Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Ei, me dê seis pão aí!

As trivialidades, quando estamos em bom estado de humor, são as coisas mais deliciosas que há. Porém, quando os líquidos corporais conduzem mais análise que divertimento, são terríveis portas abertas para a percepção da brutalidade.

Isto que se encontra acima do texto, como título, foi dito na padaria, domingo ao final da tarde, por uma senhora daquelas repletas de doirados, desde os óculos até às sandálias, passando, é claro, pelos punhos, dedos e cintura.

A típica criatura que, provavelmente feia até mesmo antes de envelhecer, enfeita-se. Enfeitar-se é o reverso da beleza, seja de formas e proporções, seja de gestos. Mas, a feiúra não percebeu que grande piada fizeram-lhe, ao convencer-lhe que enfeitar-se minimiza. Dá-se precisamente o contrário.

Mas, não é de feiúra, nem de doirados, que quero falar. Não é, tampouco, apenas dos rotineiros erros nas colocações pronominais, na eterna confusão das ênclises e próclises, da supressão dos plurais e da incapacidade de usar os pronomes no caso oblíquo.

Essas agressões à estética, mais que às normas, revelam muito mais que ignorância formal ou que suposta grandeza de cultivas oralmente o coloquial.

Primeiro, apontam algo delicioso, que é a profunda democratização homogenizante a que chegamos: as diversas classes falam da mesma maneira, embora uma aquinhoe-se muito melhor que outras, materialmente e em termos de prestígio social. Devo dizer que a senhora adoiradada dos seis pães transportava-se em automóvel de não menos que R$ 80.000,00.

Outra coisa que me chama profundamente a atenção é a brutalidade que há numa frase tal como esta, usada para pedir pães. Não houve um boa tarde, um por favor, nem um obrigado e certamente as ausências são se deveram àlgum intuito deliberado de ser brutal.

A perda quase absoluta da estética, do culto das formas e da precisão, por quem teoricamente teve acesso aos treinamentos escolares, vem de mãos dadas com um à vontade feito de imperativos desacompanhados das formas consagradas de lubrificação das comunicações.

Ainda há quem use da cortesia básica de dia-a-dia, como se usam roupas do século XIX, ou seja, naturalmente e sem afetação. Há quem use como a desempenhar uma personagem exótica, efeito obtido porque o número maior não usa e percebe o usar como realmente exótico.

O normal, este é a brutalidade de mão dupla. Sim, de mão dupla, porque é realmente democrático e quem ordena em dialeto a entrega de seis pão está pronto para ouvir alguma negativa ou o simples mau humor da moça da padaria, no mesmo tom.

A comunicação dos desiguais econômica e socialmente faz-se no mesmo dialeto, o que é extraordinário. Se assumo que brutalidade de imperativos não precedidos de bons dias, por favor e obrigados – além dos erros estéticos – é algo que não caracteriza os melhores, devo ficar um tanto incomodado com as possíveis conclusões.

Os mais bem aquinhoados não são melhores em nada além da inércia decorrente da classe em que nasceram ou de terem sido bem aquinhoados com os predicados do oportunismo e o talento para a vigarice.

Há nisto um tantinho de transição inconclusa do rural para o urbano. A cortesia por fórmulas consagradas, mais que um adereço barroco de dândis, é um óleo a reduzir os atritos prováveis no convívio de muitos e com interesses diversos.

A brutalidade do imperativo constante, que não se permite quase exceções, é muito caracteristicamente rural e vai bem neste meio, que funciona sem travar com menos óleo lubrificante. Transposta para outras realidades culturais, leva à duplicidade que necessariamente antecede à fixação pelo menor padrão ou à rutura definitiva.

 Sempre houve quem compreendesse e desculpasse às classes mais baixas e aos anacronicamente provindos do meio rural essas formas no discurso cotidiano. Não creio absolutamente que façam mal estes que percebem e desculpam, porque se trata de algo que espontaneamente vem de onde poderia vir.

Todavia, é artificialíssimo, por um lado, que o mesmo se procure desculpar em quem reivindica superioridade, cosmopolitismo, maiores rendimentos e alguns discretos privilégios de classe.

Poderíamos aprofundar a democracia para além dos seus evidentes aspectos de liberdade de sufrágio. Seria algo em que a funcionária da padaria voltasse para casa num automóvel de R$ 80.000,00, como faz a senhora dos doirados; ou algo em que ambas retornassem a pé ou em transporte coletivo. Afinal, elas são as mesmas pessoas!

Antigos senhores de escravos vivem saudosos.

É longa a recuperação das sociedades que conhecem pessoas com estatuto de coisa, objetos de direitos e não sujeitos deles. Esta situação, a do escravismo legalizado, somente é superada por dois meios: a luta – o que implica escravos relativamente bem instruídos – e a inviabilidade econômica de manutenção da escravidão legal.

No Brasil, que foi aquinhoado por Deus e por seus espíritos mais próximos, caídos ou não, com uma classe dominante especialmente genial, o escravismo legal foi abolido porque não fazia mais sentido econômico e porque prejudicava as exportações de colônias inglesas que não tinham mais este tipo de mão-de-obra.

Ele deixou de ter estatuto legal, mas permaneceu longamente após a aquisição pelos ex-escravos do estatuto de sujeitos de direitos. Os câmbios sociais são muito mais lentos que alguma mudança jurídica abrupta possa fazer crer, o que revela o caráter teatral do jurídico quando se o compara com o social e econômicamente dinâmico.

Um grupo humano ter, em qualquer lugar, nos seus tempos iniciais, a divisão das pessoas entre coisas e donos de coisas é nada mais que evolução da anterior prática de matar os vencidos. Escandaliza os ignorantes e os preguiçosos de pensar a evidência de que a escravização é um passo evolutivo relativamente à simples eliminação de todos os vencidos.

Todavia, outro passo evolutivo é dado quando se reúnem as condições para explorar os vencidos de maneiras mais sutis que simplesmente os reduzir a coisas, objetos de compra e venda. O passo seguinte mantém estratificação social, com classes de cidadãos, embora suprima as distinções legais, exceto por um e outro grupo que mantém privilégios legais explícitos.

No Brasil, o escravismo de pretos era legal até há pouco, precisamente há cento e vinte e poucos anos. A escravidão persistiu muito forte até hoje, o que fica evidente para quem vir a divisão na apropriação de rendas, os índices de mortalidade por crimes, os índices de encarceramento por faixa de renda e por etnia. Enfim, todos os indicadores que se usem apontam para um fosso entre dois grupos.

É óbvio que as coisas estão muito menos ruins hoje, porque ao menos se tem a igualdade jurídica formal, aquela maneira de praticar a injustiça com mais aleatoriedade, o que dá às massas a sensação de que a igualdade material está próxima ou que nem mesmo é algo desejável. Hoje, em poucas palavras, os escravos têm TVs, aparelhos telefônicos móveis, leem tão precariamente quanto a classe média e recebem vez e outra o que os senhores lhes deixaram de pagar.

O aspecto mais destacado da herança escravista no Brasil é o emprego doméstico. Uma pesquisa recente, não me lembro de qual instituição, constatou que não há outro país com mais empregados domésticos que neste paraíso tropical dos 10%. É impressionante, principalmente porque não somos o país mais populoso do mundo e estamos muitíssimo atrás da China, da Índia, dos EUA, da Indonésia e provavelmente do Paquistão.

Uma quinta posição relativa a par com uma primeira absoluta – e considerando-se a imensa diferença para os mais populosos – é realmente uma vitória indiscutível nesta modalidade. É extraordinário em termos quantitativos e em termos qualitativos e revela que ficamos com o escravismo em realidade muito mais que com traços arqueológicos que se possam encontrar.

O emprego doméstico até há pouco não tinha jornada limitada em lei, não tinha fundo de garantia contra despedidas arbitrárias, coisas que todos os demais empregos têm há mais de cinquenta anos. A distinção, para quem se disponha a pensar – só a pensar, esquecendo-se de seus interesses de classe e pessoais – era simplesmente absurda, por destituída de qualquer razão.

Mas, vale a pena observar a distinção entre o tratamento legal de um trabalho e dos demais e a recente supressão dela. Ela, a supressão da escravidão formal e da violação ao princípio da igualdade, gerou reações que beiram a loucura. Além dessas reações, permite ver o quão longeva era uma diferenciação baseada em nada e que sempre pareceu a coisa mais comum e aceitável do mundo.

Tornou-se hábito repetir o lugar-comum tolo de que o texto produzido pelo congresso nacional em 1988 é a constituição cidadã. Ora, essa magnífica obra dos jurisconsultos brasileiros oriundos da oposição permitida ao regime ditatorial de 1964 a 1985 continuou a distinguir todos os trabalhos do trabalho doméstico.

Agora, o trabalho doméstico assemelha-se juridicamente, formalmente, aos demais e isso causa escândalo às classes médias e altas. Esse escândalo revela algo feio de ver-se, que é a estupidez. A burrice é mais feia que a má-fé, em qualquer perspectiva que tome em conta a estética e a história. A burrice é muito mais nociva que a má-fé pura.

Os médio classistas brasileiros, useiros contumazes do trabalho doméstico semi-escravo, insurgem-se contra a igualdade de direitos dos trabalhadores domésticos apenas com a sua raiva de quem perdeu algo e quer que esta perda tenha alcance de argumento. Assim, neste ambiente, tornou-se comum dizer-se que bons eram os tempos antigos, que as pessoas antigamente sabiam dos seus lugares, que se faz um favor oferecendo um trabalho doméstico a alguém e outras tolices do gênero. Claro, neste ambiente povoado por estupidez, há o argumento do mérito…

Para comparação, posso dizer que bons eram os tempos em que o Estado pagava 40% de juros ao ano, sem riscos quaisquer, sem ameaças inflacionárias, a troco de nada mais que ter o que emprestar ao Estado, por intermédio de algum banco. Era bom para mim, se tivesse o que emprestar, mas era absurdo para todos os mais que 90% que nada emprestam ao Estado.

Se eu ou a personagem que se enquadre neste papel for além de cuidadoso consigo um pouco menos estúpido, saberá que o assalto revertido não será uma violação de lei divina e estável, apenas a recomposição de forças e algo que me contraria. O que é ruim para alguém decorre de alguma vitória de quem estava perdendo, apenas.

Ter que pagar um pouco mais caro por escravos domésticos não é algo a violar os estados naturais, até porque o humano, pessoal e coletivamente, nada tem de natural: É algo violador dos interesses pessoais e de grupo e não significa violação de algum balanço natural de forças e de classes e de trabalhos.

Para as classes médias moralistas brasileiras, isso agrediu até um de seus patrimônios mais valorosos: a idéia de estar a fazer favores. Quando algo torna-se direito escrito, reduz-se um pouco o campo do discurso da concessão graciosa do que sempre se deveu. Eis aí algo mais importante que o preço em si: suprimiu-se de certa classe média piedosa a sempre conveniente oportunidade de dizer-se caridosa porque dá aquilo que a lei não exige.

O assalto corporativo-burocrático ao Estado e as perspectivas com uma viragem à direita.

No Brasil, desde que ele existe, o Estado sempre foi instrumento do grande capital e das camadas médias. Prestou-se à drenagem das riquezas da maioria, para transferi-las à minoria, ou seja, foi apropriado como instrumento de concentração de propriedade e de rendimentos.

Para o grande capital, o Estado é quase um prolongamento de empresas que negam frontalmente idealismos pueris como a livre iniciativa, a livre concorrência, o predomínio dos mais aptos, o perecimento dos piores e, suma incoerência, o Estado eliminou o risco das iniciativas do grande capital. É bom esclarecer que a expressão grande capital é aqui usada no sentido próprio e sem as ambiguidades que no Brasil chegaram a ter expressões inequívocas como exclusiva ou máximo.

O grande capital nunca perde realmente. No máximo, reduz-se um pouco a velocidade de sua acumulação e isso basta para que se ponha em marcha a convocação dos explorados por ele para trabalharem a favor dele. Recentemente, ele convocou as classes médias, que vivem das migalhas a caírem de sua mesa, a comandarem uma viragem à direta, ou seja, a pedirem a volta da concentração, mesmo que isso seja ruim para as próprias classes médias.

As classes médias perceberam que lhes convém estruturarem-se em corporações e defenderem interesses de grupos como se fossem coletivos. Assim, elas tomaram conta, por exemplo e principalmente, da burocracia estatal, que existe em função de si mesma e não da prestação dos serviços que teoricamente deve oferecer. Isso explica porque os serviços públicos são ruins.

Os serviços que tiverem opções privadas a que os burocratas possam recorrer serão invariavelmente ruins, porque a burocracia existe para que haja burocratas. Parece excesso de auto-referência, mas olhando-se com calma percebe-se que nada será excessivamente predador e auto-referente para esse grupo.

A lógica disso deve muito ao modelo ateniense, sempre lembrado e sempre incensado sem que se diga como e porque funcionava. Atenas foi, em certo momento, democracia modelar, quase perfeita, porque funcionava para 10% da população. Esta democracia formal precisa de elevada percentagem de excluídos, seja por escravidão, seja por gênero, seja por patrimônio.

A nossa democracia, para os interesses do grande capital e das classes médias, precisa exatamente do mesmo que Atenas: tem que implicar na participação efetiva no processo decisório de no máximo 15% da população. Além disso, ou o processo sai do controle dos dominadores ou a coisa toda marcha para tornar-se outra. Então, em dados momentos, é preciso que tudo aparentemente mude, para que se mantenha igual. Mas, isso vale como regra para o 01% e não se estende necessariamente para as corporações pequeno-burguesas que vivem das maiores migalhas.

A maior cegueira das corporações pequeno-burguesas é não perceberem a fragilidade ou mesmo inexistência do vínculo de solidariedade com o grande capital. Esquecem-se que com escravos mais frágeis são precisos menos feitores numa fazenda.

Com mais uma volta no parafuso da concentração de riquezas, será menos necessária a manutenção de corporações a predarem o Estado, porque os escravos estarão mais frágeis e será menos necessária uma classe intermédia a amortecer tensões e fazer o trabalho sujo. Mas, é próprio das corporações pequeno-burguesas, notadamente das que vivem direta e adjacentemente ao Estado exagerarem sua importância e passarem a acreditar que seus papéis formais são materiais.

Não é para que se distribua justiça, nem para que haja acesso amplo à saúde que o grande capital consente que haja milhões de pequenos-burgueses a ganharem muito por trabalhos que rendem pouco ao todo. Nem é para que julguem contra o grande capital, nem para que prestem saúde pública com o dinheiro apurado com os impostos cobrados ao grande capital. É para que exista e defenda os patrões, só isso.

Seria sábio, se sabedoria houvesse, que o médio classista típico percebesse que não há, nas duas pontas do espectro, nenhum sentido no Estado pagar, com dinheiro saqueado aos mais pobres, salários de 10.000 euros a médicos, juízes, promotores, advogados, fiscais e outros burocratas mais. Isso, para o grande capital, é um estorvo, porque ele próprio poderia ficar com esse dinheiro, e para a maioria um desconhecimento, porque afinal não sabe quanto custa a pequena-burguesia nem sabe precisamente que ela vive às custas dele povo.

Seria sábio levar mais a sério as bobagens que são as normas criadas pela própria burocracia estatal, inspiradas no seu moralismo, que nada mais é que a face visível da sua hipocrisia e do seu instinto de permanência. Se se portasse ao menos conforme aos disfarces postos por ela própria, talvez mais êxito tivesse na sua manutenção, mas, ao contrário, trabalha para facilitar sua própria degradação, quando isso convier aos patrões.

No Brasil, o moralismo de ocasião levou a que se fizessem leis que definiriam limites aos saques ao tesouro estatal. Se estas regras fossem respeitadas, isso não evitaria o aniquilamento da pequena-burguesia estatal, mas lhe daria alguma chance de resistência, quando o grande capital resolvesse que a festa já ia longe. Todavia, foram feitas e violadas desde o nascimento, num espetáculo de falta de honra digno de nota até onde escasseiam traços de honradez.

Inventou-se um limite remuneratório para os que recebem do Estado e esse limite foi continuamente violado desde a criação, sob os mais pueris argumentos formais. Inventou-se a deidade e a concepção imaculada do poder judicial e da magistratura do ministério público, que zelariam pelas declarações de boas-intenções que se encontram na constituição e nas leis. E eles fizeram pouco mais que custar obscenamente ao tesouro, sem dar contas de seus gastos.

Inventou-se a ciência tão perfeita, quase revelação divina, que receberam os integrantes da corporação médica, de tal forma que é impossível contrapor ao discurso destes filhos de Zeus qualquer coisa, pois de todas as coisas eles possuem a verdade final. E possuem, principalmente, a capacidade de ditarem os preços dos seus préstimos voluntários, porque afinal há mais a precisarem que a ofertarem.

Inventou-se que todo um grupo de pequenos-burgueses era bom, essencialmente bom, probo, capaz, produtivo e outras valorações mais do repertório da moralidade plebéia, só porque nasceram na classe em que nasceram e ocuparam os empregos que sempre estiveram às suas disposições. E essa invenção aproximou da divindade o subgrupo dos que ingressaram na burocracia estatal porque foram aprovados em testes de suficiência técnica e capacidade de detectar capciosidades em perguntas iniciadas por negativas.

Essa gente acreditou que está onde está porque deve ser assim e porque haveria inabalável aliança com o grande capital. Todavia, o grande capital não tem qualquer dificuldade em romper esta frágil aliança, principalmente quando a pequena-burguesia tem conduta tão próxima à dos escravos.

Na história bem recente do Brasil, há dois exemplos interessantíssimos dos efeitos da viragem à direita. Um, súbito e esquizofrênico, foi estancado porque era tão confuso que atrapalhou a vida do grande capital, como efeito lateral, porque não visava a isto. O outro, organizado e sistemático, com apoio da imprensa, quase destrói o pouco de serviço público que havia e o muito de burocracia estatal que sempre houve.

Fernando Collor de Mello chegou ao governo como as Erínias a Orestes. Ele teria liquidado tudo, burocracia estatal pequeno-burguesa e inclusive um e outro pedaço do grande capital. A fúria revelava muita força e até a grandeza que não se deve negar aos loucos, mais que a patifaria que o grande capital marcou como própria dele. Fato é que não servia, nem à pequena-burguesia, instalada direta ou indiretamente no Estado, nem ao grande capital. Foi preciso afastá-lo, depois de criar comoção moralista por nada.

Fernando Henrique Cardoso chegou como Odisseu de volta à casa e agiu como Odisseu com os pretendentes de Penélope. Quase destrói as corporações pequeno-buguesas que ocupam a burocracia estatal e teria levado a tarefa a cabo se houvesse tempo hábil. A grande finalidade não era especificamente a aniquilação da classe média a soldo do Estado, senão que era vender serviços e patrimônio estatal ao grande capital, mas uma coisa trouxe a outra e isso agradou aos patrões.

Esses dois ocupantes do governo apresentaram-se ao público como veículos da novidade e da moralidade e nunca deixaram muito claro para as classes médias viventes do Estado que suas propostas implicavam a aniquilação ao menos parcial delas, até porque os patrões delas não precisam de escravos que ganhem mais que a maioria dos escravos.

Novamente, apresentam-se propostas que não vão além de retornar à crescente concentração de rendas e novamente as classes médias em geral e em particular a burocracia estatal apoia estas propostas com sinceridade comovente. É própria da classe média brasileira a sinceridade que namora a hipocrisia e segue de mãos dadas até ao cadafalso ou até o átrio da mansão, conforme a sístole ou diástole histórica.

Será, de qualquer forma, interessante ver essa gente no próximo influxo da queda de migalhas da mesa do grande capital, desassistida pelo Estado, ávida em manter o discurso mesmo à medida em que recuam os rendimentos, ávida em justificar o novo agente do patrão, mesmo que ele seja um tantinho distante.

A senzala defende a casa-grande.

O Brasil é caso de estudo no que se refere a concentrações abissais de rendas por prazos muito longos. Também é objeto precioso de estudos sobre inércia social e sobre a capacidade de um pequeno grupo manter as rédeas do país, em benefício próprio, mesmo que isso implique em prejuízos imediatos e tangíveis para a maioria.

Para decepção dos amantes de lugares-comuns, não se trata aqui daquela síndrome que alguns sequestrados apresentam e que consiste em se enamorarem dos sequestradores. A coisa é muito menos simples e não se presta a abordagens simpáticas ao médio-classismo como são estas a partir de lugares-comuns. Não é a vítima que se torna simpática ao agressor por conta de uma convivência forçada, excepcional e traumática. É a vítima que ignora sua condição.

Só há – e desculpe-me quem ler este texto pelo corte abrupto – duas inclinações e propostas políticas: uma propõe concentrar mais a apropriação dos rendimentos; outra propõe desconcentrar um pouco a apropriação. Todo o resto é bobagem e adereço a querer disfarçar esta dicotomia. Estas bobagens passam geralmente por considerações pueris sobre capacidades inatas, sobre esforços individuais, sobre méritos, sobre natureza.

É interessante apontar que o disfarce é utilizado pelos proponentes da maior concentração, sempre. E também é digno de nota que os proponentes da maior concentração negam veementemente a historicidade do humano e, em via inversa, insistem numa natureza humana tão improvável quanto inexistente. Natureza humana, para os defensores da maior concentração de rendas, é um axioma a ser vertido em mantra, lento, repetido…

Isso que a teoria chama natureza é desdito por sucessivas naturezas conflitantes a depender da extensão do período que se considera. Ou seja, haveria tantas naturezas humanas quantos são os períodos históricos considerados, o que nega o próprio conceito de natureza como essência e identidade, coisa herdada de Parmênides.

A concentração de apropriação de rendimentos não é natural, como não é qualquer coisa de humano. Estas considerações estão no âmbito do arbitrário e moral, ou seja, do que se resolve ser regra sem qualquer parentesco com a necessidade ou com a identidade obtida por sucessivas depurações. A provar a não naturalidade dessas supostas leis temos que há períodos de maior e de menor concentração na apropriação de rendas e se uns fossem anti-naturais simplesmente não existiriam.

Nós teremos – e devo desculpas por outro corte abrupto – ruptura em 2014 e fim de um ciclo. A direita deve voltar ao governo central brasileiro e isto terá as consequências óbvias, porque tem as finalidades óbvias: consequências serão todas as que advêm da maior concentração e finalidades são, basicamente, vender o que faltou: a Petrobrás e um e outro serviço público.

Isso afetará a maior parte da população e inclusivemente as classes médias, que são o móvel desta viragem. A mudança será para pior, mas será realizada com apoio dos que perderão economicamente com ela. Eis o extraordinário para quem supuser racionalidade no processo. A senzala defende a casa-grande.

O bolsa imposto de renda da classe média é maior que o bolsa família dos paupérrimos.

O ponto central da histeria das classes médias contra as políticas de rendimentos mínimos é o Programa Bolsa Família. Oito em dez médio classistas que se instruem em Veja, Globo, Folha e Estadão repetem o mantra que receberam desses meios, de que isso é um absurdo, que estimula as pessoas à preguiça e outras tolices deste tipo.

Mais recentemente, os meios em questão resolveram fazer seus repetidores veículos de uma tolice ainda mais tola. A nova moda do perfeito repetidor do que recebe sem pensar é defender que beneficiários de programas de renda mínima, por serem dinheiros do Estado, não poderiam votar!

Essa extravagante proposição, se levada a sério, conduziria ao impedimento da maioria deste país comparecer às urnas, porque todo mundo é sócio do Estado, embora só os pobres devam, aos olhos da imprensa e de seus repetidores, ser excluídos da democracia.

O Bolsa Família é um programa destinado a garantir renda mínima para famílias que tenham renda mensal por pessoa de menos de R$ 140,00 e crianças de zero a quinze anos.

Ou seja, uma família de quatro pessoas que tenha renda mensal inferior a R$ 560,00 é elegível para receber o benefício. Para se ter parâmetro de comparação, um salário-mínimo no Brasil é de R$ 678,00. Conclui-se, inicialmente e fora de dúvidas ou sofismas, que o programa destina-se aos muito pobres mesmo.

Para estas famílias em extrema pobreza é concedido o Benefício Básico, no valor de R$ 70,00 – o que é jantar para dois médio classistas que só bebam água e gostem de pizza, em São Paulo, por exemplo.

Além do benefício básico de R$ 70,00 para a família, há o Benefício Variável, que será concedido se a renda mensal por pessoa for inferior a R$ 140,00 e se houver crianças entre 0 e 15 anos, um benefício de R$ 32,00, até um máximo de cinco por família.

Enfim, uma família de quatro pessoas, com renda pessoal inferior a R$ 140,00 e com duas crianças menores de 15 anos, auferirá, globalmente, o enorme valor de R$ 198,00, composto de: R$ 70,00 + 4 x R$ 32,00 = R$ 198,00.

Para se comparar com esse irrisório valor, que não leva qualquer pessoa à preguiça e não deveria levar qualquer pessoa honesta e minimamente inteligente a repetir as tolices da imprensa, temos que um médio classista deduz, mensalmente, do que pagará de imposto de renda, R$ 180,00 por dependente que tenha.

Se a família médio classista da comparação tiver dois dependentes – e neste caso até aos dezoito anos e não os quinze – a dedução mensal  no imposto de renda será de R$ 360,00, o que supera o maior valor que alguma família extremamente pobre pode receber a título de bolsa família, que são R$ 306,00.

Essa breve comparação aponta que a histeria contra os programas de renda mínima deve-se primordialmente a demofobia.

Os demais pseudo-argumentos laterais revelam, por sua vez, a profunda hipocrisia e espírito de predação das classes mais altas brasileiras, porque sempre ávidas em acusar qualquer redistribuição de renda, por tímida que seja, realizada pelo Estado, enquanto todos são sócios do Estado em muito maior proporção que os mais pobres.

A hesitação da Veja e da Globo deixou a classe média sem opinião por uma semana.

Tem havido manifestações em grandes cidades brasileiras, que inicialmente voltavam-se contra os aumentos das passagens de ônibus urbanos. É fora de dúvidas que são preços altos e pesam significativamente nos orçamentos dos usuários. Essas manifestações tomaram dimensões muito grandes e persistem com a força inicial, agora voltadas contra quase tudo que envolva aspectos de interesses individuais e de grupos.

Não compreendo bem as movimentações – que são algo relevante – mas acho realmente difícil e até arrogante pretender compreender coisas assim amplas rapidamente. É preciso perceber, além do presente e dos interesses em jogo, os episódios históricos semelhantes que se podem por como termos de comparação.

Mas, não escrevo para tentar perceber as manifestações, que envolveram muita violência policial, inclusive. Escrevo para rir-me de algo realmente cômico.

Dois meios de comunicação hesitaram por uma semana antes de se posicionarem taxativamente sobre as manifestações, o que deixou a classe média sem ter o que pensar delas também, porque não pensa exceto pelo que pensam para ela.

É verdade que um e outro, isolada e apressadamente, expuseram opiniões advindas das profundezas duodenais. Foi o caso do tolo enfurecido Arnaldo Jabor, que desfiou lugares-comuns como baderna, arruaça e coisas do gênero, aptas a emocionarem seu público cativo de superficiais propensos ao linchamento e à defesa da atividade policial como prende e arrebenta.

Acontece que os patrões, após a hesitação inicial, perceberam que havia dividendos políticos a se obterem da coisa, dizendo, enfim, que era revolta popular contra o governo. Demoraram um pouco, mas perceberam que servia aos designios monômanos de atacar governo que cometeu o pecado de trabalhar mais pelo país que por patrões estrangeiros e promoveu discreta redução nas abissais desigualdades socias.

Não vejo Globo, mas creio que o patético Jabor já deve ter-se desdito, na mesma linguagem tão exasperada quanto cheia de verdades que adota. O patrão dele deve ter-lhe dito da imbecilidade em que incorrera, deixando-se levar pelas categorias poucas que o pautam. Devem ter-lhe dito que a coisa era boa para falar mal do governo e ele, tão gênio, não percebera, mais afeto ao pensamento duodenal que ao cerebral.

O caso é que comicamente, por uma semana, era impossível encontrar alguém com opinião sobre as manifestações, porque a Veja e a Globo ainda não lhas tinha fornecido.

A classe média paga caro.

É moda a classe média brasileira reclamar dos preços de serviços e produtos que adquire e eles são obscenos mesmo. O Brasil ficou caro antes de ficar bom de viver, o que é terrível de perceber para alguém como eu, que verá este país rico, mas provavelmente nunca o verá em padrões adequados de vida e de convívio.

Esses preços altíssimos de que reclama a classe média e que ensejam apropriação política oportunista como discurso oposicionista decorrem da postura dela classe média e das que lhe são superiores em termos de apropriação das rendas. Os estratos médios e altos fizeram tudo à medida para que houvesse o elevadíssimo custo que se vê.

A apropriação política dos altos preços brasileiros é algo que não merece abordagem superficial, como a que fazem meios de comunicação dominantes e imbecilizantes, tão bem aceites nas camadas que mais reclamam. Os media limitam-se à cantilena contra a carga tributária, que é alta, mas é alta para os mais pobres, não propriamente para as classes médias e altas.

A tributação brasileira é profundamente regressiva e violadora do princípio da capacidade contributiva, porque incide maioritariamente sobre o consumo. Sobre rendas e propriedade é muito baixa em termos comparativos. O que se encarece muito por tributos encarece-se igualmente para todos: quando eu, o acionista maior do Banco Itaú e alguém que vive com um salário mínimo compramos um quilo de carne, pagamos todos a mesma coisa em impostos, o que é suma injustiça e não demanda explicações do porque.

Uma parte dos altos preços no Brasil advem de aumento recente da procura, num mercado ávido por consumir, sem conhecimentos e sem parâmetros de comparação. Neste ambiente de elevação dos níveis de renda, é fácil praticar altas margens de lucros; é fácil cobrar caro por produtos e serviços medianos ou ruins.

Outra parte disso advem de custos de logística, o que é deficiência inegável num país que passou trinta anos sem gastar nisso e oito desses trinta a escutar que a milagrosa iniciativa privada gastaria no que o governo inibiu-se em gastar. A iniciativa privada nada mais fez que cobrar pelo uso daquilo que recebeu em concessão sem fazer qualquer investimento adicional.

Outro aspecto – o que os reclamantes não podem ver nem aceitar caso vejam – é a resultante inevitável da armadilha da predação, feita pelos que hoje reclamam e que os aprisionou.

Aqui, convém apontar os três pontos fundamentais do custo elevado de vida da classe média: habitação, educação e saúde.

Os preços de imóveis no Brasil não se explicam a partir da ortodoxia doutrinária. É claro que houve aumento grande da demanda das classes médias baixas ascendentes, forçando um aumento de preços dos imóveis visados por esta camada, mas isso não se aproxima minimamente da absurda valorização dos imóveis destinados às camadas mais altas.

O jogo da elevação de preços de imóveis para classes médias e altas seguiu altivo até níveis impudicos porque gerou ganhos especulativos para os adquirentes. Funciona – ainda – como esquemas de pirâmide, em que fica cada vez mais arriscado para os que entram tardiamente. Qualquer crise de desconfiança pora o esquema abaixo e implicará desvalorização profunda desses imóveis.

Se alguém me diz que, como investimento especulativo, vale à pena comprar imóveis pequenos destinados à classe média baixa porque ela apresenta demanda reprimida, eu acredito, faz sentido. Se, por outro lado, alguém me diz que a valsa de famílias de classes altas a comparem apartamentos imensos por preços superiores aos de Paris continuará até ao infinito, eu começo a desconfiar.

Estes últimos, são imóveis que se pretendem semelhantes àlguma moeda fiduciária que paga juros – como o dólar norte-americano – e isso tende a perder sentido à medida em que alguns se recusam a comprar as promissórias. Não há mesmo muito sentido em famílias terem dois ou três aparatamentos de luxo a acreditarem que outras famílias que também têm dois ou três dos mesmos quererão comprar o quarto.

Ou seja, o problema dos preços obscenos dos imóveis de classe média deve-se muito à atitude predatória da própria classe média e às margens de lucro também obscenas dos construtores. Um castelo de cartas que cairá e será bom que caia.

Com relação aos preços de educação e de saúde, as classes média e alta experimentam o que elas mesmas produziram, porque elas detém o poder político. Deixaram os serviços de educação e de saúde públicos tornarem-se ruins porque puderam fugir deles e fazer o Estado pagar para elas por serviços privados.

Ao mesmo tempo em que relegavam educação e saúde públicas ao sucateamento, porque eram para pobres, criavam formas refinadas de assalto ao Estado para que este lhes financiasse educação e saúde privadas, por meio de subsídios em descontos ficais, em subvenções a entidades privadas supostamente de interesse público, em planos de saúde coparticipados e outras variantes do engenho saqueador nacional.

Daí que o aumento dos preços de escolas particulares e de planos de saúde privada são coisas interiores ao modelo das classes média e alta, em que algumas corporações perceberam que tinham campo para ofertarem limitadamente e com mercado certo os serviços e assim cobrarem o que quisessem. Isso resolve-se muito simplesmente com o recurso ao setor público e quando as classes médias demandarem o Estado ele oferecerá educação e saúde adequadamente.

Há, claro, os pontos de reclamação que são difíceis – para quem honre os lóbulos frontais – de abordar excepto pela mais simples lógica capitalista. Restaurantes caríssimos com refeições medíocres, cafezinhos em aeroportos mais caros que em Heathrow, cerveja ruim a oito reais, tudo isso se arranja com o tempo ou com uma improvável recusa ao absurdo.

Agora, é desonesto não perceber que muito disso deve-se ao jogo criado pelos próprios reclamadores e às margens de lucro obscenas permitidas por um mercado imaturo, deslumbrado, que gasta como se gasta dinheiro roubado, que não tem mesmo qualquer gosto.

É patife por a conta em tributos ou em renda do trabalho, onde os manufaturados ainda são muito mais caros que os serviços, ou seja, onde o capital apropria muito mais que o trabalho.

Classe média.

Para a classe média brasileira. Preconceituosa, envergonhada de seus mais íntimos desejos, ao mesmo tempo radical, ávida em invocar um mérito que não se sabe qual é, profundamente egoísta, imitadora de todos os modelos externos, profundamente ignorante de tudo quanto a circunda, fechada. Bem, poderia seguir a elogiar, mas ficaria muito longo…

Diálogo entre Colbert e Mazarin. Para função de autoconhecimento e recurso a fontes mais sólidas.

PERSONAGENS:

Jean Baptiste Colbert > ministro de estado de Luis XIV.

(Reims, 29 de Agosto de 1619 – Paris, 06 de Setembro de 1683)

 Jules Mazarin > nascido na Itália, foi cardeal e primeiro ministro da França.

(Pescina, 14 de julho de 1602 — 9 de março de 1661)

– Colbert: Para encontrar dinheiro, há um momento em que enganar (o contribuinte) já não

é possível. Eu gostaria, Senhor Superintendente, que me explicasse como é que é

possível continuar a gastar, quando já se está endividado até ao pescoço…

– Mazarin: Se se é um simples mortal, claro está, quando se está coberto de dívidas, vai-se

parar à prisão. Mas o Estado… o Estado, esse, é diferente!!! Não se pode mandar o Estado

para a prisão. Então, ele continua a endividar-se…todos os Estados o fazem!

– Colbert: Ah, sim? O Senhor acha isso mesmo? Contudo, precisamos de dinheiro. E como

é que havemos de o obter se já criámos todos os impostos imagináveis?

– Mazarin: Criam-se outros.

– Colbert: Mas já não podemos lançar mais impostos sobre os pobres.

– Mazarin: Sim, é impossível.

– Colbert: E então…os ricos?

– Mazarin: Os ricos também não. Eles não gastariam mais. Um rico que gasta faz viver

centenas de pobres.

– Colbert: Então, como havemos de fazer?

– Mazarin: Colbert! Tu pensas como um queijo, como um penico de um doente!

Há uma quantidade enorme de gente situada entre os ricos e os pobres: os que trabalham sonhando em vir a enriquecer e temendo ficarem pobres. É a esses que devemos lançar mais impostos, cada vez mais, sempre mais! Esses, quanto mais lhes tirarmos mais eles trabalharão para compensarem o que lhes tiramos.

É um reservatório inesgotável!


A classe média e o momento em que a ignorância inibe o oportunismo.

A característica mais evidente das classes médias brasileiras é o oportunismo. Percebeu que as migalhas dos repastos do 01% são suas. Recebem-nas avidamente e agradecem timidamente, macaqueando o que acham ser o comportamento do 01%.

Timidamente e a macaquear, sim, porque é incapaz de gratidão verdadeira, apenas de mimese e subserviência, que são coisas distintas. A gratidão verdadeira é incompatível com uma simulação a que se entrega como auto-justificação, a crença em ter méritos.

O 01% dispõe seus espaços, corporativos e estatais, de forma a aquinhoar os que vivem de suas migalhas. E deixa claro que tais espaços não são propriamente liberais, por um lado, nem propriamente uma burocracia profissional pública, por outro. São apenas arranjos para os 20% acomodarem-se e defenderem o 01%.

Quem apostar naquela lógica de enriqueça meu patrão para que o lixo dele seja mais calórico, está em bom caminho, a despeito da vulgaridade da formulação.

Pois bem, uma das coisas que esse grupo acha necessário emular é o preconceito de classe do 01% e, como todo imitador subserviente, é mais feroz que o imitado.

Em certas circunstâncias, contudo, a subserviência mostra-se às claras e inibe até o oportunismo. É o sujeito contra ele mesmo, a provar que nunca compreendeu bem que ele mesmo não existe independentemente de sua condição de recebedor de migalhas.

Agora, sondagens mostram que a maioria das classes médias votam no Serra, embora o Serra nada tenha a oferecer-lhes, notadamente à grande parcela que se encontra acomodada nos serviços públicos, independentemente de terem acedido a ele por exames técnicos ou por nomeações, que isso, no fundo, é diferença pouca.

Essa adesão é para demonstrar solidariedade ao preconceito de classe que o Serra representa, ele mesmo um ascendido que precisa mostrar-se mais elitista que as elites.

Acontece que o Serra não dará mais migalhas aos 20%, como provavelmente buscará retirar as migalhas das migalhas do 79%, para cumprir fielmente o pacto com o 01%.

Aumentar os preços do trabalho dos serviçais pode impedir que os 20% tenham-nos em casa a limpar seus banheiros. Garantir rendimentos mínimos a quem nada tem pode surtir os mesmos efeitos. Têm medo disso e votam contra isso.

Todavia, ainda que se mantenham as remunerações dos serviçais baixas, ou que se as reduzam, que seria o supremo gozo dos 20%, se as próprias migalhas reduzirem-se os efeitos são os mesmos! E as pressões continuam a subir.

O primeiro-ministro da Suécia arruma sua própria casa, ou paga caríssimo para alguém fazê-lo. A senhorinha de classe média brasileira tem uma escrava que recebe um arremedo de salário para fazer isso. Acha-se muito bem consigo mesma por, vez e outra, derramar sua grandeza cristã perguntando à escrava como vão aquelas quatro criaturas que ela pôs no mundo e que dormem no chão. Pronto, alma reconfortada.

A senhorinha terá acessos de fúria se a escrava algum dia surrupiar 14 ml daquele perfume francês que ela pediu àlgum parente para trazer do lugar exterior com que sonha, o free shop do aeroporto. O esquema de segurança e coação que trabalha para a senhorinha, que atende pelo nome de polícia, vai deter a escrava e dar-lhe uma surra até que confesse o delito apto a por as bases da sociedade em risco profundo.

A senhorinha, em seus momentos de reflexão íntima, vai ter reforçada sua incompreensão de porque aquela escrava tão bem tratada entregou-se ao crime, à incompreensão das invencíveis diferenças de classe e à ingratidão.

A escrava, depois da surra, ou mesmo antes dela, pode um dia aclarar na sua mente as razões da sedução por aquele líquido enjoado com nome francês. Ela pode, um dia, arrumar os pensamentos e perceber que, tanto ela, quanto a senhorinha, não têm a mais mínima idéia do qualquer coisa além da novela que ambas vêm.

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