Resultou da assembléia constituinte instalada pela emenda nº 26 à constituição de 1969 o que se esperava dela: um documento de compromisso, muito longo, mal redigido, apto a alimentar o fetichismo litigante, enfim, uma obra feita à semelhança dos seus autores, tanto quanto às suas capacidades, quanto relativamente às suas aspirações.
Claro que há coisas boas e elas são, basicamente, o elenco dos direitos fundamentais, abrigados sob a cláusula de imutabilidade exceto por rutura institucional plena. Não podiam escapar a esta tendência jurídica à irrealidade, a par com a não aceitação de suas pretensões geológicas. A conformação do Estado, essa ficou especialmente mal feita, o que não se sabe se foi de caso pensado ou por puro descuido.
A federação não apresenta incompatibilidade com o parlamentarismo e deveríamos ter adotado esta forma naquela ocasião. Posteriormente, sempre foi adiada ou afastada a discussão, porque ela sempre retornou como golpe de ocasião contra o grupo instalado no poder. Semelhantemente dá-se com a reeleição para cargos executivos, que deveria ter sido prevista no texto original e que foi criada como golpe, depois, ao sabor de circunstâncias.
Curiosamente, os constituintes quiseram proclamar, logo no início, que o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos, ou diretamente. A fórmula, a despeito de meio piedosa, está suficiente e merece o destaque. Tanto merece, que foi esquecida pelos guardiões das juridiquices, que aspiram muito mais à criação de um Estado tecnocrático que à democracia.
Certamente que a puseram lá no início e sem ambiguidades – algo raro nos textos legais brasileiros – porque nela nunca acreditaram. O poder nunca emanou do povo, nunca foi por ele exercido e a expectativa das classes dominantes é que nunca fosse, ainda que timidamente.
Agora, fala-se na convocação de plebiscito para consulta popular sobre a instalação de constituinte parcial a visar a reforma política. Melhor seria dizer reforma do Estado, mas o nome não compromete a ótima idéia. A governação do presidencialismo de maioria circunstancial é especialmente complicada no Brasil e as coisas precisam ficar mais claras, até para ficarem mais baratas.
Parece-me que mais uma vez perder-se-á a ocasião de afastar a figura do Chefe-de-Estado das intrigas mesquinhas do dia-a-dia, ou seja, não haverá parlamentarismo. De qualquer forma, convém redesenhar o presidencialismo brasileiro e retirar do congresso nacional as possibilidades tão amplas de ser chantagista e pusilânime, ou seja, dar-lhe responsabilidades a par com seus vastos poderes.
O espectro político ideológico não comporta tantas variações quantos são os partidos políticos. Conclusão óbvia é que várias agremiações representam as mesmas coisas ou representam coisa nenhuma, o que vem a dar praticamente no mesmo. Não se cuida de querer alguma espécie de bipartidarismo, mas da evidência da utilidade da cláusula de barreira.
O financiamento das campanhas eleitorais tem de ser público, a partir de um fundo a ser repartido conforme as representações existentes antes do pleito futuro. Isto evita a captura despudorada dos partidos pelos interesses econômicos e afasta a insegurança jurídica subjacente aos financiamentos privados por caixa 2.
Todavia, além dos aspectos puramente eleitorais, ou seja, relativos diretamente à forma de se fazerem eleições, é ocasião para reformar o Estado e inibir um jogo perigosíssimo que se tem visto aprofundar-se. É necessário estabelecer o que é o poder judiciário, que padece da legitimidade do voto popular.
O aplicador – e excepcionalmente intérprete – da lei não vai além disso, porque não pode escolher nem criar a regra sem para isso ter sido escolhido pelos cidadãos. O judicial brasileiro viola esta regra básica há tempos e fá-lo sem quaisquer críticas consistentes nem dá sinais de querer retornar a ser o que pode ser num panorama estritamente formal.
O Brasil tem uma aberração chamada justiça eleitoral, que avança sempre no seu afã de legislar sobre as eleições, superpondo umas às outras camadas de resoluções confusas e muitas vezes contraditórias. Vezes há que avança contra competências do poder legislativo como se fosse uma brigada de ungidos de Deus.
É comum a insegurança persistir até depois das eleições e é possível entrever que situações mantidas em suspensão servem bem à causa da desmoralização da política, algo que interessa às corporações burocrático-jurídicas, mas não ao país.
Evidentemente, a corporação jurídica, dentro e fora do Estado, cerrou fileiras contra a convocação da constituinte exclusiva para a reforma política. A demofobia funciona como o medo do fogo nos animais que não falam: é instintiva. É tão forte que a primeira barreira violada é a da coerência.
Ora, nada há de juridicamente impróprio na convocação de uma constituinte parcial e específica, por meio de plebiscito. A própria constituição vigente previu os instrumentos de participação popular direta, bem como as duas formas de consulta aos cidadãos: plebiscitos e referendos.
Por outro lado, a reforma que se busca não atinge os fetiches supremos dos juridiquistas, as cláusulas pétreas. Aqui, não me contenho e abro um parêntesis para admirar o gosto do ridículo e o romantismo tardio do juridiquismo. O sonhar com regra petrificada beira a loucura! Não se petrifica nada na história e o direito está dentro dela, não fora.
Se os constituintes não tiveram a coragem de evitar fórmulas democráticas e a criação de instrumentos de participação popular, seus sucessores deveriam obedecer às aparências e jogar o jogo pelo regulamento. Aberrante é, com medo do que pode resultar, trabalharem contra a idéia socorrendo-se de grupos que, se puderem, suprimem o próprio congresso.
Enfim, não interessa à melhoria da governação do país afundar-se em discussões tão bizantinas quanto insinceras sobre a possibilidade da instalação da constituinte parcial e específica, após aprovação popular da convocação. É perfeitamente possível submeter a idéia ao povo e instalar a assembléia constituinte, porque, afinal, a soberania é popular.