O primeiro sequestro – e talvez o mais grave – foi do termo justiça. A corporação jurídica, com suas origens nítidas nas castas sacerdotais levitas, apropriou-se de uma palavra que sempre remete a muito mais que as simples operações envolvidas na solução de conflitos entre partes.

Justiça, assim sem mais explicações ou considerações sobre significação construída historicamente, faz pensar em absolutos, em resultados emanados de alguma intermediação com o divino. O termo é dos mais equívocos disponíveis e a escolha foi inteligentíssima pela corporação: O que são operações de adequação de fatos a moldes legais e, outras vezes, manifestações de puro capricho e voluntarismo, tornou-se o dito final: justiça.

A reserva de atuação de certas corporações de ofícios gera problemas imensos quando o desempenho destes ofícios sai da esfera puramente privada e torna-se em serviço público. Sequestrado pela corporação, o que deveria ser um serviço passa a ser oportunidade da corporação fazê-lo sob medida para atender apenas a seus interesses, ou primariamente a estes e secundariamente a todo o restante.

No Brasil, como na maioria dos países, as funções de solicitar, defender, acusar e decidir são reservadas aos graduados em direito e algumas exigem também aprovação no exame de suficiência para a advocacia. Nada disso, vistas as coisas de longe, assegura o efeito mágico sempre invocado: qualidade.

Assim é porque o exame afere o que foi desenhado para ser aferido e isso, circunstância e histórico como é, nunca poderá ser um absoluto atemporal. Hoje, para ser mais específico, o famoso exame de ordem dos advogados, assim como os exames de suficiência técnica para cargos públicos, não passam de testes de sagacidade e conhecimento dos modismos mais recentes.

É recomendável que assuntos criminais e outros relacionados a penalização tenham defesas técnicas, tamanhas são as possibilidades de erros formais que dificilmente seriam percebidos pelo acusado. Semelhantemente, causas privadas entre partes de grande capacidade econômica tendem a demandar solicitadores e defensores com alguma técnica, até porque muito será explicado aos julgadores.

A exclusividade do solicitador autorizado pela corporação de ofício justifica-se e recomenda-se numa porção muito pequena dos casos, se virmos a coisa sob a ótica do interesse do solicitante, que raras vezes precisa mesmo de ajuda técnica. Conclui-se que em grande parte é nada mais que reserva de mercado.

Realmente, a enorme maioria das causas a entupirem os tribunais brasileiros envolve o Estado como réu e não apresentam grande complexidade. Quando o Estado é réu é impossível ignorar que o poder judicial entra em cena como instâncias superposta de revisão de decisões administrativas, por menos que isso soe simpático à corporação.

Alguém pede, por exemplo, aposentadoria ao instituto público e tem o pedido negado. Irá ao judicial, depois, repropor a mesma solicitação, talvez com os mesmos documentos. O primeiro pedido não implicou solicitação técnica, apenas preenchimento deste e daquele formulário e apresentação de um e outro documento.

O judicial decidira a partir das mesmas coisas que o postulante dissera nos formulários e a partir de algum documento mais que imporá ao instituto previdenciário que apresente no processo. O que se conclui, por escandaloso que possa parecer, é que se tem a superposição de duas estruturas e, pior, a geração de trabalho simples e de ganho quase certo para solicitadores. Tudo, convém não esquecer, custeado ao final pelo mesmíssimo Estado.

Ou seja, causas de pouca complexidade e enormes volumes deveriam ser propostas sem necessidade de solicitador técnico corporativo, porque o poder judicial, no final das contas, as decide independentemente do que tenham argumentado os solicitadores e os defensores do Estado. A decisão judicial, como quase toda opinião, já está pronta, à espera somente de algum ajuste aqui e acolá.

O que se chama defesa técnica, na enorme maioria dos casos, não passa de um texto pre-fabricado que não será lido. Importantes são informações que as partes podem trazer para o processo e o Estado sempre assume esse ônus quando as detém.

O que se percebe sem muito esforço é que o sistema funciona muito mais em função de seus interesses corporativos que como algo feito sob medida para que a resolução de conflitos possa acontecer de maneira adequada. Mais grave, considerando-se o absurdo número de ações judiciais que envolvem o Estado, é que esta entidade pagará tudo, tanto seus funcionários administrativos, como defensores, como julgadores e pessoal do poder judicial. E pagará os advogados cujo trabalho resume-se a encontrar os clientes.

Essa litigiosidade em bases deformadas e quantidades obscenas revela que ao sistema e à corporação interessam os conflitos, a ambiguidade normativa, a má técnica legislativa, o despreparo dos serviços administrativos e o protagonismo judiciário. Tudo isso junto e preferencialmente sempre crescente, interessa a todos, porque resolvedores de problemas só se justificam se houver sempre problemas.

Isso tende a chegar a certo ponto em que o custo altíssimo em desproporção à utilidade real fica claro. Já se passou, no Brasil, do ponto em que o sistema resolvedor de causas envolvendo o Estado é mais caro que os pagamentos a serem feitos. Isso, porque a história pode ser esquecida e até meio retardada mas nunca travada, cobrará o preço cedo ou tarde.