As máquinas, na época, eram conhecidas por coronas, de origem alemã. Elas obtinham fibras bem mais longas e mais claras, além de desfibrarem mais folhas por minuto e demandarem menos esforços e riscos dos alimentadores. Nesse ponto, convém dizer que o desfibramento de agave tem a triste memória de muitas mãos perdidas por trabalhadores…

Tomada a decisão, o fazendeiro cuida de fazer contato com a fabricante, na Alemanha. Na época, isso significava encontrar alguém que falasse inglês – alguém que falasse alemão seria um professor de direito da faculdade do Recife e não serviria para a tarefa – e manter vários contatos por telex.

Passados dois meses de negociações, um mês de navio e mais um de alfândega, eis que as coronas chegavam ao agreste paraibano. Com elas, chegava algo inusitado e exótico: um engenheiro alemão para as instalar, explicar como operá-las adequadamente e dar manutenção por curto período.

Os alemães têm fama de gente sério, nisso de trabalho, o que explica o zelo de enviar profissional qualificado juntamente com seus equipamento. As más línguas gostam de acrescentar que o engenheiro tedesco também auferiu boa remuneração pelo seu desprendimento, além de saciar a curiosidade das gentes do frio pelos encantos dos trópicos, é claro.

Fato é que chegaram as máquinas e o sujeito louro e alto, que falava feíssima língua parca de vogais. O coitado do fazendeiro brasileiro teve que dar mais uma volta ao parafuso do seu empreendedorismo e contratar um cicerone falante de inglês, porque do contrário, a presença do alemão e nada seriam as mesmas coisas.

Estranhamente, o alemão adapta-se razoavelmente bem ao calor e aridez causticantes do agreste. Ajudavam, evidentemente, os cuidados do fazendeiro, que providenciou outra geladeira Frigidaire, exclusiva para as indefectíveis Antárcticas do casco escuro.

As dificuldades não eram poucas, principalmente porque a mão-de-obra era tão rústica quanto o agave e via muitas das recomendações técnicas como simples caprichos do galego falante da estranha língua. Mas, as coisas avançavam e aproximava-se o fim da estadia do alemão.

Nessa altura, o engenheiro já adquirira certa desenvoltura entre os habitantes da fazenda e inclusive no povoado vizinho, que certo orgulho fazia chamar de cidade. O gringo ia esporadicamente ao povoado e aprendia uma e outra expressão em português, pronunciadas com um esforço tedesco.

Um dia de fevereiro o calor estava tão intenso que não recomendava cerveja, principalmente depois do almoço, mesmo com a possibilidade daquele providencial cochilo na rede. O alemão chama o cicerone para tomarem o jipe e irem à cidade.

Lá chegados, dirigem-se à bodega na praça e o engenheiro dispensa o intérprete para que fique à vontade e vá visitar aquela viúva piedosa com quem ele travara boas relações de conversas nem tão piedosas. Liberado do acompanhante, o gringo entra na bodega e dirige-se ao dono, que bocejava atrás do balcão de madeira seca e riscada.

Esboça um bom dia e emenda com um água com gás. O homem estranha, mas a cortesia a que todos tinham sido levados, em troca dos dólares do alemão e a bem de se mostrarem civilizados sem fazerem perguntas inoportunas, deixa-o mudo.

Por mais que conviesse ser ou parecer civilizado à base de não estranhar excentricidades, o bodegueiro acha melhor desconfiar, porque era de fato exótico o pedido. O que? – devolve-lhe.

Água com gás! – insiste o alemão, sem exasperar-se.

Tá bom, diz o homem atrás do balcão, se é isso que quer… Retira-se para os fundos, passando por uma portinha estreita e dirige-se aos botijões onde se armazenava querosene. Ia pensando: meu Deus, esse galego é doido mesmo…

Mistura diligentemente o querosene com água fresca, põe num copo, volta e dá ao sujeito louro que suava da testa aos pés. O alemão, todo satisfeito, entorna o conteúdo do copo de uma só vez, regurgita um pouquinho e começa a tontear.

Em menos de cinco minutos, o homem já se contorcia no chão, clamando por Zé Antônio, o intérprete e cicerone. O bodegueiro fica desnorteado e manda um moleque chamar Zé Antônio com a maior urgência. O menino, ladino, objeta que Zé tava naquelas conversas com a viúva.

O bodegueiro dá-lhe uma tapa na nuca e diz: corre lá, menino safado, e chama aquele filho duma égua logo, que esse galego imbecil tomou gás e acaba morrendo aqui!

O alemão escapou, depois de uma verdadeira aventura de cem quilômetros no jipe, por estradas de terra, até chegar na cidade pólo da região, onde havia um hospital. O que não escapou foi a fama do alemão, aquele homem tão cheio de ciência, fazer a estupidez de tomar água com gás…

Comeram Lurdinha! Um episódio de Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi só tinha luz elétrica, até meados dos anos 1950’s, das 5 da tarde às 10 da noite. Quando dava 10 para as 10 da noite, a luz dava uma piscada em toda a cidade e diziam que a “usina” estava avisando que “iam soltar a onça”.

Os candeeiros eram acesos e as pessoas retornavam às suas casas para ainda conversarem um pouco ou ir logo dormir. Tinham, enfim, 10 minutos entre a piscada da luz e a chegada em casa com as precárias luzes nas ruas ainda acesas.

Os bares mais perto da zona de meretrício continuavam funcionando até perto das 11 horas da noite, iluminados a candeeiro de querosene, e os que se detinham lá até depois das 10 horas sempre levavam nos bolsos lanternas de pilha, para verem os buracos nas ruas no caminho de volta para casa. Nas noites de lua economizavam pilha, pois o céu era muito limpo e as ruas ficavam bem claras.

Foi em uma noite de lua que se deu o caso de Lurdinha.

Lurdinha, filha do já idoso, vermelho, brabo, com pressão alta, apreciador de uma charque bem salgada e asmático Seu Aprígio, e de dona Luzia, bem mais jovem, recatada, jeitosa e delicada, era, aos 18 anos, uma das mais cobiçadas prendas da cidade e namorava “sério e prá casar” com Zé Luís Lagrange, um rapaz de uns 23 anos de idade, metido a bonito, preguiçoso e o filho mais velho de Seu Luis da granja.

Zé Luís, o jovem namorador, dizia-se descendente de franceses, por conta do sobrenome, mesmo sabendo que o original do seu pai era mesmo bem popular e brasileiro; o nome José Luis Lagrange tinha sido escolhido e registrado no cartório pelo seu pai para  que o filho mais velho não enfrentasse as mesmas piadas. O fato é que o prosáico nome de família vinha desde o avô, que tinha começado o negócio de vender ovos de granja, ainda no início do século XX. Assim, Zé Luís afrancesou-se e tornou-se Lagrange.

Monsieur Lagrange, como vaidosamente apreciava ser chamado pelos colegas no ginásio,  onde não passou nos estudos, também deveria herdar a granja do pai e isso lhe dava a presunção de vir a ter uma renda para manter uma família, comprar bons sapatos e um dia até comprar um carro. Era assim, também, uma boa prenda quando analisado pelo lado das mães com filhas para casar.

Em uma sexta-feira, como de hábito, Zé Luís namorava com Lurdinha no terraço da casa dela, já perto das 10 horas da noite, enquanto Seu Aprígio cochilava ouvindo o rádio e Dona Luzia fazia um crochê,  e tinha um olho no cochilo de Seu Aprígio e uma mão nas pernas de Lurdinha.

Foi aí que a tensão subiu mesmo e resolveram que seria no dia seguinte, um sábado de lua, que iam “partir para os finalmente”. Tinham somente que fazer Seu Aprígio dormir mesmo cedo e profundamente e não somente cochilar, e também dar um jeito de que Dona Luzia fosse mais tolerante no “agarra-agarra” deles no terraço e fizesse “vista grossa”.

Essa última parte da trama não era tão difícil, pois Lurdinha sabia pela mãe que o “velho Aprígio” já não dava conta de Dona Luzia e que ela tinha lhe dito – Jesus me perdoe – que estava a ponto de pensar em arrumar alguém com quem se virar. Mas, nada disso estava confirmado e nem o Padre Almiro tinha ouvido alguma coisa de Dona Luzia nas confissões, só informações de segunda mão passadas pelo seu sacristão.

Verdade é que Dona Luzia vinha fazendo freqüentes consultas ginecológicas com Dr. Aluizio e comprando remédios na farmácia, e especulavam que tivesse com algum problema de útero, o que gerou uma certa solidariedade das amigas e até também a suspeita de que Seu Aprígio tivesse pegado alguma coisa na zona e passado para Dona Luzia. Tomava também, com orientação do Dr. Aluizio, Belergal e Maracujina para as crises de ansiedade e de insônia.

No sábado planejado “para os finalmente” por Zé Luis e Lurdinha, essa conversou com a mãe e disse que não agüentava mais os hormônios em excitação e que ia “se perder” de noite com Zé Luís, no terraço de casa mesmo. Entretanto, precisava da ajuda da mãe para botar Seu Aprígio para dormir pesado e mais cedo e insinuou que desconfiava das idas da mãe ao consultório de Dr. Aluizio, pois aparentemente ela não tinha doença nenhuma em casa e também não tomava os remédios nem usava as pomadas que comprava na farmácia.

Dona Luzia, encurralada pela verdade desconfiada pela filha, concordou em dar uma dose castigada de Belergal e de Maracujina a Seu Aprígio, logo depois do jantar, e a ficar lá dentro de casa das 10 às 11 horas da noite, deixando a porta aberta; depois disso tinha mesmo que fechar a porta da casa pois algum bêbado vindo da zona podia parar na casa com a porta aberta e o candeeiro aceso e perguntar se tinha morrido alguém.

Às nove e meia da noite do sábado, lua bem clara e romântica, seu Aprígio já dormia e roncava pesado na cadeira de balanço enquanto Dona Luzia prosseguia no seu crochê e Zé Luis e Lurdinha em seus trabalhos manuais. Dez da noite e a luz apagou, com Zé Luis olhando para os lados para ver se ainda tinha alguém na rua. A noite de lua tinha atrapalhado os planos dele, pois uma turma já com muita aguardente na cabeça resolveu fazer uma serenata com violão bem no meio da rua. Lá pelas 11 horas os bêbados não conseguiam mais cantar nada, muito menos tocar violão e resolveram ir embora.

Sem perder tempo, Zé Luis partiu prá cima de Lurdinha com toda a sua experiência em sair com as meninas da zona “já amaciadas”.

Com pouca instrução sobre como eram “os finalmente” em termos de incômodos imediatos, Lurdinha começou a gritar um alto “ai, ai, ai” que acordou Biu de Serafim, que cochilava deitado na calçada por conta da cachaça que tinha tomado com os seresteiros.

Entendendo de imediato o que tinha acontecido, Biu de Serafim” deu uma boa risada e gritou também bem alto para toda a cidade ouvir:

–  COMERAM LURDINHA !

Logo os vizinhos também abriram as portas das suas casas e saíram para ver o que estava acontecendo, não dando muito tempo  para que Monsieur Zé Luis Lagrange se ajeitasse e desaparecesse de vista. Estava claro, o escândalo tinha sido mesmo coisa do vadio do Zé Luis.

Mesmo com todo o Belergal e a Maracujina que Dona Luzia tinha lhe dado para dormir, Seu Aprígio também acordou e, ao ver a situação formada dentro e fora da sua casa, teve um passamento, caiu com os olhos esbugalhados e um braço e uma mão entortada. Dona Luzia, que já estava de camisola para ir dormir, correu para chamar o Dr. Aluizio que, ao vê-la naqueles trajes e àquela hora na porta da sua casa, foi logo dizendo:

–  Aqui não, Luzia, segunda-feira no consultório às sete da noite.

Foi quando Dona Luzia explicou a Dr. Aluizio que Seu Aprígio tinha tido um passamento e que tava todo entronchado no chão.

Dr. Aluizio tirou logo o pijama e vestiu a roupa de médico, pegou sua maleta de primeiros socorros e foi com Dona Luzia ver Seu Aprígio. Ao chegar, aferiu logo a pressão arterial do paciente e constatou que estava altíssima e que Seu Aprígio devia ter tido um sério e provavelmente fatal derrame cerebral. Sabia que Seu Aprígio, se sobrevivesse, mataria alguém que ele soubesse  ter feito mal a Lurdinha, ou dado em cima de Dona Luzia, e aí disse:

–  Ele precisa ser bem tratado. O que ele gosta de comer?

–  Charque bem salgada, respondeu Dona Luzia.

–  Pois é, disse Dr. Aluizio,  ele vai ficar assim meio esquisito por uns dias e a senhora deve fazer todos os gostos dele. Pode dar a ele o que ele gosta de comer, e até uma caninha e uma boa carne de sol lá do Araripe; insista também com ele para ele ir prá cama com a senhora, exercício faz bem prá quem tem passamento.

No dia seguinte, depois do almoço, conforme esperado por Dr. Aluizio, Dona Luzia, Lurdinha e Zé Luis, Seu Aprígio teve outro passamento e, lamentavelmente, morreu…

Menos de um mês depois, Zé Luis Lagrange se mandou de Anus Mundi para Teresina dizendo que ia estudar para o concurso do Banco do Brasil e Lurdinha nunca mais ouviu falar dele.

O bispo, os índios e o médico de Anus Mundi em: “Esse milagre é meu!”

Por Sidarta.

Corria o ano de 1917 e três crianças educadas em um catolicismo medieval viram e conversaram muito com Nossa Senhora, e ainda pintaram o sete com a lei da gravidade fazendo variar erraticamente a órbita do sol… Isso por várias vezes, ali pelo Ribatejo, em Portugal.

Esses eventos, reconhecidos pela igreja católica como sendo milagres, promoveram a realização de muitos filmes de cinema com o intuito de divulgar a religião e de melhor distribuir e circular a renda dos fiéis.

Em meados dos anos 1930’s, em Anus Mundi, no Piauí, chegou uma versão ainda muda do filme da tal aparição de Nossa Senhora aos três meninos portugueses. O cinema, o cartório e a pia batismal estiveram lotados por vários dias, com o tabelião e o padre recusando-se a registrar e a batizar crianças com os nomes de Francisco, Jacinta ou Lúcia, tal iria ser a previsível confusão na cidade anos depois.

No alto da serra próxima à cidade, nos contrafortes do Araripe, vivia uma família também muito beata e com três filhos que, por pura coincidência, eram duas meninas e um menino. Essa família veio a Anus Mundi para ver o filme das aparições de Nossa Senhora.

O filme só não foi mais visto em Anus Mundi do que “Os Dez Mandamentos”, que apareceu muitos anos após, mas superou o número de assistentes de “La Violetera” já nos anos 1960’s.

Perto do local onde viviam as tais crianças, vivia também uma comunidade de pessoas que se proclamava descendente de índios e era, até então, humilde, pacífica e que compartilhava entre os seus membros os poucos recursos que tinham.

Não deu outra, dias depois os meninos resolveram subir em uma pedra lá no alto da serra perto de onde moravam, na esperança de também ver Nossa Senhora, e a viram mesmo… segundo eles. Receberam até instruções específicas da santa para que combatessem ferrenhamente o comunismo ateu, coisa de que não tinham a menor idéia do que se tratava, mas de que já tinham ouvido os seus pais falando em casa.

A notícia chegou logo aos ouvidos do bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi, aos da comunidade de índios que vivia por perto e aos do médico da cidade.

Cuidadoso, o bispo enviou ao alto da serra um padre experiente em exorcismos e em desmascaramento de falcatruas para entrevistar as crianças, que voltou atestando o milagre das aparições, mesmo ele não conseguindo ver ou ouvir nada do que as crianças diziam ser a conversa com a santa, e também o propalado poder curativo do ar e da escassa água do riacho que passava no fundo do vale e que atravessava algumas plantações e currais de gado.

Voltou também com algum dinheiro para comprar uma batina nova, sapatos e chapéu eclesiástico, e também uma sela nova e mais confortável para o seu cavalo.

Era preciso, agora, definir um nome para a santa e conseguir um milagre, ou de preferência três, para que se iniciasse o processo de homologação das aparições e da santidade do local, assim como a igreja já reconhecia Lourdes, na França, Fátima, em Portugal, Aparecida, em São Paulo, e tantos outros mais.

Alguém às portas da morte deveria tomar um pouco da água do riacho no alto da serra, pedir uma graça e se recuperar, pensou o bispo.

Em uma semana o senhor bispo conseguiu um voluntario, um cidadão com a barriga inchada e sinais de cirrose alcoólica avançada, e o fez tomar da água do riacho da serra que atravessava plantações e currais de gado. O coitado morreu de diarréia dois dias depois, fazendo o bispo suspeitar de que a água não servia, pelo menos, para cirrose alcoólica nem para andaço. Mas, talvez servisse para reumatismo, uma doença muito comum em locais frios e úmidos no inverno.

Levando a coisa mais a sério, foi o senhor bispo diocesano, que tinha reumatismo, quem resolveu ir discretamente a Anus Mundi e passar pessoalmente uns dias no alto da serra bem perto do local da aparição nordestina de Nossa Senhora a três crianças piauienses, Raimundo, Severina e Maria, em uma casa até onde se conseguia chegar a cavalo e cujo local Sua Excia. Reverendíssima denominou de Cova do Pé da Serra. A santa tornou-se, inevitavelmente, Nossa Senhora da Cova do Pé da Serra.

A viagem a cavalo serra acima o deixou cansado no primeiro dia e o reumatismo piorou; no segundo dia sugeriram a ele que tomasse da água do riacho, coisa que ele fez, mas depois de mandar ferver a água, evaporando, talvez, os seus fluidos etéreos curativos: também não funcionou. No terceiro dia o bispo concluiu que nas habilidades específicas daquela santa anusmundense não estava a cura do reumatismo, desceu a serra a cavalo e voltou para a sede da sua diocese para pensar.

Foi aí que os pretensos índios, que moravam lá por perto há muito mais tempo, disseram na feira de Anus Mundi que as pessoas lá na serra tinham pouca tosse e asma, provocando um grande fluxo de romeiros asmáticos ao alto as serra para experimentar a cura, agora também orientada pelo pagé da tribo que dava um chá complementar de ervas secretas aos seus pacientes.

Passaram também os índios a cobrar uma “taxinha” de trânsito pelo seu território aos que desejavam chegar até o tal local de aparição da santa, e não se contentavam em ficar somente na parte alguns metros mais baixa do terreno onde moravam os índios e trabalhava o pagé.

De imediato, caiu sensivelmente o movimento de asmáticos na farmácia de Anus Mundi e no consultório do doutor, indo os dois, o farmacêutico e o médico, junto com o padre local conversar com o prefeito para que estudassem uma solução mais empresarial para a mina de ouro que tinham achado  na cidade e que agora os índios estavam criando dificuldades para que fosse devidamente explorada.

A muito desejada solução economicamente conciliatória chegou rápido: a igreja ia emitir um decreto papal “Ad Revisionem Locus Miracoli Mater Dei Anusmundensis”, trazendo o local das aparições para fora da área do pedágio dos índios; o médico ia fazer uma palestra no cinema sobre os perigos para a saúde ao se tomar água do riacho da serra; as crianças viriam ver e conversar com Nossa Senhora da Cova do Pé da Serra no novo local, que ia ter estrada calçada com pedras e onde os mais dotados podiam até chegar de carro de praça; o prefeito ia mandar construir uma imensa imagem da santa com as três crianças ajoelhadas batendo papo com ela; e iam pensar também em como construir um hotel na cidade que fosse mais atraente aos romeiros que vinham de fora do que a antiga Pousada da Rodagem, que também funcionava como um motel primordial.

Para refinar a decoração do novo local das aparições, o prefeito contratou um caro escritório de arquitetura e uma construtora de Teresina para projetar e construir as novas instalações para a sua santa, incluindo uma fonte de água tratada, levada até lá em latas no lombo de burros e que, quando posta a funcionar quando chegavam romeiros de fora, não matava ninguém de diarréia.

Os pais das crianças também ficaram com o seu quinhão: os meninos foram alfabetizados e autografavam os livros com as suas biografias, e a loja de souvenires vendia santinhos, fitas, terços e medalhas (todas com a inscrição “Ad Revisionem Locus Miracoli Mater Dei Anusmundensis” impressa na periferia em torno da imagem da santa da Cova do Pé da Serra.

Na época do São João havia festas no local e é até possível que o nome de “Forró de Pé de Serra” tenha surgido por lá.

No frigir… os capitalistas e a igreja combateram mesmo o comunismo ateu e acabaram o negócio dos índios.

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

Um deserto e as surpreendentes linhas de Nazca

Sugestão inicial de Leila: era hora de conhecer as linhas de Nazca. Um passeio deveras cansativo – é verdade – mas definitivamente recomendável àqueles que não nutrem tendências suicidas ou homicidas, ao enfrentar longas viagens de ônibus; bem como aos capazes de suportar manobras bruscas de um pequeno avião.

Pois bem. Embarcamos em um ônibus, às 3 horas da manhã, em Lima. Oito horas depois, estávamos em nosso destino. Embora eu tenha uma absoluta facilidade para dormir em viagens, inclusive quando sou o condutor, despertei aos primeiros raios do sol e não mais repousei.

Quem está a imaginar que a viagem foi a redenção de todas as transgressões terrenas – algo parecido com Recife/Juazeiro do Norte, Expresso Guanabara – esqueça! Além do confortável ônibus, a perfeição da estrada não nos fez títeres de incorreções asfálticas.

O deserto ao sul do Peru é simplesmente impressionante, notadamente pela proximidade do pacífico. As imensas dunas de areia clara, cortadas apenas pelo tapete rodoviário, são muito bonitas. Do nada é possível extrair beleza, afinal.

Chocante são as dispersas, diminutas e pobres aglomerações habitacionais às margens da estrada. Não foi possível desvendar do que aquele povo sobrevivia. Eram conjuntos de quinze, não mais do que vinte, casas próximas; um bar, evidentemente; e muita propaganda de Keiko Fujimori.

Impressionante também é Ica! No meio do deserto, surge uma cidade cheia de contrastes, às margens do rio homônimo. Por um lado, condomínios verdes, condôminos brancos e caríssimos carros; por outro, índios em motonetas que transportam, além do motorista, duas pessoas em um banco traseiro improvisado.

O tempo não permitiu que conhecêssemos, por outro lado, o oásis de Ica, conhecido por Huacachina. Um pequeno povoado surgido às margens de um lago natural ainda no deserto.

Oásis de Huacachina

Chegamos em Nazca. Apesar de termos reservado, por telefone, o voo para o meio dia, esperamos três horas para embarcarmos na pequena aeronave, que, além do piloto e do copiloto, comportava quatro passageiros. Justificaram o descaso sob o argumento de que os outros dois passageiros se atrasaram. Infelizmente, por mais que retrucássemos, não tínhamos poder de barganha. Em favor deles, existiam 16 horas de viagem para um único propósito. Restava esperar…

Chegaram os outros dois passageiros. Dois garotos asiáticos, não mais de 24 anos de idade, aparentemente um casal, ambos com camisa de Michael Jackson. Nada simpáticos. Na verdade, qualquer gesto de cortesia dificilmente seria por nós interpretado, em virtude da espera que motivaram.

Hora do passeio. Devo confessar que hesitei, de imediato, quando observei o tamanho dos pneus do avião. Lembraram-me as rodas plásticas do meu triciclo da infância. Tive duas certezas: a gravidade triunfaria e a máxima popular “Pra descer todo Santo ajuda” não se aplicaria na situação.

Meios de transporte assemelhados na memória, segundo o autor

Diante do receio, Leila retrucou: “Se respeite, homem!” Era o momento ideal de demonstrar a estirpe viril de um implacável homem paraibano. “Me respeita, mulher! E eu sou menino?! Vamo simbora!”.

Decolamos, finalmente.

O piloto fazia questão de apresentar as linhas para os dois lados de janelas, para tanto manobrando bruscamente o teco-teco, enquanto o copiloto auxiliava na identificação dos geoglifos.

Cada identificação entusiasmava, notadamente a dos animais. Eu, particularmente, me surpreendi ainda mais com as imensas e perfeitas figuras geométricas rasgadas no solo, em regra, triângulos, trapézios e retângulos.

Ao pousarmos, conversamos sobre a origem das linhas. Acabamos por não nos convencer se foi obra do povo Nazca, de extraterrestres ou empreendimento turístico do governo peruano. Não importava. Tínhamos uma única certeza… compensou esperar.


O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

Um mercado, outra iguaria e a identidade de um povo.

De início, um sincero pedido de desculpas ao editor do blog. Problemas de conexão e algumas turbulências retardaram, em muito, a pontualidade dos textos.

Continuemos…

Ainda em Cusco, dispomos-nos a fazer rafting. Como desconheço algum termo em português que traduza a expressão, chamarei de insanidade, afinal, percorrer um arredio rio, sobre um bote inflável, ao alvedrio de frias correntezas, não me pareceu um sinal de inteligência. Fomos, mesmo assim, e gostamos muito do feito, pois vislumbramos belíssimas paisagens.

Para realizarmos a proeza, viajamos de carro, com mais dois guias, a um povoado próximo – que infelizmente não recordo o nome – onde tomamos café-da-manhã, em um mercado popular.


O mercado era muito parecido com as feiras livres que eu estava acostumado a visitar, geralmente, aos domingos, em Campina Grande. Tinha de tudo! Como fala um querido amigo, só não tinha o que estava faltando, o resto sobrava!

Tecidos, confecções, artesanato, especiarias, carne de variados tipos e curiosas espécies de milhos e batatas. Para mim, uma maravilha diante da diversidade desconhecida. Sequer hesitei ante o convite de um dos guias para experimentar outra iguaria… sopa de crânio de cordeiro.


Era um caldo ralo, picante, com pequenas batatas submersas e uma saborosa carne. Para nossa sorte, Leila – ao se deparar com parte da mandíbula do ovino em meu prato e diante dos primeiros indícios de náusea – foi caminhar pelo mercado e registrou as imagens que ilustram essas linhas.

Os frequentadores do mercado eram pessoas simples – pobres talvez, miseráveis jamais – em sua maioria agricultores e/ou pastores. Todos, sem exceção, silenciosos – ótimo sinal de educação – e gentis. Uma gentileza serena e sorridente, realçada por roupas coloridas. Gritaria não havia, caixas de som a estuprar tímpanos muito menos. Simpatia, afinal, não precisa vir acompanhada com barulho.


Retornamos a Cusco. Na cidade, além dos turistas, os índios se destacam. Todos os nossos guias eram cusquenhos, quéchuas conhecedores da história e orgulhosos do que foram e, principalmente, do que são. A estatura mediana, o formato triangular e as faces vermelhas são motivos de altivez, sem deselegância. E os cabelos?! Como são belos os cabelos daquele povo! Deixaria qualquer madame da avenida Paulista indignada com o brilho natural dos fios.

A identificação chama a atenção e conduz à lembrança de uma unidade cultural a que não pertencemos. Não pertencer não nos torna melhores ou piores, torna-nos apenas diferentes. O problema e o sinal maior de arrogância é desconhecer a identidade e se julgar cidadão do mundo, por fazer compras esporadicamente, em estabelecimentos sem tributação.

Uma jovem guia cusquenha falou com orgulho, mais uma vez, do seu povo. – Somos vencedores da altitude e da ganancia e, ainda por cima, somos belos. Esta cor e estas bochechas rosadas não se encontram em todo lugar, brincou. – Alguma pergunta? Alguma dúvida? Meu número de telefone?! Sou solteira, disse ela!

Arrancou, assim, o sorriso de todos e se despediu, alertando, subliminarmente, que precisamos conhecer quem somos, verdadeiramente.

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

A cosmopolita Cusco.

Antes de partirmos para Cusco, permitam-me compartilhar que a vontade primeira de conhecer o Peru partiu de saudosos encontros, em Campina Grande, nos quais fatalmente, cedo ou tarde, bons amigos de sobriedade questionável cantarolavam, junto com Mercedes Sosa, Acercate Cholito. Começou daí meu fascínio pelo país.

Pois bem. De Lima, partimos para Cusco, pela Peruvian Airlines, fornecedora dos bilhetes mais baratos, comprados pouco antecipadamente, no Brasil. Viagem confortável, convém registrar, uma vez que o velho 737 preservou nossa integridade física, diferentemente dos novos que por aqui operam, equipados com seus ínfimos e violadores espaços entre as poltronas.

Vale mencionar, ainda, que – inobstante a brevidade do voo e o pouco valor pago, comparado com o preço dos bilhetes brasileiros, em semelhantes condições de procura – nos ofereceram um lanche bastante razoável. Não que comida em avião seja primordial, não o é. Paga-se pelo deslocamento, afinal. Mas, ter a impressão de não ser tratado como carga, e pagar menos por isso, é desconcertante.

Chegamos a Cusco, enfim. Do alto, não parece a cidade acolher população superior a trezentos mil habitantes, segundo as duvidosas informações das enciclopédias virtuais. Engano meu, a cidade não é pequena.

Embora temido, o soroche – indesejado efeito da altitude – não nos vitimou, em momento algum da viagem. Nem mesmo logo após a chegada, em que me aventurei de imediato no prato típico da região, o porquinho cuy, embora alertado de que não deveria exagerar na alimentação. Eu, que como tudo que voa, nada ou rasteja, devorei e aprovei a iguaria, sozinho, já que Leila sequer a tocou. Resistências gastronômicas femininas…

O Cuy

Hora de caminhar. Topografia acidentada, ruas estreitas e – embora a colonização hispânica tenha muito destruído – resquícios incas estão em todos os lugares. Destes, o que mais impressionou na cidade foi o templo dedicado ao sol, Qorikancha, que teve seu ouro levado pela ganância dos colonizadores, mas preservou a beleza e precisão dos imensos encaixes de pedras.

O Qorikancha

Do tempo colonial, armações de madeira e sacadas de entalhes delicados, além de lindas igrejas.

A Catedral de Cusco

Andando um pouco mais, modernos restaurantes e lojas, inúmeras agências de turismo e a razão de ser dos empreendimentos: muitos – mas muitos mesmo – turistas! De dar na canela, como falamos em Campina. Assediados a cada passo para conhecer algum sítio arqueológico, cambiar ou apreciar um artesanato.

Gente do mundo inteiro, notadamente europeus e asiáticos, com suas agressivas fotográficas, que fizeram meu presente de aniversário parecer a Rolleyflex de Tom Jobim. (Uma pausa, pois Leila rebate implacável e violentamente minha ingratidão).

Um tarde foi suficiente para aproveitar passeios incríveis nos arredores de Cusco. Ruínas imponentes, ousados sistemas hidráulicos e geladas mesas de pedra para mumificação retratam a habilidade dos antigos moradores. Esses incas eram uns cientistas mesmo. Risos.

À noite, foi a oportunidade para conhecermos alguns, dos muitos, bares da cidade. Pessoas de todos os lugares do planeta a se divertir e tomar porres de pisco, a cachaça dos peruanos. Com o avançar da hora e a sobriedade abalada, era hora de se recolher.

Dividimos um táxi com uma simpática jovem colombiana. Subitamente, recordei os amigos e comecei a cantarolar Acercate Cholito. A colega colombiana, de pronto e inusitadamente, acompanhou. Se o taxista gostou, eu não sei! Mas ele já devia estar acostumado com turistas cantores, de afinação duvidosa.

Despedimos-nos com risos e uma sensação curiosa de pertencimento…

O papagaio de Jeremias. Episódio da vida anusmundense.

Por Leo de Picos.


Jeremias nasceu e criou-se em Anus Mundi. Era filho do sacristão da matriz de São Sebastião, chamado José Teobaldo, conhecido pela alcunha de Zé Catolé. Zé Catolé foi pai de onze filhos, sendo quatro mulheres e sete homens. Jeremias foi o sexto dessa linha de produção.

Todos podem imaginar a dificuldade de se criar tanta gente com o salário de sacristão, mas cada filho que ficava taludinho ia procurando ou inventando uma viração para ajudar nas despesas. Jeremias desde menino despontava como o mais esperto, inteligente e criativo.

Era afilhado do Padre Almiro, que foi quem lhe deu esse nome. Chegou à igreja para o batismo alguns dias após ter nascido e seus pais não sabiam que nome lhe atribuir. Geralmente os batizados celebrados pelo Padre Almiro eram feitos no atacado. O vigário só atendia individualmente casos especiais, como crianças que estivessem doentes e prestes a morrer ou então aquelas filhas de pessoas influentes da cidade e de bom poder aquisitivo.  Até porque a igreja vive das doações de seus bons e generosos fieis.

Na hora da cerimônia, Padre Almiro vira-se prá Zé Catolé e D. Prazeres, sua mulher, e pergunta o nome da criança e quem são os padrinhos. A resposta veio na bucha: nem tem nome nem padrinho! O senhor, padre, é quem vai dar o nome e ser o padrinho. Padre Almiro não estranhava porque essa era uma prática comum nos dias de batizado. Vira-se prá dona Paixão, sua ajudante, e manda olhar na relação se ainda tem algum nome disponível. A resposta foi negativa. Todos já estavam riscados. Vira-se mais uma vez prá Zé Catolé e pergunta: que dia nasceu?  O pai teve dúvidas mas dona Prazeres respondeu de pronto:  primeiro de maio! A ajudante, dona Paixão recorre à folhinha do santo do dia e diz ao padre que primeiro de maio é dia de São Jeremias. Pronto, é Jeremias!

Jeremias criou-se dentro dos ensinamentos da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Foi coroinha de Padre Almiro, aprendeu o ofício de sineiro.

Era um menino batalhador.  Adorava ganhar dinheiro. Apesar de conviver dentro da igreja era temperamental ao extremo. Não guardava desaforo, era portador de uma pequena gagueira e saía na tapa com quem fizesse qualquer tipo de gozação. Não sei se coincidência ou coisas de Deus, mas dizem que São Jeremias também era gago.

Na adolescência, fugiu num circo que havia armado na cidade. Passou vários anos desaparecido. Um belo dia volta prá cidade aquele sujeito forte de tamanho avantajado, casado com uma cabocla baiana chamada Jurema, que ele conheceu nas suas andanças. Vem com uma atividade que não tem nada a ver com suas raízes religiosas: PAI DE SANTO!

De início, muita gente estranhou, mas logo foram se acostumando.

Jeremias, com seu espírito empreendedor e pensando se dar bem na vida,  montou seu terreiro numa localidade chamada Caldeirão do Periquito, que ficava próxima à entrada da cidade.

O tempo foi passando, o negócio foi dando certo e sua fama de grande Xangozeiro foi se espalhando; vinha gente de toda a região e de lugares distantes, até de outros estados, na busca de cura para os seus males e soluções para os seus problemas.

No altar de seus orixás, existiam Caboclos, Pretos-Velhos, Exus, Pombas-Gira, Zé Pilintra e outros.

Em seu templo, Jeremias criava um papagaio, muito falador, que era seu grande companheiro. O animal assistia aquelas manifestações e se mantinha calado, numa postura eticamente correta para um animal, o que agradava ainda mais ao seu dono. De vez em quando o papagaio, mesmo calado, apresentava alguns sintomas de que estava recebendo alguma entidade do além e era preciso uma ação imediata de Jeremias, que fazia uma pequena sessão de desobsessão e depois  colocava um pequeno galho de arruda em baixo de sua asa esquerda… e a coisa se acalmava.

Heleno Fogueteiro gostava de tomar umas cachaças e fazer arruaças quando tava com o “quengo cheio da maldita”. Um belo dia, depois de passar o tempo todo enchendo a cara, juntou-se com mais dois iguais e resolveu alugar um carro na praça e ir até o terreiro de Jeremias acabar com o xangô.

O salão lotado, chega Heleno, vai até o altar puxa a toalha, derruba todas as imagens e as oferendas ali  colocadas. A mais danificada foi a de Zé Pilintra, que teve a cabeça decepada na queda.

Jeremias, imediatamente, agarra-se com Heleno e seus companheiros e  começa uma briga. Os amigos???  Quando notaram que a barra era pesada pegaram o beco e deixaram Heleno sozinho nas garras do xangozeiro. Nessas alturas o salão fica vazio. Corre todo mundo. O quebra-quebra era grande. Depois de muito tempo, após escutar o barulho de um tiro, Euzébio, o motorista que levou Heleno, toma coragem e consegue entrar no salão e tirá-lo das garras de Jeremias.

O tiro tinha sido disparado pelo Pai de Santo mas pegou de raspão. Heleno levou uma surra tão grande que ficou desacordado por algum tempo, até Euzébio pegá-lo pelo ombro e levá-lo até o carro. Na saída passaram defronte ao papagaio, que foi a única testemunha a assistir toda aquela cena. Nessa hora, o papagaio vendo Heleno todo arrebentado, o sangue escorrendo pela cara, como que querendo enaltecer a vitória do seu amo, diz em bom português:

“Fu…fu…fudeu-se, na volta de Je…Je…Jeremias e de Zé Pi…Pi…Pilintra não tem moleza!!!”

O Bispo, o padroeiro da cidade e os índios, na procissão em Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi não tinha bispo, mas havia alguns padres de várias tendências políticas e sociais, e até de diferentes opções sexuais.

O padre Almiro, por exemplo, andava de lambreta e quase sempre com uma paroquiana ajudante de secretária do tributo à garupa. Disse certa vez o cronista Leo de Picos, que o referido padre também aparecia de vez em quando, devidamente disfarçado de representante de laboratório farmacêutico, no bordel de Alaíde Macarrão.

Outro reverendo, muito piedoso, adorava as criancinhas.

No dia da festa do santo padroeiro da cidade, invariavelmente, o senhor bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi deslocava-se de carro pela estrada de terra desde a sede da diocese, descia do carro perto da entrada da cidade, lavava o rosto e as mãos em uma bacia dentro de um armazém de secos e molhados, trocava toda a roupa de cima empoeirada e colocava as vestes completas e o chapéu imponente de bispo, tudo isso ao som de cânticos religiosos ensaiados pelas beatas (“ma non troppo”), para iniciar o cortejo solene até a igreja matriz, de onde dirigiria a procissão.

Ao longo do percurso do cortejo do bispo, ao som da banda da Sociedade Musical 20 de Janeiro, a gente, para ver melhor, subia até em postes de luz e nos bustos de concreto de dois notáveis anusmundenses entronados na praça anterior à da igreja matriz.

O evento era tão solene que algumas pessoas tentavam e conseguiam furar a proteção policial do bispo, quebrar o protocolo e tocar as suas vestes.

Era barato subornar um guarda municipal para chegar mais perto do bispo, que era um sujeito alto e magro, elegante mesmo, quase uma reprodução do seu chefe e ídolo em Roma, o papa Pio XII, a quem conseguia imitar nos gestos de concessão de benção, com os três dedos da mão direita em movimento de cruz e com a cabeça voltando-se continuamente da esquerda para a direita, de modo a que o campo magnético divino emitido por seus olhos e suas mãos tivesse uma amplitude de 180 graus e não deixasse ninguém fora do seu alcance.

Como o seu mentor em Roma, tinha sido treinado para olhar para o nariz das pessoas, e não para os olhos, como uma forma de evitar um contato mais revelador das fraquezas de também ser mortal; por conta disso tinha um olhar natural já meio estrábico.

Mentes mais sensíveis alegavam que conseguiam sentir um “arrepio” quando eram atingidas pelo tal campo magnético divino emitido pelos olhos e mãos do bispo, e muitas delas chegaram a ser entrevistadas pelo locutor da estação de rádio da cidade próxima de São Raimundo Nonato, o Grande, também no Piauí, descrevendo sensações parecidas.

A única dissonância nos relatos foi a de Biu de Serafim, ajudante no bordel de Alaíde Macarrão, que tinha tomado umas cervejas antes da chegada do bispo e disse que o impacto do campo magnético divino da benção episcopal lhe pegou da cintura para baixo e provocou uma súbita crise de incontinência urinária, depoimento que foi transmitido pela rádio, pois a transmissão era “ao vivo” e não deu tempo de cortar.

Os padres ficavam de olho nessas pessoas que davam entrevistas à rádio e depois as procuravam para saber se tinha ocorrido mesmo algum milagre digno de divulgação.

O sonho da comunidade e da igreja em Anus Mundi era o de ter um santo local, coisa muito comum em qualquer cidadezinha mais pequena do interior da Itália.

A história dos milagres do desejado santo não precisaria ser escrita e ser um dogma de fé acreditá-la, bastava conversar com alguma testemunha ocular ainda viva e a credibilidade seria total. Se o milagre com o toque no manto do bispo acontecesse perto da fonte de água na praça, aí a fonte se tornaria também milagrosa e o negócio da água benta engarrafada ia ser monumental para a igreja e para a prefeitura.

Lá pelas cinco da tarde, finalmente, o cortejo do bispo chegava à igreja matriz.

Na hora da procissão com a imagem do padroeiro da cidade, São Sebastião, um santo importado do estrangeiro, a comoção era geral, com pessoas pagando promessas por graças conseguidas “in totum” ou “em parte”; se alguém estivesse caminhando com um pé descalço e o outro com uma sandália é que a graça pedida não tinha sido totalmente alcançada. Esse acordo, e o “in tutum” ou “em parte”, tinha sido feito com o pároco de Anus Mundi.

Na saída da igreja matriz, todos se esticavam para ver a imagem do santo sendo martirizado, amarrado a um tronco, com o peito nu e todo crivado de flechas.

Um belo dia, nesse momento dramático da saída da imagem do santo da igreja matriz, o futuro Dr. T, um grande médico anusmundense da atualidade, (… e não aquele ginecologista meio “boiola” do filme “Dr. T e as Mulheres”, o ator americano Richard Gere), que era ainda criança pequena, mas já muito curioso sobre ferimentos e como tratá-los, perguntou a um tio que o tinha levantado nos braços para melhor ver a passagem do andor do santo: “tio, por que ele está todo flechado?”

E o tio respondeu: “veio da Itália para ser santo no Brasil e foi se meter a besta com os índios…”.

O coletor fanhoso. Mais um episódio anus mundense.

Contribuição de Leo de Picos para a coletânea literária de Anus Mundi, Piauí

…corria o final da década de 50. Enquanto o mundo se maravilhava com o sucesso do programa espacial da União Soviética e o Brasil efervescia com a Bossa Nova, a longínqua cidade de Anus Mundi, confins do Piauí, vivia o seu negro isolamento do resto do planeta. Os seus nativos conviviam com aquilo que lhes era disponível, além do trabalho: algumas diversões, como o pequeno cinema da cidade, alguns circos mambembes que vez por outra ali aportavam e, para os homens, os cabarés!

Dentre as casas de orgias da cidade, a mais famosa pertencia à cafetina Alaíde Macarrão que, apesar de viver de uma profissão nada agradável para a maioria das pessoas, principalmente para as madames da sociedade, era amiga e tinha como clientes boa parte dos homens influentes da cidade.

Alaíde freqüentava as missas dominicais e era amiga do Padre Almiro. Como se pagasse penitência, ajudava com bons trocados a paróquia e as línguas ferinas das beatas diziam que por isso era tão amiga do vigário. Algumas chegavam a dizer que o padre também era seu cliente e que vez por outra ia ao seu bordel aumentar o rol dos seus pecados. Essa notícia chegou até ao Bispo, que abafou o caso, mas, em compensação, vetou-lhe a promoção para Monsenhor. Compensações…

O coletor de rendas da cidade era o senhor Otávio Leicam. Homem benquisto, casado, pai de família, educado, que fazia questão de cumprimentar todo mundo, apesar de não ser político. Pertencia a uma das famílias mais tradicionais da cidade. Católico fervoroso, fazia parte da irmandade de São Sebastião, padroeiro do município. Além de chefe da coletoria, era ele, também, Presidente da Sociedade Musical 20 de Janeiro.

Seu Otávio tinha um defeito de nascença: era FANHOSO.

Sempre às quintas-feiras chegavam de Piri-Piri algumas quengas novas para o cabaré de Alaíde Macarrão, que as selecionava uma por uma e separava-as pelo gosto de cada cliente. Feito isso, mandava seu homem de confiança, Biu de Serafim, avisar com muita discrição que havia chegado carne nova no pedaço.

Seu Otávio, homem de meia idade, nunca deixava escapar uma noitada com uma dessas meretrizes, mas também nunca foi homem de dormir fora de casa. Prezava a discrição e as aparências, enfim.

Entrava no cabaré pela porta dos fundos para não ser notado. Não era chegado às bebidas, mas antes de se lambuzar com a rapariga, tomava uma cerveja pilsen natural. Dizia que, gelada, podia prejudicar sua a voz, que não era lá essas coisas.

Um belo dia, saciado da sua fome de sexo, Seu Otávio Leicam ensaiava a sua saída discreta do recinto. Na ocasião, não adiantava sair pela porta dos fundos, pois o ambiente já estava todo tomado pelos seus freqüentadores e por qualquer porta que saísse seria reconhecido.

De repente, Alaíde Macarrão tem uma idéia brilhante, pede licença aos presentes e diz que vai apagar a luz por um instante, para a saída de um homem de bem. Escuro total! Seu Otávio sai tateando com a ajuda do seu velho guarda-chuvas. Ao passar pela sala, com sua voz roufenha, apegado aos bons modos e aos hábitos, diz: BOA NOITE SENHORES, FIQUEM COM DEUS. Todos respondem em uníssono: BOA NOITE SEU OTÁVIO, ATÉ LOGO. PASSE BEM!

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