Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Comeram Lurdinha! Um episódio de Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi só tinha luz elétrica, até meados dos anos 1950’s, das 5 da tarde às 10 da noite. Quando dava 10 para as 10 da noite, a luz dava uma piscada em toda a cidade e diziam que a “usina” estava avisando que “iam soltar a onça”.

Os candeeiros eram acesos e as pessoas retornavam às suas casas para ainda conversarem um pouco ou ir logo dormir. Tinham, enfim, 10 minutos entre a piscada da luz e a chegada em casa com as precárias luzes nas ruas ainda acesas.

Os bares mais perto da zona de meretrício continuavam funcionando até perto das 11 horas da noite, iluminados a candeeiro de querosene, e os que se detinham lá até depois das 10 horas sempre levavam nos bolsos lanternas de pilha, para verem os buracos nas ruas no caminho de volta para casa. Nas noites de lua economizavam pilha, pois o céu era muito limpo e as ruas ficavam bem claras.

Foi em uma noite de lua que se deu o caso de Lurdinha.

Lurdinha, filha do já idoso, vermelho, brabo, com pressão alta, apreciador de uma charque bem salgada e asmático Seu Aprígio, e de dona Luzia, bem mais jovem, recatada, jeitosa e delicada, era, aos 18 anos, uma das mais cobiçadas prendas da cidade e namorava “sério e prá casar” com Zé Luís Lagrange, um rapaz de uns 23 anos de idade, metido a bonito, preguiçoso e o filho mais velho de Seu Luis da granja.

Zé Luís, o jovem namorador, dizia-se descendente de franceses, por conta do sobrenome, mesmo sabendo que o original do seu pai era mesmo bem popular e brasileiro; o nome José Luis Lagrange tinha sido escolhido e registrado no cartório pelo seu pai para  que o filho mais velho não enfrentasse as mesmas piadas. O fato é que o prosáico nome de família vinha desde o avô, que tinha começado o negócio de vender ovos de granja, ainda no início do século XX. Assim, Zé Luís afrancesou-se e tornou-se Lagrange.

Monsieur Lagrange, como vaidosamente apreciava ser chamado pelos colegas no ginásio,  onde não passou nos estudos, também deveria herdar a granja do pai e isso lhe dava a presunção de vir a ter uma renda para manter uma família, comprar bons sapatos e um dia até comprar um carro. Era assim, também, uma boa prenda quando analisado pelo lado das mães com filhas para casar.

Em uma sexta-feira, como de hábito, Zé Luís namorava com Lurdinha no terraço da casa dela, já perto das 10 horas da noite, enquanto Seu Aprígio cochilava ouvindo o rádio e Dona Luzia fazia um crochê,  e tinha um olho no cochilo de Seu Aprígio e uma mão nas pernas de Lurdinha.

Foi aí que a tensão subiu mesmo e resolveram que seria no dia seguinte, um sábado de lua, que iam “partir para os finalmente”. Tinham somente que fazer Seu Aprígio dormir mesmo cedo e profundamente e não somente cochilar, e também dar um jeito de que Dona Luzia fosse mais tolerante no “agarra-agarra” deles no terraço e fizesse “vista grossa”.

Essa última parte da trama não era tão difícil, pois Lurdinha sabia pela mãe que o “velho Aprígio” já não dava conta de Dona Luzia e que ela tinha lhe dito – Jesus me perdoe – que estava a ponto de pensar em arrumar alguém com quem se virar. Mas, nada disso estava confirmado e nem o Padre Almiro tinha ouvido alguma coisa de Dona Luzia nas confissões, só informações de segunda mão passadas pelo seu sacristão.

Verdade é que Dona Luzia vinha fazendo freqüentes consultas ginecológicas com Dr. Aluizio e comprando remédios na farmácia, e especulavam que tivesse com algum problema de útero, o que gerou uma certa solidariedade das amigas e até também a suspeita de que Seu Aprígio tivesse pegado alguma coisa na zona e passado para Dona Luzia. Tomava também, com orientação do Dr. Aluizio, Belergal e Maracujina para as crises de ansiedade e de insônia.

No sábado planejado “para os finalmente” por Zé Luis e Lurdinha, essa conversou com a mãe e disse que não agüentava mais os hormônios em excitação e que ia “se perder” de noite com Zé Luís, no terraço de casa mesmo. Entretanto, precisava da ajuda da mãe para botar Seu Aprígio para dormir pesado e mais cedo e insinuou que desconfiava das idas da mãe ao consultório de Dr. Aluizio, pois aparentemente ela não tinha doença nenhuma em casa e também não tomava os remédios nem usava as pomadas que comprava na farmácia.

Dona Luzia, encurralada pela verdade desconfiada pela filha, concordou em dar uma dose castigada de Belergal e de Maracujina a Seu Aprígio, logo depois do jantar, e a ficar lá dentro de casa das 10 às 11 horas da noite, deixando a porta aberta; depois disso tinha mesmo que fechar a porta da casa pois algum bêbado vindo da zona podia parar na casa com a porta aberta e o candeeiro aceso e perguntar se tinha morrido alguém.

Às nove e meia da noite do sábado, lua bem clara e romântica, seu Aprígio já dormia e roncava pesado na cadeira de balanço enquanto Dona Luzia prosseguia no seu crochê e Zé Luis e Lurdinha em seus trabalhos manuais. Dez da noite e a luz apagou, com Zé Luis olhando para os lados para ver se ainda tinha alguém na rua. A noite de lua tinha atrapalhado os planos dele, pois uma turma já com muita aguardente na cabeça resolveu fazer uma serenata com violão bem no meio da rua. Lá pelas 11 horas os bêbados não conseguiam mais cantar nada, muito menos tocar violão e resolveram ir embora.

Sem perder tempo, Zé Luis partiu prá cima de Lurdinha com toda a sua experiência em sair com as meninas da zona “já amaciadas”.

Com pouca instrução sobre como eram “os finalmente” em termos de incômodos imediatos, Lurdinha começou a gritar um alto “ai, ai, ai” que acordou Biu de Serafim, que cochilava deitado na calçada por conta da cachaça que tinha tomado com os seresteiros.

Entendendo de imediato o que tinha acontecido, Biu de Serafim” deu uma boa risada e gritou também bem alto para toda a cidade ouvir:

–  COMERAM LURDINHA !

Logo os vizinhos também abriram as portas das suas casas e saíram para ver o que estava acontecendo, não dando muito tempo  para que Monsieur Zé Luis Lagrange se ajeitasse e desaparecesse de vista. Estava claro, o escândalo tinha sido mesmo coisa do vadio do Zé Luis.

Mesmo com todo o Belergal e a Maracujina que Dona Luzia tinha lhe dado para dormir, Seu Aprígio também acordou e, ao ver a situação formada dentro e fora da sua casa, teve um passamento, caiu com os olhos esbugalhados e um braço e uma mão entortada. Dona Luzia, que já estava de camisola para ir dormir, correu para chamar o Dr. Aluizio que, ao vê-la naqueles trajes e àquela hora na porta da sua casa, foi logo dizendo:

–  Aqui não, Luzia, segunda-feira no consultório às sete da noite.

Foi quando Dona Luzia explicou a Dr. Aluizio que Seu Aprígio tinha tido um passamento e que tava todo entronchado no chão.

Dr. Aluizio tirou logo o pijama e vestiu a roupa de médico, pegou sua maleta de primeiros socorros e foi com Dona Luzia ver Seu Aprígio. Ao chegar, aferiu logo a pressão arterial do paciente e constatou que estava altíssima e que Seu Aprígio devia ter tido um sério e provavelmente fatal derrame cerebral. Sabia que Seu Aprígio, se sobrevivesse, mataria alguém que ele soubesse  ter feito mal a Lurdinha, ou dado em cima de Dona Luzia, e aí disse:

–  Ele precisa ser bem tratado. O que ele gosta de comer?

–  Charque bem salgada, respondeu Dona Luzia.

–  Pois é, disse Dr. Aluizio,  ele vai ficar assim meio esquisito por uns dias e a senhora deve fazer todos os gostos dele. Pode dar a ele o que ele gosta de comer, e até uma caninha e uma boa carne de sol lá do Araripe; insista também com ele para ele ir prá cama com a senhora, exercício faz bem prá quem tem passamento.

No dia seguinte, depois do almoço, conforme esperado por Dr. Aluizio, Dona Luzia, Lurdinha e Zé Luis, Seu Aprígio teve outro passamento e, lamentavelmente, morreu…

Menos de um mês depois, Zé Luis Lagrange se mandou de Anus Mundi para Teresina dizendo que ia estudar para o concurso do Banco do Brasil e Lurdinha nunca mais ouviu falar dele.

O bispo, os índios e o médico de Anus Mundi em: “Esse milagre é meu!”

Por Sidarta.

Corria o ano de 1917 e três crianças educadas em um catolicismo medieval viram e conversaram muito com Nossa Senhora, e ainda pintaram o sete com a lei da gravidade fazendo variar erraticamente a órbita do sol… Isso por várias vezes, ali pelo Ribatejo, em Portugal.

Esses eventos, reconhecidos pela igreja católica como sendo milagres, promoveram a realização de muitos filmes de cinema com o intuito de divulgar a religião e de melhor distribuir e circular a renda dos fiéis.

Em meados dos anos 1930’s, em Anus Mundi, no Piauí, chegou uma versão ainda muda do filme da tal aparição de Nossa Senhora aos três meninos portugueses. O cinema, o cartório e a pia batismal estiveram lotados por vários dias, com o tabelião e o padre recusando-se a registrar e a batizar crianças com os nomes de Francisco, Jacinta ou Lúcia, tal iria ser a previsível confusão na cidade anos depois.

No alto da serra próxima à cidade, nos contrafortes do Araripe, vivia uma família também muito beata e com três filhos que, por pura coincidência, eram duas meninas e um menino. Essa família veio a Anus Mundi para ver o filme das aparições de Nossa Senhora.

O filme só não foi mais visto em Anus Mundi do que “Os Dez Mandamentos”, que apareceu muitos anos após, mas superou o número de assistentes de “La Violetera” já nos anos 1960’s.

Perto do local onde viviam as tais crianças, vivia também uma comunidade de pessoas que se proclamava descendente de índios e era, até então, humilde, pacífica e que compartilhava entre os seus membros os poucos recursos que tinham.

Não deu outra, dias depois os meninos resolveram subir em uma pedra lá no alto da serra perto de onde moravam, na esperança de também ver Nossa Senhora, e a viram mesmo… segundo eles. Receberam até instruções específicas da santa para que combatessem ferrenhamente o comunismo ateu, coisa de que não tinham a menor idéia do que se tratava, mas de que já tinham ouvido os seus pais falando em casa.

A notícia chegou logo aos ouvidos do bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi, aos da comunidade de índios que vivia por perto e aos do médico da cidade.

Cuidadoso, o bispo enviou ao alto da serra um padre experiente em exorcismos e em desmascaramento de falcatruas para entrevistar as crianças, que voltou atestando o milagre das aparições, mesmo ele não conseguindo ver ou ouvir nada do que as crianças diziam ser a conversa com a santa, e também o propalado poder curativo do ar e da escassa água do riacho que passava no fundo do vale e que atravessava algumas plantações e currais de gado.

Voltou também com algum dinheiro para comprar uma batina nova, sapatos e chapéu eclesiástico, e também uma sela nova e mais confortável para o seu cavalo.

Era preciso, agora, definir um nome para a santa e conseguir um milagre, ou de preferência três, para que se iniciasse o processo de homologação das aparições e da santidade do local, assim como a igreja já reconhecia Lourdes, na França, Fátima, em Portugal, Aparecida, em São Paulo, e tantos outros mais.

Alguém às portas da morte deveria tomar um pouco da água do riacho no alto da serra, pedir uma graça e se recuperar, pensou o bispo.

Em uma semana o senhor bispo conseguiu um voluntario, um cidadão com a barriga inchada e sinais de cirrose alcoólica avançada, e o fez tomar da água do riacho da serra que atravessava plantações e currais de gado. O coitado morreu de diarréia dois dias depois, fazendo o bispo suspeitar de que a água não servia, pelo menos, para cirrose alcoólica nem para andaço. Mas, talvez servisse para reumatismo, uma doença muito comum em locais frios e úmidos no inverno.

Levando a coisa mais a sério, foi o senhor bispo diocesano, que tinha reumatismo, quem resolveu ir discretamente a Anus Mundi e passar pessoalmente uns dias no alto da serra bem perto do local da aparição nordestina de Nossa Senhora a três crianças piauienses, Raimundo, Severina e Maria, em uma casa até onde se conseguia chegar a cavalo e cujo local Sua Excia. Reverendíssima denominou de Cova do Pé da Serra. A santa tornou-se, inevitavelmente, Nossa Senhora da Cova do Pé da Serra.

A viagem a cavalo serra acima o deixou cansado no primeiro dia e o reumatismo piorou; no segundo dia sugeriram a ele que tomasse da água do riacho, coisa que ele fez, mas depois de mandar ferver a água, evaporando, talvez, os seus fluidos etéreos curativos: também não funcionou. No terceiro dia o bispo concluiu que nas habilidades específicas daquela santa anusmundense não estava a cura do reumatismo, desceu a serra a cavalo e voltou para a sede da sua diocese para pensar.

Foi aí que os pretensos índios, que moravam lá por perto há muito mais tempo, disseram na feira de Anus Mundi que as pessoas lá na serra tinham pouca tosse e asma, provocando um grande fluxo de romeiros asmáticos ao alto as serra para experimentar a cura, agora também orientada pelo pagé da tribo que dava um chá complementar de ervas secretas aos seus pacientes.

Passaram também os índios a cobrar uma “taxinha” de trânsito pelo seu território aos que desejavam chegar até o tal local de aparição da santa, e não se contentavam em ficar somente na parte alguns metros mais baixa do terreno onde moravam os índios e trabalhava o pagé.

De imediato, caiu sensivelmente o movimento de asmáticos na farmácia de Anus Mundi e no consultório do doutor, indo os dois, o farmacêutico e o médico, junto com o padre local conversar com o prefeito para que estudassem uma solução mais empresarial para a mina de ouro que tinham achado  na cidade e que agora os índios estavam criando dificuldades para que fosse devidamente explorada.

A muito desejada solução economicamente conciliatória chegou rápido: a igreja ia emitir um decreto papal “Ad Revisionem Locus Miracoli Mater Dei Anusmundensis”, trazendo o local das aparições para fora da área do pedágio dos índios; o médico ia fazer uma palestra no cinema sobre os perigos para a saúde ao se tomar água do riacho da serra; as crianças viriam ver e conversar com Nossa Senhora da Cova do Pé da Serra no novo local, que ia ter estrada calçada com pedras e onde os mais dotados podiam até chegar de carro de praça; o prefeito ia mandar construir uma imensa imagem da santa com as três crianças ajoelhadas batendo papo com ela; e iam pensar também em como construir um hotel na cidade que fosse mais atraente aos romeiros que vinham de fora do que a antiga Pousada da Rodagem, que também funcionava como um motel primordial.

Para refinar a decoração do novo local das aparições, o prefeito contratou um caro escritório de arquitetura e uma construtora de Teresina para projetar e construir as novas instalações para a sua santa, incluindo uma fonte de água tratada, levada até lá em latas no lombo de burros e que, quando posta a funcionar quando chegavam romeiros de fora, não matava ninguém de diarréia.

Os pais das crianças também ficaram com o seu quinhão: os meninos foram alfabetizados e autografavam os livros com as suas biografias, e a loja de souvenires vendia santinhos, fitas, terços e medalhas (todas com a inscrição “Ad Revisionem Locus Miracoli Mater Dei Anusmundensis” impressa na periferia em torno da imagem da santa da Cova do Pé da Serra.

Na época do São João havia festas no local e é até possível que o nome de “Forró de Pé de Serra” tenha surgido por lá.

No frigir… os capitalistas e a igreja combateram mesmo o comunismo ateu e acabaram o negócio dos índios.

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

A cosmopolita Cusco.

Antes de partirmos para Cusco, permitam-me compartilhar que a vontade primeira de conhecer o Peru partiu de saudosos encontros, em Campina Grande, nos quais fatalmente, cedo ou tarde, bons amigos de sobriedade questionável cantarolavam, junto com Mercedes Sosa, Acercate Cholito. Começou daí meu fascínio pelo país.

Pois bem. De Lima, partimos para Cusco, pela Peruvian Airlines, fornecedora dos bilhetes mais baratos, comprados pouco antecipadamente, no Brasil. Viagem confortável, convém registrar, uma vez que o velho 737 preservou nossa integridade física, diferentemente dos novos que por aqui operam, equipados com seus ínfimos e violadores espaços entre as poltronas.

Vale mencionar, ainda, que – inobstante a brevidade do voo e o pouco valor pago, comparado com o preço dos bilhetes brasileiros, em semelhantes condições de procura – nos ofereceram um lanche bastante razoável. Não que comida em avião seja primordial, não o é. Paga-se pelo deslocamento, afinal. Mas, ter a impressão de não ser tratado como carga, e pagar menos por isso, é desconcertante.

Chegamos a Cusco, enfim. Do alto, não parece a cidade acolher população superior a trezentos mil habitantes, segundo as duvidosas informações das enciclopédias virtuais. Engano meu, a cidade não é pequena.

Embora temido, o soroche – indesejado efeito da altitude – não nos vitimou, em momento algum da viagem. Nem mesmo logo após a chegada, em que me aventurei de imediato no prato típico da região, o porquinho cuy, embora alertado de que não deveria exagerar na alimentação. Eu, que como tudo que voa, nada ou rasteja, devorei e aprovei a iguaria, sozinho, já que Leila sequer a tocou. Resistências gastronômicas femininas…

O Cuy

Hora de caminhar. Topografia acidentada, ruas estreitas e – embora a colonização hispânica tenha muito destruído – resquícios incas estão em todos os lugares. Destes, o que mais impressionou na cidade foi o templo dedicado ao sol, Qorikancha, que teve seu ouro levado pela ganância dos colonizadores, mas preservou a beleza e precisão dos imensos encaixes de pedras.

O Qorikancha

Do tempo colonial, armações de madeira e sacadas de entalhes delicados, além de lindas igrejas.

A Catedral de Cusco

Andando um pouco mais, modernos restaurantes e lojas, inúmeras agências de turismo e a razão de ser dos empreendimentos: muitos – mas muitos mesmo – turistas! De dar na canela, como falamos em Campina. Assediados a cada passo para conhecer algum sítio arqueológico, cambiar ou apreciar um artesanato.

Gente do mundo inteiro, notadamente europeus e asiáticos, com suas agressivas fotográficas, que fizeram meu presente de aniversário parecer a Rolleyflex de Tom Jobim. (Uma pausa, pois Leila rebate implacável e violentamente minha ingratidão).

Um tarde foi suficiente para aproveitar passeios incríveis nos arredores de Cusco. Ruínas imponentes, ousados sistemas hidráulicos e geladas mesas de pedra para mumificação retratam a habilidade dos antigos moradores. Esses incas eram uns cientistas mesmo. Risos.

À noite, foi a oportunidade para conhecermos alguns, dos muitos, bares da cidade. Pessoas de todos os lugares do planeta a se divertir e tomar porres de pisco, a cachaça dos peruanos. Com o avançar da hora e a sobriedade abalada, era hora de se recolher.

Dividimos um táxi com uma simpática jovem colombiana. Subitamente, recordei os amigos e comecei a cantarolar Acercate Cholito. A colega colombiana, de pronto e inusitadamente, acompanhou. Se o taxista gostou, eu não sei! Mas ele já devia estar acostumado com turistas cantores, de afinação duvidosa.

Despedimos-nos com risos e uma sensação curiosa de pertencimento…

O papagaio de Jeremias. Episódio da vida anusmundense.

Por Leo de Picos.


Jeremias nasceu e criou-se em Anus Mundi. Era filho do sacristão da matriz de São Sebastião, chamado José Teobaldo, conhecido pela alcunha de Zé Catolé. Zé Catolé foi pai de onze filhos, sendo quatro mulheres e sete homens. Jeremias foi o sexto dessa linha de produção.

Todos podem imaginar a dificuldade de se criar tanta gente com o salário de sacristão, mas cada filho que ficava taludinho ia procurando ou inventando uma viração para ajudar nas despesas. Jeremias desde menino despontava como o mais esperto, inteligente e criativo.

Era afilhado do Padre Almiro, que foi quem lhe deu esse nome. Chegou à igreja para o batismo alguns dias após ter nascido e seus pais não sabiam que nome lhe atribuir. Geralmente os batizados celebrados pelo Padre Almiro eram feitos no atacado. O vigário só atendia individualmente casos especiais, como crianças que estivessem doentes e prestes a morrer ou então aquelas filhas de pessoas influentes da cidade e de bom poder aquisitivo.  Até porque a igreja vive das doações de seus bons e generosos fieis.

Na hora da cerimônia, Padre Almiro vira-se prá Zé Catolé e D. Prazeres, sua mulher, e pergunta o nome da criança e quem são os padrinhos. A resposta veio na bucha: nem tem nome nem padrinho! O senhor, padre, é quem vai dar o nome e ser o padrinho. Padre Almiro não estranhava porque essa era uma prática comum nos dias de batizado. Vira-se prá dona Paixão, sua ajudante, e manda olhar na relação se ainda tem algum nome disponível. A resposta foi negativa. Todos já estavam riscados. Vira-se mais uma vez prá Zé Catolé e pergunta: que dia nasceu?  O pai teve dúvidas mas dona Prazeres respondeu de pronto:  primeiro de maio! A ajudante, dona Paixão recorre à folhinha do santo do dia e diz ao padre que primeiro de maio é dia de São Jeremias. Pronto, é Jeremias!

Jeremias criou-se dentro dos ensinamentos da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Foi coroinha de Padre Almiro, aprendeu o ofício de sineiro.

Era um menino batalhador.  Adorava ganhar dinheiro. Apesar de conviver dentro da igreja era temperamental ao extremo. Não guardava desaforo, era portador de uma pequena gagueira e saía na tapa com quem fizesse qualquer tipo de gozação. Não sei se coincidência ou coisas de Deus, mas dizem que São Jeremias também era gago.

Na adolescência, fugiu num circo que havia armado na cidade. Passou vários anos desaparecido. Um belo dia volta prá cidade aquele sujeito forte de tamanho avantajado, casado com uma cabocla baiana chamada Jurema, que ele conheceu nas suas andanças. Vem com uma atividade que não tem nada a ver com suas raízes religiosas: PAI DE SANTO!

De início, muita gente estranhou, mas logo foram se acostumando.

Jeremias, com seu espírito empreendedor e pensando se dar bem na vida,  montou seu terreiro numa localidade chamada Caldeirão do Periquito, que ficava próxima à entrada da cidade.

O tempo foi passando, o negócio foi dando certo e sua fama de grande Xangozeiro foi se espalhando; vinha gente de toda a região e de lugares distantes, até de outros estados, na busca de cura para os seus males e soluções para os seus problemas.

No altar de seus orixás, existiam Caboclos, Pretos-Velhos, Exus, Pombas-Gira, Zé Pilintra e outros.

Em seu templo, Jeremias criava um papagaio, muito falador, que era seu grande companheiro. O animal assistia aquelas manifestações e se mantinha calado, numa postura eticamente correta para um animal, o que agradava ainda mais ao seu dono. De vez em quando o papagaio, mesmo calado, apresentava alguns sintomas de que estava recebendo alguma entidade do além e era preciso uma ação imediata de Jeremias, que fazia uma pequena sessão de desobsessão e depois  colocava um pequeno galho de arruda em baixo de sua asa esquerda… e a coisa se acalmava.

Heleno Fogueteiro gostava de tomar umas cachaças e fazer arruaças quando tava com o “quengo cheio da maldita”. Um belo dia, depois de passar o tempo todo enchendo a cara, juntou-se com mais dois iguais e resolveu alugar um carro na praça e ir até o terreiro de Jeremias acabar com o xangô.

O salão lotado, chega Heleno, vai até o altar puxa a toalha, derruba todas as imagens e as oferendas ali  colocadas. A mais danificada foi a de Zé Pilintra, que teve a cabeça decepada na queda.

Jeremias, imediatamente, agarra-se com Heleno e seus companheiros e  começa uma briga. Os amigos???  Quando notaram que a barra era pesada pegaram o beco e deixaram Heleno sozinho nas garras do xangozeiro. Nessas alturas o salão fica vazio. Corre todo mundo. O quebra-quebra era grande. Depois de muito tempo, após escutar o barulho de um tiro, Euzébio, o motorista que levou Heleno, toma coragem e consegue entrar no salão e tirá-lo das garras de Jeremias.

O tiro tinha sido disparado pelo Pai de Santo mas pegou de raspão. Heleno levou uma surra tão grande que ficou desacordado por algum tempo, até Euzébio pegá-lo pelo ombro e levá-lo até o carro. Na saída passaram defronte ao papagaio, que foi a única testemunha a assistir toda aquela cena. Nessa hora, o papagaio vendo Heleno todo arrebentado, o sangue escorrendo pela cara, como que querendo enaltecer a vitória do seu amo, diz em bom português:

“Fu…fu…fudeu-se, na volta de Je…Je…Jeremias e de Zé Pi…Pi…Pilintra não tem moleza!!!”

Uma sessão espiritista tumultuada, em Anus Mundi.

Por Sidarta

Lamento informar, de antemão, que alterei os nomes de alguns dos personagens dessa estória, que é real, pois penso que ainda não devem estar todos já mortos. Peço perdão às famílias dos personagens, se forem reconhecidos, mas não resisti em não contar esse fato histórico, ilustrador e divertido que ouvi de um conhecido anusmundense. Agradeço também à Sra. Gautama pela ajuda na escolha de alguns nomes para os personagens.

Era um mês de dezembro no fim dos anos 1960’s e fazia um calor de arrombar em Anus Mundi, interior do Piauí, em uma tarde de sábado… e Madame Otília (ex Severina Barracão, na juventude) estava se sentindo muito ocultista.

Ela tinha colocado um vestido branco longo, todo solto e esvoaçante, e a sala da sessão estava iluminada por velas, cada vela cuidadosamente enfiada em uma garrafa de cana. Havia três outras pessoas na sessão de hoje.

Dona Carminha, com um boné verde escuro do já insipiente movimento ambientalista; Seu Otacílio, fino e pálido, com olhos meio embaçados; e Maristela Pereira, de cabelo cortado recentemente em Teresina no estilo “Hoje, na Avenida”, no salão de dois jovens e promissores cabeleireiros, e que era convencida de que ela própria tinha profundidade ocultista ainda não explorada.

A fim de melhorar os aspectos ocultos de si mesma, Maristela tinha começado a usar e abusar de sombras verdes e de bijuterias “de prata legítima” adquiridas em uma tal de “feira do Paraguai”, em uma viagem de iniciação que fez a um grande centro esotérico em Brasília. Ela achava que era sexy e gostava também de ser vista como romântica, e até seria se perdesse uns trinta quilos.

Estava convencida de que era anoréxica porque cada vez que se olhava no espelho ela via uma pessoa gorda.  Como anoréxica, tinha lido que devia sempre comer um pouquinho mais.

“Vocês podem ficar de mãos dadas?” perguntou Madame Otília. “Devemos fazer silêncio. O mundo dos espíritos é muito sensível a vibrações.”

“Pergunta se Ronaldo já está por perto”, disse Dona Carminha.

“Espere um pouquinho, querida, fique tranqüila enquanto eu faça o contato.”

Madame Otília tinha deduzido, através de anos de experiência “nos mistérios” em muitas localidades do Piauí e do Maranhão, que dois minutos era o tempo certo para sentar-se em silêncio, esperando para o “mundo dos espíritos” fazer contato. Mais do que isso e os clientes ficavam indolentes, menos do que isso e eles sentiam que não estavam recebendo pelo que estavam pagando.

Na hora H, Madame Otília jogou a cabeça para trás com os olhos quase fechados.

“Ela agora vai, minha filha,” sussurrou Dona Carminha para Maristela Pereira. “Não fique assustada, ela apenas tá fazendo uma ponte para o outro lado. Seu guia espiritual chegará daqui há pouco”.

Madame Otília ficou meio puta da vida com a interrupção antes da hora e soltou um “Oooooooooh”. Em seguida, disse em uma voz alta: “Estás aí, meu guia?”

Esperou um pouco, para aumentar o suspense, e depois disse: “É você, Jerônimo?”

“Sou eu mesmo”, falou em nome de Jerônimo.

“Temos um novo membro hoje no círculo”, disse ela.

“É Maristela Pereira?” perguntou ela, como Jerônimo.

Ela ouvia no rádio as aventuras de Jerônimo, o herói do sertão, e gostou do nome para adotar para o seu guia espiritual.

“Oh”, guinchou Maristela. “Prazer em conhecer”.

“Ronaldo tá aí Jerônimo?” foi logo perguntando Dona Carminha.

Madame Otília, a ponto de perder a paciência, disse: “Tem um magote de almas perdidas aqui na porta da minha casa, talvez Ronaldo esteja no meio delas”.

Ela tinha aprendido que nunca deveria trazer Ronaldo no começo da sessão; se trouxesse Dona Carminha ia ocupar o resto da sessão dizendo a Ronaldo tudo o que tinha acontecido em Anus Mundi desde o seu último bate-papo (“… Ronaldo, você se lembra de Lurdinha, filha de Seu Toinho, virou puta e agora só quer ser chamada de Shirley; e Rosinha, filha de Seu Nonô, assumiu de uma vez e foi morar lá prás bandas de São Luis com uma mulher rica de uma família de políticos com um nome complicado”.

Um clarão de um relâmpago, seguido quase imediatamente de um estrondo de trovão fez Madame Otília se sentir bastante importante, como se ela tivesse feito isso sozinha. Foi ainda melhor do que as velas na “criação do clima”.

“Agora”, disse Madame Otília em sua própria voz, “Jerônimo gostaria de saber se existe aqui alguém chamado de Otacílio”?

Os olhos embaçados de Seu Otacílio brilharam. “É, é o meu nome”, disse ele.

“Certo, tem alguém aqui que quer falar com você”.

Seu Otacílio tava vindo às sessões fazia um mês e Madame Otília ainda não tinha conseguido imaginar uma mensagem particular para ele. Sua hora tinha chegado. “Você conhece alguém chamado de, hum, João?”

“Não”, disse Seu Otacílio.

“Bem, há alguma interferência celeste aqui. O nome pode ser José, ou Luis, ou Eraldo”.

“Eu me lembro de um José do tempo que eu tava no seminário,” disse Seu Otacílio.

“Sim, ele tá dizendo que foi do seminário”, disse Madame Otília.

“Mas eu encontrei ele na semana passada na feira de Picos e ele não parecia estar doente,” disse Seu Otacílio, um pouco perplexo.

“Ele tá dizendo prá não se preocupar, e que tá feliz lá em cima,” falou Madame Otília, que já tinha entendido que era sempre melhor dar a seus clientes boas notícias.

“Diz a Ronaldo que eu tenho umas novidades para contar a ele”, falou de novo Dona Carminha.

Aconteceu que, logo em seguida, algo veio mesmo do além e entrou na cabeça de Madame Otília.

“Sprechen sie Deutsch?”, disse “ele”, usando a boca da Madame Otília.

“Parlez-vous français?”

“Do you speak English?”

“É você, Ronaldo? “, perguntou Dona Carminha.

A resposta, quando chegou, foi bastante irritada.

“Não, de jeito nenhum. Uma pergunta tão besta como essa pode apenas ser feita em um país de ignorantes e desesperados, aliás, tenho visto muito isso durante as últimas horas. Minha Senhora, eu não sou Ronaldo”.

“Bem, eu quero falar com Ronaldo,” disse Dona Carminha, um pouco tensa. “Ele é baixinho e careca em cima da cabeça. Você pode chamá-lo, por favor?”

Houve uma pausa.

“Na verdade parece haver pairando por aqui um espírito com a sua descrição. Vou chamá-lo, mas você deve falar rápido. Eu estou tentando evitar a invasão dos Estados Unidos pela União Soviética”.

Dona Carminha e Seu Otacílio olharam um para o outro. Nada disso já tinha acontecido em sessões anteriores.

Maristela Pereira sentiu-se imediatamente como uma participante da ação dos espíritos para evitar uma guerra nuclear. Isso era muito mais do que ela esperava e começou logo a imaginar que Madame Otília fosse começar a manifestar o seu ectoplasma.

“Oi Carminha”, disse Madame Otília em outra voz que soou exatamente como a voz de Ronaldo. Em ocasiões anteriores, Ronaldo falava como Madame Otília.

“Ronaldo, é você?”

“Sim, Carminha”

“Certo. Agora eu tenho umas coisas para lhe contar. Para começar, eu fui ao casamento de Betinha sábado passado, aquela galega sarará que é mais velha do que Ronaldinho..”

“Porra Carminha, você nunca me deixou falar enquanto eu tava vivo. Agora que tou morto eu sei dessas coisas todas e vou lhe dar um recado: tou de saco cheio com essa sua chateação”.

Anteriormente, quando Ronaldo tinha se manifestado, ele dizia que estava feliz no além e que morava em uma casa parecida com uma pousada celestial. Agora ele falou irritado como o velho Ronaldo.

“Ronaldo, lembre-se de que você é doente do coração”.

“Eu não tenho mais coração, eu já tou morto. Cala a boca”, e o espírito de Ronaldo “cortou o papo” e foi embora.

“Você deve é estar morando com alguma rapariga nessa sua tal de pousada celestial. Tá pensando que eu não vou me virar por aqui também?”, ainda disse Dona Carminha.

“Bem, agora agradeço muito, senhoras e senhor, infelizmente estão muito ocupados lá em cima e cortaram a ligação”, disse Madame Otília, completamente baratinada com o que tinha acontecido.

Foi aí que Dona Carminha arrematou: “Severina Barracão, eu lhe conheço, você ainda tá de conluio com Ronaldo, pensa que eu não sei das idas dele prá sua pousada na beira da rodagem antes de você mudar de negócio?”

Seu Otacílio, um sujeito calado e percebedor, procurou em seguida um centro espírita sério e acreditado para tirar as suas dúvidas existenciais, e depois contou o acontecido na casa de Madame Otília ao avô de um conhecido meu de Anus Mundi, que recentemente me repassou as informações que tentei relatar quase sem botar nem tirar.

O Bispo, o padroeiro da cidade e os índios, na procissão em Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi não tinha bispo, mas havia alguns padres de várias tendências políticas e sociais, e até de diferentes opções sexuais.

O padre Almiro, por exemplo, andava de lambreta e quase sempre com uma paroquiana ajudante de secretária do tributo à garupa. Disse certa vez o cronista Leo de Picos, que o referido padre também aparecia de vez em quando, devidamente disfarçado de representante de laboratório farmacêutico, no bordel de Alaíde Macarrão.

Outro reverendo, muito piedoso, adorava as criancinhas.

No dia da festa do santo padroeiro da cidade, invariavelmente, o senhor bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi deslocava-se de carro pela estrada de terra desde a sede da diocese, descia do carro perto da entrada da cidade, lavava o rosto e as mãos em uma bacia dentro de um armazém de secos e molhados, trocava toda a roupa de cima empoeirada e colocava as vestes completas e o chapéu imponente de bispo, tudo isso ao som de cânticos religiosos ensaiados pelas beatas (“ma non troppo”), para iniciar o cortejo solene até a igreja matriz, de onde dirigiria a procissão.

Ao longo do percurso do cortejo do bispo, ao som da banda da Sociedade Musical 20 de Janeiro, a gente, para ver melhor, subia até em postes de luz e nos bustos de concreto de dois notáveis anusmundenses entronados na praça anterior à da igreja matriz.

O evento era tão solene que algumas pessoas tentavam e conseguiam furar a proteção policial do bispo, quebrar o protocolo e tocar as suas vestes.

Era barato subornar um guarda municipal para chegar mais perto do bispo, que era um sujeito alto e magro, elegante mesmo, quase uma reprodução do seu chefe e ídolo em Roma, o papa Pio XII, a quem conseguia imitar nos gestos de concessão de benção, com os três dedos da mão direita em movimento de cruz e com a cabeça voltando-se continuamente da esquerda para a direita, de modo a que o campo magnético divino emitido por seus olhos e suas mãos tivesse uma amplitude de 180 graus e não deixasse ninguém fora do seu alcance.

Como o seu mentor em Roma, tinha sido treinado para olhar para o nariz das pessoas, e não para os olhos, como uma forma de evitar um contato mais revelador das fraquezas de também ser mortal; por conta disso tinha um olhar natural já meio estrábico.

Mentes mais sensíveis alegavam que conseguiam sentir um “arrepio” quando eram atingidas pelo tal campo magnético divino emitido pelos olhos e mãos do bispo, e muitas delas chegaram a ser entrevistadas pelo locutor da estação de rádio da cidade próxima de São Raimundo Nonato, o Grande, também no Piauí, descrevendo sensações parecidas.

A única dissonância nos relatos foi a de Biu de Serafim, ajudante no bordel de Alaíde Macarrão, que tinha tomado umas cervejas antes da chegada do bispo e disse que o impacto do campo magnético divino da benção episcopal lhe pegou da cintura para baixo e provocou uma súbita crise de incontinência urinária, depoimento que foi transmitido pela rádio, pois a transmissão era “ao vivo” e não deu tempo de cortar.

Os padres ficavam de olho nessas pessoas que davam entrevistas à rádio e depois as procuravam para saber se tinha ocorrido mesmo algum milagre digno de divulgação.

O sonho da comunidade e da igreja em Anus Mundi era o de ter um santo local, coisa muito comum em qualquer cidadezinha mais pequena do interior da Itália.

A história dos milagres do desejado santo não precisaria ser escrita e ser um dogma de fé acreditá-la, bastava conversar com alguma testemunha ocular ainda viva e a credibilidade seria total. Se o milagre com o toque no manto do bispo acontecesse perto da fonte de água na praça, aí a fonte se tornaria também milagrosa e o negócio da água benta engarrafada ia ser monumental para a igreja e para a prefeitura.

Lá pelas cinco da tarde, finalmente, o cortejo do bispo chegava à igreja matriz.

Na hora da procissão com a imagem do padroeiro da cidade, São Sebastião, um santo importado do estrangeiro, a comoção era geral, com pessoas pagando promessas por graças conseguidas “in totum” ou “em parte”; se alguém estivesse caminhando com um pé descalço e o outro com uma sandália é que a graça pedida não tinha sido totalmente alcançada. Esse acordo, e o “in tutum” ou “em parte”, tinha sido feito com o pároco de Anus Mundi.

Na saída da igreja matriz, todos se esticavam para ver a imagem do santo sendo martirizado, amarrado a um tronco, com o peito nu e todo crivado de flechas.

Um belo dia, nesse momento dramático da saída da imagem do santo da igreja matriz, o futuro Dr. T, um grande médico anusmundense da atualidade, (… e não aquele ginecologista meio “boiola” do filme “Dr. T e as Mulheres”, o ator americano Richard Gere), que era ainda criança pequena, mas já muito curioso sobre ferimentos e como tratá-los, perguntou a um tio que o tinha levantado nos braços para melhor ver a passagem do andor do santo: “tio, por que ele está todo flechado?”

E o tio respondeu: “veio da Itália para ser santo no Brasil e foi se meter a besta com os índios…”.

Morte na zona, danação eterna e indulgência papal… no interior do Piauí nos anos 50.

Um conto – ou talvez crônica – de autoria de Sidarta.

Há uma região no estado do Piauí, na fronteira com o Maranhão, conhecida como “caminho do céu”, pois quase todas as localidades na estrada principal possuem nomes de santos católicos.

A última localidade nessa estrada poderia ter qualquer nome, mas achei mais apropriado chamá-la de “Anus Mundi”, uma vez que parece ser isso mesmo e não me lembro, nem mais achei no Google Earth  o nome real do famoso lugar.

Nos anos 1940, saiu de Anus Mundi para ir estudar em Teresina um rapaz de futuro promissor, não tão baixinho, de cabeça tão pequena e sem pescoço como a maioria dos seus conterrâneos, e também dotado de uma boa voz (era locutor esportivo e torcia invariavelmente pelo Anus Mundi Futebol Clube – AMFC do Piauí).

Em Teresina, estudou direito e, nos anos 1950, conseguiu publicar um artigo em um jornal com uma proposta de tese sobre uma questão polêmica: atirar em alguém pelas costas, sem a vítima perceber quem estava atirando, era um crime maior ou menor do que atirar de frente?

O caso é que matava-se e morria-se muito de bala em Anus Mundi e redondezas por aqueles anos e, assim, a tese podia ter interesse prático!

Um advogado experiente do Ceará, aproveitou-se da discussão e passou a insinuar que se o criminoso conseguisse pegar a vítima olhando para um espelho, essa não poderia alegar que o tiro foi dado pelas costas (se escapasse do tiro) pois, para a vítima, ela percebeu o tiro como que vindo de frente pelo espelho.

Os advogados estavam tomando consciência das vantagens de conhecer um pouco da teoria da relatividade de Einstein, além do arsenal comum de lógica elementar.

A tese ganhou discussão e o nobre, jovem e promissor advogado conseguiu uma bolsa de estudos para fazer um estágio na Itália, onde conheceu o papa de Roma e também aproveitou a viagem, e parte do dinheiro economizado da bolsa, e comprou do Vaticano um certificado de indulgência, que supostamente lhe perdoava automaticamente alguns tipos de pecados, sem ter que  os confessar a um padreco qualquer.

Dentre os pecados incluídos no certificado (e aí eu desconfio que houve falcatrua, pois só era mostrada uma cópia heliográfica do certificado… o original o proprietário dizia que o mantinha em um cofre secreto), estava a dispensa da danação eterna se o proprietário do tal certificado emitido pelo Vaticano de Roma morresse, por exemplo, de repente… na zona.

Já no fim dos anos 1950, o bispo da diocese que englobava a localidade de Anus Mundi anunciou uma visita pastoral, um evento de importância monumental para a comunidade anusmundense.

Não há como descrever os preparativos dos moradores para a chegada do bispo, e até pessoas que já tinham deixado Anus Mundi para ir morar em Fortaleza, em São Luis e em Teresina (diziam que havia anusmundense até em São Paulo) vieram para prestigiar a visita do bispo.

Dentre os anusmundenses notáveis, veio o brilhante advogado que foi estudar em Teresina nos anos 1940 (já lidava em Teresina com uma bem conceituada banca), o proprietário da indulgencia papal.

Para não esticar muito a estória, vou rápido aos finalmente.

Na véspera da chegada do bispo, um vereador local muito querido teve o azar de morrer na zona…. e a notícia logo chegou aos ouvidos do bispo, assim que colocou os pés em Anus Mundi.

A pena para a alma do querido e azarado vereador era excomunhão seguida de danação eterna, não havia dúvidas.

Foi aí que o brilhante advogado anusmundense, o criador da idéia que gerou depois a tese da relatividade do caminho da bala diante de um espelho, resolveu oferecer alugar (vender? só por uma fortuna incomensurável) o seu papel de indulgência papal “até para morte na zona”, para que o documento fosse recopiado com o nome do recém falecido político, e apresentado ao bispo para que se conseguisse o perdão para a alma do querido vereador “Zé das Nêgas”.

Iniciada a coleta de donativos para a aquisição “da cópia da cópia” do documento papal, acertou-se com o bispo que “Zé das Negas” não iria para o inferno, mas que a igreja ficaria com todo o dinheiro coletado para alugar e fazer uma cópia do certificado de indulgência para “morte na zona”.

Foi a única vez que eu soube que um advogado esperto não conseguiu fechar um negócio com um cliente “realmente em desespero”; o advogado chefe da banca do concorrente era simplesmente um delegado oficial comissionado de Deus na terra.