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Crença e causalidade. Religiosidade e ciência.

Não há, no fundo, incompatibilidades entre os sistemas baseados nas crenças e aqueles baseados nas causalidades, exceto por que os primeiros evitam as armadilhas das regressões infinitas. Não há, porque ambos servem-se de crenças e de afirmaçõs de causalidades, em cadeias maiores ou menores.

O dito acima não se confunde com postular a compatibilidade absoluta entre religiosidades e ciência ou filosofia. São afirmações diferentes, pois pode haver sistemas filosóficos focados mais nas relações que nas causalidades e crenças.

É claro que penso na assertiva de Hume, agora: as relações são exteriores aos seus termos. Os termos, aqui, são quanto se capta sensorialmente, quanto de percebe de fora como informação. Mas, são também as causas. O todo, que seria uma relação, muito provavelmente está para fora, ou para além do simples conjunto dos termos em comparação, ou seja em dinâmica relação.

Crença e desejo estão por todos os lados, enervados, nas postulações religiosas e nas científicas, a condicionarem as causalidades enunciadas em cada segmento componente de uma estrutura teórica.

Os triviais – e repetidos – exemplos são os melhores. A indução clássica de que amanhã haverá uma aurora decorre de hoje a termos visto e ontem também e antes de ontem e, aparentemente, desde sempre. Ora, o que há é a crença na aurora de amanha, porque a de hoje não é, de maneira alguma, um antecedente causal lógico válido para assumirmos que ele haverá amanhã.

O nascer do sol de amanhã, quando e se ele ocorrer, será o do hoje de amanhã, nunca uma decorrência causal de ter ocorrido antes. Ou seja, a relação entre as auroras e suas sucessões estão muito além do aprisionamento dela a partir de seus termos isolados e de alguma aparente causalidade.

Visto por outro ponto, a crença está antes e depois da relação ou do postulado. Antes como axioma e depois como resultado efetivamente produzido e projetado, ou seja, não espontânea resultante de um método científico. Talvez fosse mais adequado nomear a crença ao depois como desejo, mas isso afastaria a percepção de circularidade que permeia grande parte dos raciocínios e enunciações.

Os modelos causais tendem a serem circulares na medida em que os pressupostos confundem-se com as conclusões ou finalidade, se assim se preferir chamar. O sistema aristotélico das causalidades inicial, formal, material e final é, assim, nitidamente autoreferente, circular e tendente ao sofisma de indução. Essa mesma estrutura básica ampara as religiosidades de matriz grega, persa e judaica.

Se as relações estão fora de seus termos, mais que a conclusão empirista clássica da redução ao dado, temos relações autônomas, sucessivas horizontalmente ou mesmo paralelas. Dissociadas, portanto, da clássica lógica da imputação, que é, afinal, uma lógica da formação do juízo. Ora, uma lógica da construção do juízo não se faz sem altas doses de crença.

Assim, talvez seja válido afirmar que a ciência e a religiosidade operam segundo o mesmo modelo, com vantagens para a religiosidade, que não precisa fazer esforços para disfarçar a crença.

Controle social da sexualidade: a ciência médica é mais violenta que o antinatural cristão.

A ciência médica é modelo de controle social da sexualidade pior e mais perverso que as postulações axiomáticas do antinatural cristão.

O antinatural oferece à luz do dia toda a sua não significação, porque o natural não é uma afirmação a que se possa contrapor outra. Era, portanto, um prisão muito menos opressiva que o imperativo científico.

O antinatural, inclusive, era prisão clamante por Eros, apta a despertá-lo, como todas as proibições destituídas de um real sentido perceptível. Por ser impossível, sempre foi possível e reclamou vigilâncias meramente formais.

A prisão técnica clínica, de ciência higiênica, serve-se de cadeias mais fortes. Seus postulados, independentemente de serem falsos ou verdadeiros, carregam em sí uma plausibilidade que o discurso científico deu-lhe.

A patologia amedronta muito mais que o antinatural. Signo da superioridade do modelo clínico é a aproximação que certos extremismos fazem dele, tentando agregá-lo ao antinatural, como reforço.

O modelo controlador de sexualidade a partir da ciência médica oferece a cura, enquanto o modelo cristão do antinatural oferece a salvação, se o praticante desviado optar pelo abandono do antinatural. É interessante perceber que certas religiosidades neo-pentecostais partiram para a assimilação do modelo clínico, o que se evidencia por vários sinais.

São comuns as abordagens da homossexualidade, pelos neo-pentecostais, como resultado da influência de demônios, que devem ser retirados. Ora, a possessão demoníaca é de claríssimo paralelismo com a infecção por agentes patogênicos, a serem combatidos para que se retirem do organismo infestado.

A infestação por demônios, assim como por vírus ou bactérias, insere um elemento estranho à subjetividade do infectado, elemento essencial ao modelo do antinatural. Esse ponto permite ver claramente as divergências dos dois modelos e as soluções por eles propostas.

Enquanto um postula a causa única e exclusivamente na vontade individual, o outro inclui elementos externos, embora não afaste totalmente o elemento subjetivo. Uma circunstância, todavia, põe em contato os dois modelos, que rejeitam, ambos, a causa originária da homossexualidade na conformação genética.

O modelo hoje adotado por inúmeras denominações neo-pentecostais consegue ser um hibridismo com efeitos piores que os resultantes das formas originais de que se serve. Ele controla e pune duplamente e fecha as oportunidades de excusa da culpa. Se, por um lado, o possuído não tem culpa da escolha dos demônios, ele a terá se os meios de tratamento – a terapêutica do exorcismo – não der resultados. É como se o doente fosse culpado pela ineficácia da terapia, algo muito caro à psiquiatria e à psicologia.

Assim, o discurso científico presta grande ajuda ao cerceamento de liberdades e serve às religiosidades mais obscurantistas…