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A burrice é arrogante e resulta na morte de funcionários da ONU no Afeganistão.

Um pastor evangélico norte-americano, Terry Jones, inventou de queimar exemplares do Corão. Foi demovido dessa estupidez e descortesia imensas, sabe-se lá a quê custo.

Mas, como a burrice e a falta de cortesia não encontram limites, outro fulano do tipo, Wayne Sapp, retomou a idéia e concretizou a queima, em 20 de março próximo passado.

Como resultado previsível de uma agressão, houve reações. No Afeganistão, que nem os ingleses, nem os russos conseguiram desorganizar como os norte-americanos estão a fazer, mataram-se vários funcionário da ONU.

Não mataram soldados norte-americanos porque não conseguiram, é óbvio. Mas, o pessoal da ONU serve para isso, pois material e formalmente identifica-se como outro, para os afegãos.

Uma ação dessas não se inscreve em movimentos estratégicos maiores de criação e manutenção de tensões e conflitos. Para isso, os interessados servem-se de meios sistemáticos e articulados, não de manifestações isoladas.

Ou seja, o ambiente, na sua dinâmica própria, iniciada e lubrificada por litros de massificação e maniqueísmo raso, gera atos pontuais com um potencial imenso de agressão. São manifestações profundas de burrice e de arrogância.

Sim, a burrice é profundamente arrogante, porque é intrusiva e não considera as hipóteses contrárias. Ou seja, a burrice tem mão única, ele não leva em conta que o agredido é exatamente como o agressor, se estivessem em posições inversas.

Identificam-se, burrice e arrogância, precisamente em desconsiderar que as reações que uns têm diante de agressões os outros também as terão. A burrice sente-se tão superior ao outro que não imagina, nem prevê que ele reaja. Não o considera um ser com valores, dignidade e honradez próprias, logo imagina-o destinado a resignar-se às agressões. Nisso, é profundamente arrogante.

Essas tolices pontuais e desarticuladas do grande sistema são muito inconvenientes para os senhores da guerra, do imperialismo. Eles querem ter sob algum controle as rejeições que despertam, querem manter um discurso de aparências que, embora divorciado de suas práticas, não contenha agressões formais evidentes.

Assim, o sujeito sai de casa para matar, porém a falar de direitos humanos, tolerância, democracia e outras coisas de nebulosa existência. Assim, vai matando e roubando e justificando-se e explicando-se e mentindo.

Aí, surge um sujeito que não percebeu o grande acordo e rasga as conveniências, afirma a diferença, a inferioridade dos outros, viola seus símbolos caros, despreza consequências previsíveis. Enfim, surge um idiota arrogante, mas sincero.

 

A ignorância defendida com eufemismos e rituais.

Os limites do discurso – de uma proposição – encontram-se na linguagem, seu meio, e na impossibilidade do emissor deixar de ser ele mesmo.

O emissor do discurso a favor da burrice, ou seja, da difusão de menos conteúdos que o possível em uma dada circunstância, precisa justificar-se. Isso significa que, no íntimo, ele intui que está a propor a ignorância.

Ele é capaz dessa intuição – percepção imediata e relativamente superficial – porque se reconhece como ignorante, precisamente porque reconhece os menos ignorantes. É capaz de uma comparação, ainda que meio involuntária e imprecisa, enfim. Contrariamente ao que se pensa maioritariamente, as pessoa têm percepção de seus limites, embora suas condutas nem sempre reflitam essa percepção.

O discurso de defesa da burrice apoia-se basicamente em dois pilares: o fetichismo da moda e os rituais formais. Ele afasta-se, como é obviamente dedutível, da matéria, da substância. Não digo que ele apegue-se às formas como um investigador prende-se às regras do método científico. Digo que ele prende-se às formas como aparências, continentes vazios de conteúdos.

Esses dois pilares são, em verdade, um somente, mas bifurcado perto do capitel. O conhecimento específico é substituído por um acervo de lugares-comuns, tirados meio aleatoriamente de um saco repleto deles, que o defensor da ignorância traz sempre consigo. E, esses lugares-comuns variam conforme uma lógica de moda e significam invariavelmente o mesmo: nada.

Eis o caso que me fez pensar nisso. Uma pessoa foi submeter-se a uma avaliação para o trabalho de professor universitário, em uma instituição privada. O teste consistia em apresentar aula a uma banca composta por três avaliadores: um professor da matéria, um psicólogo e um pedagogo. Não vou usar atalhos e direi logo que os defensores da ignorância foram o psicólogo e o pedagogo.

O assunto foi escolhido pelo avaliado, previamente. Havia um lapso de sessenta minutos para apresentar a aula e depois os comentários dos avaliadores. Chegada essa fase, o candidato ao trabalho ouviu do professor que não havia reparos a se fazerem, que compreendera tudo bem claramente e que o assunto fora exaustivamente e claramente abordado.

Em seguida, os profissionais fetiche da dinâmica de seleção de recursos humanos – sim, uso um lugar-comum como quem não quer perder a piada – entram em cena e sacam os comentários previsíveis de seu acervo pré-ordenado. Primeiramente, o mais desconcertante: você não interagiu com os alunos.

Mas, se não havia alunos, era caso de interagir com alunos ficcionais? Ou, por outras palavras, tratava-se de uma encenação meio pueril com personagens inexistentes? Era para fazer um teatrinho com amigos ocultos, uma encenação de escola infantil? Estranha objeção, realmente.

Em seguida, a objeção ápice do fetichismo atual: você não usou o PowerPoint. Vou dizer o que é isso, não porque algum leitor não saiba, mas para ajudar-me a pensar. Isso é um simples instrumento de projecção de slides em alguma superfície. Um instrumento tão instrumental quanto o quadro negro e o giz, tão instrumental quanto a fala, tão instrumental quanto um laboratório e, quem sabe, tão instrumental quanto o silêncio.

Há coisas que podem implicar uma apresentação de slides para serem melhor compreendidas e há outras delas que não. Da mesma forma que há parafusos a demandarem chaves-de-fenda para serem apertados e porcas a pedirem chaves-de-boca para a mesma operação.

E há coisas – geralmente as mais importantes – a demandarem qualquer instrumento, indistintamente, desde que o explicador as conheça! Convém lembrar que Niels Bohr e José Ortega y Gasset não tiveram aulas com PowerPoint, esses dois imbecis, coitados! Deviam ser autodidatas.

Todavia, a objeção informática não se bastava. Tinha que vir com uma explicação, naturalmente tirada do mesmo saco de frases-feitas. O caso é que o maravilhoso meio de projectar slides prende a atenção dos alunos. Sim, esses indivíduos hipopotentes e eternamente infantilizados são incapazes de prestarem atenção a qualquer coisa que não seja exibida mediante slides!

Então, o professor deve prender-lhes a atenção; para quê, pouco importa, contudo. É um espetáculo, evidentemente, o que ser vender e os profissionais a serem selecionados devem ser capazes de produzi-lo. Não se buscam professores, mas mestres-de-cerimônia de conteúdos vazios. Guy Debord não exagerava, portanto.

Ao final, o fechamento como ele deve ser: verdade vinda de quem está preso, mas vislumbra uma pequena réstia de luz e trai-se. A parte moderna da banca avaliadora sentencia: você está perfeitamente adequada a uma universidade federal!

Cabe um pequeno esclarecimento aqui. No Brasil, as universidades federais – públicas – são melhores que as privadas por larga margem, a despeito de algumas pontuais exceções. Essas constituem-se nas universidades publicas não-estatais, o que é fundamentalmente diferente das privadas.

Universidade pública não-estatal é aquela instituição que preza o ensino e a produção científica antes da venda pura e simples de diplomas de licenciados para quaisquer indivíduos que possam pagar-lhes. Neste país de semi-analfabetos em conúbio com deliquentes, produziu-se a falsa dicotomia pura entre pública e privada.

As grandes universidades européias e norte-americanas são todas públicas, embora umas sejam estatais e outras não. Várias universidades no Brasil são entidades públicas não-estatais, como é o caso das universidades católicas. Mas, um número muitas vezes maior é das entidades não-estatais privadas, focadas única e exclusivamente no lucro, voltadas para a oferta de diplomas e de todas as aparências de modernidade vazias de quaisquer conteúdos.

Enfim, se o candidato está destinado e adequado a uma universidade federal – como disseram as guardiãs do templo do fetichismo modista – significa que ele é um bom candidato, mas que aquela instituição quer coisa menor e mais apta a prender a atenção dos adolescentes mal-educados e dispersivos que lá vão ter.

Bem, estranho é o licenciado não compreender, ao depois, a pouca serventia do seu diploma. Os donos das instituições, esses compreendem perfeitamente o que está em jogo e provavelmente licenciaram-se em universidades federais.