Os gregos pré-helênicos deixaram-se seduzir pelas partições trinitárias e estabeleceram o modelo persistente até hoje da unicidade composta divisível, esse delicioso paradoxo.
Os elementos do humano poderiam traduzir-se por corpo, consciência e alma, a implicarem-se reciprocamente, aos pares, e a implicarem-se os três como condição da unidade. Aos pares, implicam-se necessariamente para a validade de cada qual e os três ao mesmo tempo como condição de existência não de cada elemento, mas da unidade do humano.
O preceptor do filho de Filipe da Macedônia forneceu um modelo que permeia quase tudo: ele estabeleceu como seriam feitas as definições e isso não foi pouca coisa, porque definir é das mais enraizadas manias. Segundo o caminhante, a definição faz pelo gênero próximo e a diferença específica.
Nesse quadro teórico, é fácil perceber que a partição trinitária da unidade humana serve bem ao propósito de a definir. O corpo estabelece o gênero próximo, em que se encontram os animais todos. A diferença específica insere complicações, porque não é uma, mas duas.
Psiqué, ou consciência, estaria de bom tamanho para diferença específica a definir o humano, na medida em que os humanos não a vêem senão neles mesmos, o que pode ser inclusive estreiteza de visão. Mas, achou-se de inserir mais um elemento, que implicando-se necessariamente com a consciência, inseriria um complicador: ele renderia ensejo a proposições para além da unidade e especificidade, ele abriu a porta para se pensar a permanência.
A consciência passa a ser a diferença específica que depende de uma alma, depende de um sopro. Os gregos pré-helênicos foram sabios a ponto de não inserirem um elemento criador nesse modelo, sabedoria que perde-se, todavia, com Platão, que oferece o modelo tão absurdo quanto triunfante dos planos superpostos.
Essa partição trinitária responde bem ao problema do sujeito que é objeto de si próprio, coisa que as ontologias posteriores não conseguem resolver, porque deixam-se aprisionar pela lógica da superposição de planos mais ou menos coincidentes ou, melhor dizendo, pela crença no ideal do ajustamento de um plano a outro, o que confunde qualidade e quantidade em problemas insolúveis e insere valor onde ele não funciona adequadamente.
O corpo e a consciência fundamentam a unidade do humano, a segunda a permitir um juízo sobre a extensão, que deriva inicialmente unidade de limitação física, espacial. Os corpos não se fundem, por um lado e, por outro, a perda de alguma parte não suprime a unidade. O corpo sem afecções age todo num mesmo sentido e sob comando único.
A alma entra na equação, a princípio, como causa formal da consciência. Isso evolui para causa formal de existência do uno e, mais notável, como elemento a permitir a proposição da permanência. O modelo trinitário vai aperfeiçoando-se constantemente, ou seja, vai sofrendo mutações que não significam necessariamente melhoras ou pioras, que não é disso que se trata.
Inclusive, esse modelo subjacente à definição do humano individual projeta-se para a tarefa insana de uma teologia. O monoteísmo resultante do preconceito mosaíco inoculado pelos inúmeros misticismos gregos e orientais e pelo neo-platonismo que vicejavam na bacia do Mediterrâneo no século I a.C. adota o trinitarismo como base teológica e tem êxito no absurdo cuja absurdidade torna-se argumento de sua própria autoridade.
Esse humano individual, indivisível embora trinitário, segue caminho com poucas perturbações, no mundo seguidor dos monoteísmos de matriz greco-judaica. A unidade eleva-se a dogma e nesse panorama uma heresia pouco percebida torna-se lugar comum. Acredita-se na possibilidade de se vender a alma ao Príncipe do Mundo, em barganha estranha a envolver a permuta de um elemento imaterial constitutivo da unidade por vantagens materiais.
A alma, único elemento da unidade que conceitualmente subsiste na ausência dos demais e passa a constituir a unidade em si e só, evidentemente desempenha o papel de muleta conceptual da idéia de permanência. Pois exatamente ela é admitida como o que será passado ao Príncipe do Mundo, na barganha que, no fundo, implica a fragmentação do uno.
Em perspectiva de rigor lógico, a venda da alma é inconcebível, sob pena de ruir todo o edifício conceitual do humano uno e idivisível. Realmente, se um elemento é destacado, a unidade acaba e, pior, o negócio seria irreversível, na medida em que a alma é permanente.
Cientes do problema, alguns seres mais sagazes deslocaram a percepção da coisa e insinuaram sutilmente que a barganha dar-se-ia pela consciência, o que inseriu relativização tão infame quanto são todas. Assim, a barganha não seria eterna e irreversível, primeiramente, e seria possível um pacto relativo não desestabilizador do sistema unitário, em segundo lugar.
A ciência, essa ideologia de laboratório, tardou mas veio em socorro da lógica da demi-vierge. Pelos anos de 1960, uns cirurgiões e neurologistas resolveram divertir-se com uma das poucas coisas interessantes abaixo do azul do céu: a unicidade da consciência. É possível que esse gozo não tenha sido inicialmente planejado e que tenha se revelado à medida que as investigações avançavam.
Fato é que um tratamento cirúrgico para portadores de epilepsia grave revelou a fragilidade da unidade humana, tão dogmaticamente aceite. Claro que a investigação em si e as implicações dela são amplamente desconhecidas, como acontece com as coisas mais interessantes.
Os cientistas propuseram a secção do corpo caloso, parte fibrosa que faz a ligação entre os dois hemisférios cerebrais. Assim, uma tempestade elétrica iniciada num hemisfério não se comunicaria ao outro, permitindo ao epilético manter a motricidade controlada no lado em que se deu o ataque, além de reduzir a extensão da desordem elétrica no cérebro.
Inicialmente, foi um sucesso aparente. Mas, aos poucos, percebeu-se que Stevenson não fizera apenas ficção e que o senhor Hyde é bastante real. Vários dos pacientes submetidos à calosectomia radical apresentaram a extraordinária manifestação da mão alheia. Nos destros, a mão esquerda agia autonomamente, em situações ligadas principalmente à violência física e à sexualidade sem travas morais construídas a partir de linguagem.
As alterações cognitivas foram igualmente fascinantes, com pacientes incapazes de nominar objetos submetidos à percepção táctil com a mão esquerda, quando impedidos de ver os objetos que lhes eram oferecidos ao contato. A informação táctil recebida na mão esquerda era dirigida apenas ao hemisfério cerebral direito, o que impedia sua percepção a partir da linguagem, que é predominantemente instalada no hemisfério esquerdo.
Mas, a mão alheia era a evidência de que, no mínimo, a unidade era algo mais complicado e certamente menos dogmático do que sempre se usou aceitar. Ora, embora a percepção da ação autônoma do membro superior permita dizer que a consciência não foi dissolvida, porque o sujeito percebe que sua mão age autonomamente, é certo que a unidade não prescinde da ação concertada de todo o corpo, sob uma só vontade. E isso não havia mais, nesses casos.
Tampouco seria inteligente identificar a ação da mão alheia a meros atos reflexos, porque era coisa de uma vontade alheia, mas ainda de alguma vontade, contrária à consciência. O problema é que sempre era decorrente de uma vontade elaborada em níveis de elaboração infra-liguagem. Isso pode conduzir à conclusão de que consciência é, em resumo, linguagem, e que vontade e consciência não são planos superpostos idênticos.
Bem, quaisquer que sejam as conclusões, algo de maravilhoso fica para os relativistas do pacto diabólico: afinal, parece ser possível a venda de parte da alma ao Príncipe do Mundo…