Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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E quando finalmente a Yoani Sánchez fala…

A blogueira cubana superstar do momento, Yoani Sánchez, está de visita ao Brasil. Depois de anos pedindo permissão para sair de seu país, Cuba, e outros tantos vivendo na Suiça e por ai vai. A blogueira é polêmica por criticar as consequências atuais do que aconteceu em  Sierra Maestra há tempos atrás, mexendo assim com os brios de uma esquerda latino americana que não deixou, não deixa, e creio, nunca deixará de idolatrar os mesmos feitos.

Pois desde de que conseguiu a tal permissão de viagem, e desembarcou no Brasil, vinha enfrentando protestos onde quer que chegasse. Recife, Salvador, Feira de Santana, enfim… Por outro lado, li algumas contra-manifestações falando que no Brasil as pessoas mantivessem blogs anti-governo sem maiores problemas, assim como em qualquer lugar do mundo.

Pois pra não entrar nos feitos de Sierra Maestra, e nem da Yoani por enquanto, vou falar um pouco do prato principal, mas que ninguém se dá conta, os blogs. Não, não tem nada demais em ter o seu blog, e fazer dele o que quiser, como bem diz Andrei, usando de respeito e bom português, mas, o blog tem uma coisa pela qual os jornais não primam. E disso, quem pode falar é um blogueiro, que eu não sou, aprendi com o Cris Dias, esse sim, blogueiro. O que o blog tem que os jornais não primam, e por vezes tampouco têm, é credibilidade, assim simples e ponto final.

Porque só o blogueiro pra saber disso? Porque vive de seu blog. Jornalista não é blogueiro, blogueiro não é jornalista, são coisas diferentes, muito embora possam coincidir. Os blogs têm que primar pela credibilidade porque possuem audiência frágil, se eu que te leio, descubro que tu elogiou uma marca, porque foste pago, e não me disseste, deixo de ler o que tu escreves. Assim de fácil. Então qualquer blogueiro sabe que se começa a enganar seus leitores com frequência, os perderá, e por conseguinte, seus patrocínios.

Então, voltando pra Yoani… Ela chega no Brasil, enfrenta protestos, e todo mundo acha bonitinho ela calada, sorrindo, ou dizendo que as manifestações contra ela são um exemplo da democracia que não existe em Cuba. Ok… Mas nada dela falar…

Só ai ela resolve abrir a boca… E as primeiras palavras dela?

“A blogueira cubana Yoani Sánchez, em visita ao Congresso Nacional no início da tarde desta quarta-feira,  fez um apelo ao senador Aécio Neves: pediu que ele monitore a situação da restrição da liberdade em Cuba permanentemente. “

“Yoani Sánchez cobra posição “enérgica” do Brasil em relação a Cuba.”

Mas peraí cara-pálida, tu vais ao congresso nacional fazer palanque pra oposição, beleza… Que cada um joga com as cartas que tem… Agora tu saiu do teu blog, que é de conhecimento do reino mineral que se financia pela CIA (como diria Mino Carta), e quer ditar a política do meu país, sobre o teu? Além da ingerência aqui no meu quintal, tu ainda queres que, nossa presidente (ou o futuro presidente), meta o bedelho no quintal dos outros?

Vou te contar viu… Pelo menos o Bono Vox é recebido pelos presidentes… Talvez porque só peça informações sobre programas sociais, e não saia por ai dizendo aos que foram votados o que fazer com os votos…

Ativismo judiciário e mistificação.

Nomear alguma coisa já é condicionar as percepções e análises que haverá desta coisa ou, pelo menos, tentar estabelecer o condicionamento. Os próprios criadores de algo ou praticantes de certa conduta apressam-se a oferecer as balizas de compreensão de suas obras e ações, porque assim sempre se está mais seguro de oferecer tanto a coisa como sua roupagem discursiva.

Quem está fora da corporação atuante tende a deixar-se aprisionar pelos modelos interpretativos oferecidos pela própria corporação, o que leva ao desejado hermetismo e à discussão em círculos. Então, fica-se pelo contra ou a favor, sem que estas posturas consigam estabelecer precisamente sobre que incidem.

Ativismo judiciário é o nome de batismo do exercício ilegítimo de poderes estatais pelo judiciário, em nítida exorbitância do que o sistema prevê. Seus praticantes batizaram-no eufemisticamente, de maneira a pautar todas as análises do fenômeno político em questão. Trata-se, em resumo, de desequilíbrio no balanço dos poderes estabelecidos pela constituição de 1988 e, mais grave, de violação ao princípio de legalidade, que deveria ser a coluna central do estado democrático de direito.

Por outro lado, o nome revela uma contradição em termos, mesmo que isso não incomode os ativistas em questão. Contradição porque o sistema prevê a inércia da jurisdição e, ademais, sua imparcialidade. Daí, é inconcebível, em termos que não violem a lógica mais elementar, que a jurisdição seja ativa no sentido de possuir iniciativa, porque isso viola as duas premissas antes mencionadas: a inércia e a imparcialidade.

A evidente incoerência apontada no parágrafo anterior é contornada pelo mais sutil e perverso argumento de que se trata de interpretar para extrair da lei seu máximo conteúdo. Imagino que pouca gente honesta consigo própria em termos intelectuais se aventure na crença de que a lei tem conteúdos mínimos, médios e máximos, porque o conteúdo da vontade legislativa não é mensurado quantitativamente.

Lastimavelmente, entre as várias tolices que se ensinam nas escolas de direito – protótipos de escolas beneditinas e jesuítas – o postulado de que o juiz interpreta mesmo na clareza é dos mais repetidos e aceitos sem críticas. Mas, como é amplamente sabido, as coisas mais absurdas são as mais fáceis de granjearem simpatias.

Ora, na ausência de dúvida quanto à existência de lei aplicável e quanto à lei específica aplicável, nada há para ser interpretado, sim para a aplicação. Não é objeção viável o dizer que a interpretação estará na base da escolha ou descoberta da norma específica, porque isso dependerá do estabelecimento dos fatos, não de interpretação.

Provado o que ocorreu, encontra-se a norma cabível ou percebe-se a ausência de norma que discipline a situação. Nesta última hipótese, haverá, sim, espaço para interpretação judicial que atraia para o caso a norma mais semelhante possível àquela que se adequaria perfeitamente. Esta ação seria melhor chamada aproximação por semelhança que interpretação, mas sempre preferimos o nome mais propício à ambiguidade.

A lei destina-se a ter vigência e a ser aplicável eficazmente a todos os casos que se insiram nos seus moldes genéricos e abstratos. Por outro lado, o sistema legal brasileiro prevê as hipóteses de suspensão da vigência da lei e da eficácia. Sempre que a norma for contrária à constituição, é lícito o juiz não na aplicar, desde que diga expressamente onde está o conflito e declare a lei inconstitucional.

A suspensão da aplicação de uma lei dá-se em casos específicos, quando a norma inconstitucional é afastada para que se afaste assim a violação de norma superior. Nestes casos, a lei permanece válida abstratamente e segue a incidir em outros casos que não ensejaram a crítica judicial de inconstitucionalidade. Diferentemente ocorre quando a própria lei ou parte dela é atacada abstratamente, sem que isso ocorra em caso concreto, ou seja, em um litígio entre partes.

O supremo tribunal federal pode julgar a validade em si de ato normativo frente aos paradigmas constitucionais e concluir pela sua nulidade e consequente extirpação do sistema jurídico positivo. Nestes casos, a norma perderá completamente vigência e eficácia, o que se assemelha à revogação, embora não seja idêntico.

Negar vigência, pura e simplesmente, a qualquer ato normativo, sem lhe declarar a inconstitucionalidade, isso o juiz brasileiro não pode fazer legitimamente. Não obstante, é o que se tem visto cotidianamente.

Não é apenas no supremo tribunal federal que o voluntarismo judiciário – travestido nessa confusão conceitual que se chama ativismo judiciário – inspira muitas decisões aberrantes e, a rigor, nulas. Em todas as instâncias judiciais generaliza-se o voluntarismo judiciário e se veem decisões a negarem vigência à lei a partir de argumentos pueris e de voltas à lógica.

Raramente alguma decisão traz a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei aplicável, somente o afastamento da incidência legal a partir de generalidades ou disfarçada em crítica judicial da validade de algum ato administrativo, o que é o desculpa mais comum para a negativa de vigência da lei a partir da simples vontade pessoal do juiz.

A disfuncionalidade é enorme, porque se trata de exorbitância de função e desvio de poder, em confronto com as competências do poder executivo e principalmente com as do poder legislativo.

O voluntarismo judiciário provindo do supremo tribunal federal é o mais grave porque foi apropriado e patrocinado pelo discurso superficial e oportunisticamente moralizante da maior parte da imprensa. Aqui, o voluntarismo que não aplica leis senão vontades pessoais está de mãos dadas com a teoria do estado de exceção.

A bem de promover uma moralização – como se a finalidade do Estado de Direito fosse a moralidade e não a legalidade – o mais elevado tribunal do país viola as leis e a constituição, que ele deveria proteger. É ocioso dizer que a cruzada moralizadora é de fancaria e não passa de perseguição política seletiva, porque seria demasiado estúpido, até para nossos padrões, achar que a moral é qualquer coisa mais que vontade de mandar nos outros.

Busca-se retirar da discussão o único âmbito que está a cargo do judicial, que é a legalidade. Assim procedendo-se, as coisas deslocam-se, tanto da política, quanto do jurídico, para o nebuloso campo dos códigos pessoais e grupais de condutas, de resto amplamente cambiantes e precariamente estabelecidos. A marcha da patifaria disfarçada conseguiu até inserir na constituição um nada jurídico que chamou de princípio da moralidade administrativa.

É aberrante postular-se que a administração pública obedeça à vacuidade conceitual que atende pelo nome de moralidade. A administração, como todos os cidadãos, atende, sim, à legalidade, que é o resultado da vontade popular manifestada pelos representantes eleitos legitimamente. Na lei, feita por quem a deve fazer, já estão todos os antecedentes axiológicos que levaram ao estabelecimento de prescrições gerais e abstratas.

Há pouco, o voluntarismo judiciário do supremo tribunal federal chegou aos píncaros. Na ação penal 470 foram condenados sem provas trinta e tantas pessoas e, entre elas, três deputados federais. Inúmeras garantias constitucionais foram violadas frontalmente neste julgamento de exceção, pautado pelo furor de linchamento da imprensa.

O princípio de que cabe à acusação provar a culpabilidade dos réus foi para os confins do sistema jurídico. O de que a ausência de provas e a presença de dúvidas ensejam a absolvição dos réus, idem. O do juiz natural e do duplo grau de jurisdição evaporou-se. Nesta encenação de julgamento, o supremo tribunal federal cruzou o Rubicão.

Porém, depois de passado o rio inviolável, o pior vem: o saque da cidade em que não estacionavam Legiões. Primeiramente, o tribunal que estabeleceu sólida jurisprudência contra a prisão antes da sentença definitiva ensaiou o autoritarismo de prender os réus antes do trânsito em julgado. Apenas impediu essa aberração de consumar-se a falta de habilidade do acusador geral, que tentou manobra infame até para quem à infâmia acostumado.

Depois, a pior violação ao sistema inaugurado e aparentemente regido pela constituição de 1988: a pretensão do supremo tribunal federal de cassar mandatos parlamentares de réus condenados. Aqui, servem-se da confusão de duas situações distintas.

No Brasil, há um anacronismo que é a justiça eleitoral. Ela julga a existência de partidos políticos, recebe pedidos de candidaturas, procede aos registros, analisa-as, julga-as, conta os votos, concede diplomas aos eleitos, nega diplomação aos que descumprem requisitos. Pode ocorrer que algum agente político eleito venha a perder o mandato popular porque a justiça reputou ausentes os requisitos para a elegibilidade e o julgamento final deu-se após a posse.

A perda do mandato, nestes casos, não decorre de cassação, mas de constatação de irregularidade prévia da situação do eleito e empossado. Aqui, quer-se dizer que o eleito não poderia nem mesmo ter disputado votos legitimamente. Trata-se de incapacidade política por fatos anteriores à eleição, constatados definitivamente pela justiça eleitoral após a consumação da eleição e da posse.

O direito brasileiro não conhece a cassação judicial de mandato eletivo de quem foi eleito legitimamente. Quem cassa um parlamentar é a casa legislativa a que ele vincula-se, somente. Trata-se de previsão constitucional expressa e sem ambiguidades, que se encontra no artigo 55.

Se um deputado federal ou senador da república é condenado criminalmente cabe à casa legislativa respectiva abrir processo de cassação de mandato por falta de decorro parlamentar, porque o mandato conferido pelo povo só pode ser retirado por seus representantes.

Lula e o ódio de classe.

Está em marcha um conjunto de ações concertadas para interditar politicamente o ex-Presidente Lula. À frente desta operação estão parte majoritária da imprensa, dois ou três partidos políticos em decadência, um em ascensão, meia dúzia de empresários, meia dúzia de banqueiros privados, partes do judiciário e do ministério público.

O ódio profundo a Lula, como tudo muito intenso, não se explica apenas por razões utilitárias, assim como não se explica racionalmente o ódio de alguns homossexuais e de algumas mulheres reprimidas pela liberdade sexual . Se fosse resultado do conjunto de ressentimentos dos que perderam algo por conta das ações do ex-Presidente ao longo de oito anos de governo, seria muito menos intensa essa raiva. Mas, é algo a passear no campo do fetiche.

Nos anos de governo Lula, os banqueiros privados perderam alguma coisa, mas foi pouco. O que se perdeu por os juros dos títulos públicos terem baixado de patameres obscenos para níveis razoáveis, ganhou-se com a ampliação da tomada de crédito pelas camadas mais baixas. Ao final, ampliou-se a base de clientes e os bancos foram obrigados a agirem como bancos e não apenas como receptores de juros de títulos públicos, extorquidos à sociedade por meio do Estado.

A imprensa não perdeu por conta do Lula mais que perderia pela marcha da história. O que perdeu, deve-o ao seu laborioso projeto de estupidificação coletiva, coisa que tornou seu público mais difuso e menos fiel. Na verdade, em termos financeiros, a imprensa teve perdas a se porem na conta de seu próprio funcionamento anti-empresarial. O governo Lula não diminuiu os gastos públicos com propaganda, nem alterou sua divisão entre os meios.

As classes sociais intermédias e alta nada perderam, embora tenham a percepção de ter perdido. É que elas fazem a comparação sem termo fixo, o que conduz ao equívoco das relações entre expectativas. Ora, se eu comparo o que recebo com o que acho que receberia idealmente, em tal ou qual situação, o resultado pode ser um abismo.

As classes altas, o 01 %, esses nunca perderam nem perderão, mesmo se houver uma revolução. Nos grandes rompimentos que às vezes vêem com as revoluções, o 01% perde alguns espécimes por eliminação física, mas nunca o que possuem. Lembrem-se os superficiais que 01% não é uma figura metafórica, é um em cem mesmo. Lembrem-se, para evitarem equívocos vulgares, que os expropriados de terras na revolução russa de 1917 não compunham o 01%. Os componentes desse seleto grupo foram-se para Lutécia e seu dinheiro continuou a escravizar o novo governo e o povo, claro.

Na verdade, em termos materiais, todos ganharam nos oito anos de governo de Lula, porque a distribuição de rendas melhorou marginalmente e a economia cresceu substancialmente, o que significa dizer que o 01% foi quem mais ganhou, o que é quase uma lei natural. É claro que poderiam todos terem ganhado mais, se o mundo não entrasse numa crise de excesso de dinheiro falso.

O que explica, portanto, o ódio a Lula, não é o que realmente perdeu-se, é o que se deixou de ganhar em comparação à expectativa de manutenção de uma escravidão absoluta. Essa perspectiva de manutenção pétrea de uma massa de escravos permite esperar um aumento constante de apropriação e o distanciamento relativo das classes médias das mais baixas. Pouco importa, para a classe média, que a distância entre ela e o 01% também aumente, porque ela, cega, não vê o 01%, embora arremede o que acha serem os modos desses poucos desconhecidos.

O ódio ao Lula tem raízes no preconceito de classe. Se assim não fosse, seria impossível vender, com êxito relativo, essa raiva a quem não tem razões para tê-la. O preconceito de classe é atitude profundamente inercial, ou seja, quem não o tem tem pouca propensão a desenvolvê-lo e que o tem tem grande propensão a mantê-lo.

As classes médias são a inércia transplantada para o âmbito social, com relação aos costumes. Um acúmulo de energia que trabalha para a conservação como o leão busca matar sua fome, como busca matar sua fome quem não tem a sensação de segurança ou a de total insegurança.

Esse grupo não percebe as diferenças entre pertencimento de classe social e pertencimento de classe econômica, o que vem muito a calhar para seu oportunismo atávico. Talvez, em verdade, perceba e confunda propositadamente as coisas, e isso devo confessar que não é muito claro para mim. Um exemplo vem a calhar: pertenço à mesma classe social de muitos dos mais ricos da minha cidade, mas não à classe econômica deles.

 O esforço de conservação das classes médias é o elo perdido das ciências sociais, ou seja, é a ponte entre o natural e o social. Aquilo que denuncia a inverdade do puramente natural e do puramente social, coisas que existem misturadas nesse estrato, como se tudo fosse uma inclinação e uma repetição, ao mesmo tempo.

Lula significou para essa gente uma ameaça à inércia. As coisas iriam mover-se novamente e, por mais óbvio que o movimento não deslocasse muito as posições relativas, haveria ameaça e houve. O sujeito que pemanece ou ascende, mesmo que tenha posição subalterna em relação a outros, é cioso de sua posição superior relativamente aos que escraviza. Isso deve permanecer assim para que as coisas pareçam normais.

As relações do tipo superior e subalterno não se modificaram – houve apenas deslocamento em bloco para cima – mas o temor incutiu-se na classe mais medrosa, venal e moralista que há. Ela eriçou-se, amedrontada, contra a ascensão que em muitos casos foi dela própria.

Agora, cabe distinguir agentes e objetos da ação, em dois graus. Agente é o 01%, que pretende o aumento da acumulação até ao infinito, o que não é teoricamente impossível e desculpe-me Carlos Marx. Objetos e agentes da ação são, em grau menor, os componentes da camada média, que obedecem aos desígnios de cima e à inclinação própria de quem está no meio.

Assim, o que a imprensa fez foi semear em terras férteis, embora pouco extensas. Ela obteve o ódio irracional, mas isso dará em quê, excepto na denúncia inútil de atemporal moralismo de amorais? Em golpes de estado patrocinados, hoje, pela burocracia estatal judiciária pseudo-meritocrática?

Depois de impedir politicamente Lula, o que farão? Impedirão partidos? Ou impedirão um a um, caso a caso?

Marcos Valério na Rua Toneleros. Pequena parte 1.

A única coisa a que o capital esteve ameaçado, no Brasil, foi a dividir um pouco menos selvagenmente seus ganhos. Pouquinho menos selvática divisão e permanência de ganhos no país, isso foi tudo quanto bastou para sentir-se ameaçado e partir para golpes de Estado.

Os golpes foram atentados à mais elementar lógica. Sempre se deram a bem da democracia, suprimindo-a. Puríssima lógica do Estado de exceção esteve e está por trás do golpismo brasileiro. Não repitirei detalhadamente pela milésima vez o exemplo de Lacerda e Castelo, mas devo lembrá-lo.

Incapaz de ganhar a presidência nas urnas, Lacerda foi o golpista mais tenaz desde 1950 até 1964. Fez Getúlio suicidar-se, fez o hábil Juscelino servir-se de Lott, fez o honrado Jango servir-se de seu medo de provocar a guerra civil.

Fez, enfim, Costa e Silva presidente da república e fez sua própria cassação vir à realidade. Carlos Lacerda percebeu que o golpe seria uma ditadura tão rapidamente quanto Jango e Juscelino o perceberam. A diferença era que ele tinha estimulado o golpe e Juscelino apenas aceitado, satisfeito por poder concorrer em 1965. A estas alturas, Jango apenas sofria a depressão do exílio uruguaio.

Lacerda foi cassado por aqueles que ajudou a dar o golpe. Dez anos antes, ele era mais inventivo; levou Getúlio Vargas ao suicídio por meio de acusações inverossímeis, na esteira de uma campanha moralista.O episódio da Rua Toneleros – cheio de nuvens – é de se lembrar, porque esta infâmia levou Getúlio à morte.

Um atentado estranhíssimo resultou na morte do major Rubens Vaz e no ferimento de Carlos Lacerda no pé. Os homens estavam juntos, mas um foi morto com tiros no tórax e outro foi ferido com tiro no pé. Particularmente, creio que Lacerda daria um pé pelo poder…

Envolver Getúlio era a finalidade principal. A versão oficial, construída pela imprensa, dava conta da vontade de Getúlio, por meio de Fortunato, seu chefe de segurança. Nunca houve provas disso, mas provas eram o menos neessário, como hoje.

A banda de música. Getúlio, Goulart, Juscelino e os golpes sucessivos. Parte 3.

Em 1945, Eurico Gaspar Dutra não hesitou em depor Getúlio Vargas, candidatar-se à presidência e eleger-se para o cargo; não tinha alternativas. A deposição era previsível para Getúlio, desde que voltaram 30.000 homens vitoriosos da Itália. Realmente, a coisa mais difícil na história é desmobilizar um exército vencedor e mesmo um perdedor; vejamos o trabalho que teve Xenofonte, por exemplo.

Vargas ainda tentou minimizar o efeito que deve ter antevisto e não enviou os 100.000 homens que os EUA pediram, mas 30.000 foram suficientes. Havia saída possível, que era ter convocado eleições já em 1944, que provavelmente ganharia, mas…

Dutra não foi eleito com maioria absoluta dos votos válidos e a constituição de 1937, então vigente, não exigia mesmo a maioria absoluta. Os músicos da banda que ainda não se formara não levantaram suas vozes nem afinaram os instrumentos contra a ausência de maioria absoluta.

Quinze anos após, em 1960, Jânio Quadros elegia-se presidente sem a famosa maioria absoluta de votos e a banda, já então em plena atividade, não se animou a tomar os instrumentos e fazer seu barulho ensurdecedor. Acreditavam ter chegado ao poder com Jânio, suprema ingenuidade, que ninguém chegava ao poder com ele, exceto ele mesmo.

Jânio nutria tão profundo desprezo por Carlos Lacerda que, em certa ocasião, aceitou recebê-lo em audiência, em Brasília, e simplesmente não o recebeu e saiu para beber. O recado foi de eloquência poucas vezes igual.

Bem, após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, fez-se o vácuo. Um presidente popularíssimo a oferecer o próprio sacrifício é totalmente diferente de um deposto em meio à histeria moralizante da direita predadora que seduz as classes médias. Getúlio deixou um problema imenso e uma valorosa carta com depositário certo.

O vice-presidente era João Fernandes Campos Café Filho. Ele assume a presidência em 24 de agosto e a exerce até novembro, quando licencia-se do cargo por motivos de saúde. Juscelino Kubitschek havia sido eleito presidente da República e João Goulart vice-presidente, este último com mais votos que os recebidos pelo presidente.

A banda de música subiu três tons na escala e iniciou o bombardeio sem sentido contra a posse do governador de Minas Gerais, eleito em perfeita consonância às regras da constituição de 1946. É inútil tentar ver as coisas sob a perspectiva do que chamamos coerência e não é que ela inexista. É que sempre se aposta contra ela em política e, às vezes, com sucesso. A coerência do público alvo das bandas de música é tão enviesada quanto sua moral, sua ética, é conveniência e hipocrisia apenas.

O golpe de Estado toma força em 01 de novembro de 1954, com o discurso tão inflamado quanto obtuso do coronel Jurandir Mamede, por ocasião de homenagem ao falecido general Canrobert. O coronel Mamede excede qualquer parâmetro de razoabilidade, mesmo considerando-se os discretos limites postos ao oficialato, no que se refere a comedimento na agressão às autoridades civis.

Mamede deve ter lido texto de Lacerda. Lá estavam o mar de lama, a preservação dos valores de família e cristandade, as acusações desprezíveis contra um presidente morto e pueris contra um eleito vivo; tudo muito característico, enfim. Ocorre que agressões contra autoridades e incitação ao rompimento da legalidade são infrações ao regulamento de disciplina militar.

O ministro da guerra quer punir o coronel pela indisciplina evidente e pede audiência ao presidente Carlos Luz. Este, exemplar típico do bacharelismo golpista médio classista, não vê coisa mais natural a fazer que impor ao ministro uma espera de duas horas, na antesala. O ministro espera e expõe, quando afinal é recebido pelo arrivista desconhecedor de honra, o que quer fazer. Diante da recusa evasiva de Luz, Lott sai com o contra-golpe em mente.

Não havia o mais tênue problema legal em Juscelino não ter obtido a maioria absoluta, como não na obtivera Dutra. Todavia, todo o discurso udenista contra a posse fundava-se nisso que, do ponto de vista jurídico-formal, era mistura de nada com quase nada. O âmbito jurídico e as pessoas que nele vivem prestam-se a toda sorte de relativizações, todavia.

Café Filho não estava muito animado a integrar o golpe contra a posse de Juscelino, como nunca pareceu muito animado a participar de nada arriscado. Parece-me que o convidaram a entrar no convescote golpista e ele hesitou, tendo então que ficar com a mais ou menos honrada saída da licença por razões médicas.

No impedimento do vice-presidente, assumiu o presidente do congresso nacional, o deputado Carlos Luz, abertamente golpista. Por esta altura, o ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, interveio. Lott havia votado no candidato udenista, o general Juarez Távora, mas era homem apegado à legalidade e não via motivos para impedir a posse do candidato eleito.

Lott teve imensa grandeza e faz falta gente como ele, rara. Deu um golpe preventivo para assegurar a posse de Juscelino, impondo a Carlos Luz o impedimento pelo congresso nacional e a posse na presidência do presidente do Senado da República, Nereu Ramos, o próximo na linha sucessória, conforme a constituição de 1946.

Lott tinha a inteligência de manter nos postos de comando de tropas generais de sua inteira confiança. Assim, inundou o Rio de Janeiro de tanques de guerra e soldados e forçou o afastamento de Carlos Luz, que então protagonizou dos episódios mais patéticos da história recente brasileira, bem acompanhado por Carlos Lacerda.

Luz, Lacerda, Prado Kelly, Sílvio Heck e outros embarcaram no cruzador Tamandaré, fundeado ao largo do Rio. Era o navio de guerra mais poderoso da marinha brasileira, então. Lott não hesitou e mandou as baterias de artilharia costeira atirarem contra o cruzador, sem êxito, todavia, embora tenham chegado próximos ao navio.

Alguma alma inteligente impediu que o Tamandaré abrisse fogo contra o Rio, com suas cinco baterias de canhões, o que resultaria em nada mais que milhares de baixas civis e uma guerra. O navio rumou para Santos, pois julgava-se que o então governador de São Paulo, Jânio Quadros, acolheria o cruzeiro golpista de braços abertos. Ele, Jânio, realmente sinalizou esta possibilidade.

Jânio, que não era burro, apenas açodado, percebeu que não valia a pena unir-se à aventura golpista e negou apoio ao desembarque do Tamandaré em Santos. Lott já contava com duvidoso apoio das baterias costeiras em São Paulo, mas, de qualquer forma, o golpe ficou restrito a um navio fortemente armado. Sem ter onde aportar, essa nave de guerra era quase nada.

Não havia isso que prodigamente chama-se povo, hoje. Havia das classes médias baixas em diante, algo que chama atenção para o extraordinário que foi, tanto a tentativa de golpe, quanto o contra-golpe. Ambos deram-se em âmbito muito restrito, o que destaca uma rara tensão na classe alta, entre legalista e golpistas, nacionalistas e entreguistas, enfim.

O curioso é que Lott parece não se inserir em dicotomias fáceis, ao tempo em que revela toda a sua ingenuidade política. Dificuldade de aprisionamento categórico e ingenuidade política são ingeredientes de uma imensa personagem, insistentemente levada ao esquecimento, como se esse precisasse de trabalho sistemático no Brasil.

Sobre a ingenuidade política de Lott, é suficiente a lembrança da campanha presidencial de 1960, em que ele perdeu para Jânio. O homem ia falar para platéia de sindicalistas de esquerda e fazia discurso anti-comunista. Se falava para católicos, cantava virtudes protestantes e vice-versa. Era capaz de discursos longos e enfadonhos, a discorrer sobre detalhes que não empolgavam a platéia: um não político, enfim.

Mas, em 1954, o contra-golpe fez-se na hora certa, implacável, com o fim de defender a legalidade e a posse do eleito.

Os golpistas teriam que esperar mais dez anos para terem sucesso relativo. Deles, o destino de um é revelador: Carlos Lacerda corre para a embaixada dos EUA e pede refúgio. Era excesso de medo e talves de culpa, pois Juscelino contra ele nada manda fazer.

A banda de música, Getúlio Vargas, João Goulart e os golpes sucessivos. Parte 2.

Em 1953, servindo-se da usual inteligência, Vargas demite Jango do cargo de Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. Em seu lugar assume Hugo de Faria, ainda que relutante. Goulart havia se tornado, muito rapidamente, alvo preferencial dos ataques de Carlos Lacerna, dono do jornal Tribuna da Imprensa. Na verdade era alvo de Lacerda, do Globo, do Estado de São Paulo e dos Diários Associados.

Toda a ira de Lacerda – muitíssimo agressivo – focava-se na realização de coisas triviais, considerando-se a legislação existente então, que devia ser cumprida. O ministro atuou como negociador em greves de largo alcance, ao invés de simplesmente mandar reprimi-las sumariamente, como era hábito anteriormente.

Algumas posturas de Jango eram heterodoxas, mas nada que alguém inteligente pudesse julgar ameaçadoras ou ilegais, ou mesmo indignas do cargo. Ele era acessível; recebia interlocutores de sindicatos de trabalhadores e patronais sem cerimônias, o que é muito próprio de pessoas dotadas de alguma honorabilidade.

Nisso fugia do protótipo da auto-concedida importância por meio da distância e do culto a liturgias sem sentido. Essa forma de agir está entranhada na mentalidade do brasileiro como o signo da dignidade governamental. Assim, quanto mais uma autoridade é capaz de fazer alguém esperar à toa, quanto mais solenidade põe na audiência que concede, mais respeitável é, segundo o código não escrito de status social.

Talvez alguns percebessem isso apenas como traição de classe, pois, no fundo, o ministro não subvertia coisa alguma. Ele nunca propôs a estatização dos existentes meios de produção, nem a superação do sistema de classes, apenas que os trabalhadores tivessem um mínimo a lhes permitir alguma dignidade, coisas que levariam ao fortalecimento do mercado interno e consequentemente a nascente indústria nacional.

Fato é que Getúlio percebeu duas coisas: primeiro, que João Goulart já obtivera bastante estima popular; e, segundo, que se permanecesse só teria desgastes, pois era possível o ministério seguir a mesma linha sem ele. Imagino que nos princípios de 1953 Getúlio já antevia o que ia acontecer e preservou Jango. Não foi pouca coisa, pois a atitude provavelmente livrou o pais de uma ditadura dez anos mais longeva que a instalada em 1964.

Os pontos centrais da reação a Getúlio eram os seguintes: o petróleo, que sondagens norte-americanas insistiam em negar presença no Brasil e o processamento de minérios, principalmente de ferro. Ou seja, era – como sempre é – uma questão entre nacionalismo e entreguismo, não qualquer coisa entre esquerdismo e direitismo.

Seria preciso nível altíssimo de estupidez – até para padrões de leitores de Veja – para supor Getúlio um esquerdista. O que leva um homem naquelas circunstâncias a ser percebido como esquerdista é o padrão dominante de exploração selvagem, algo que cega inclusive os pequenos serviçais que vivem das migalhas caídas esporadicamente de mesas muito altas.

No tempo e lugar desses acontecimentos, nenhum país escapou da situação de reduzido à periferia do vizinho mais ao norte, enviando-lhe em vagas sucessivas todos os recursos naturais e resultados do trabalho de suas gentes. Uns resistiram mais, outros menos, mas todos tiveram a mesma sorte. Claro que o Brasil não tinha tantas diferenças além do tamanho.

O que, de certa forma, causa estranheza é a virulência e a linha de ação escolhidas. O rumo trilhado por Carlos Lacerda e semelhantes incluiu calúnia, difamação, injúria, moralismo rasteiro, tudo bem temperado por absoluta ausência de fatos. A opinião pura e simples vinha embalada em verdade moral absoluta. O que Lacerda dizia, só podia mesmo ser dito por escrito, que se fosse dito ao ofendido, mereceria uma bofetada em resposta.

Na época, o discurso atingia menos pessoas que hoje, pela óbvia razão de que havia menos receptores. Curioso paradoxo: o modelo levado adiante por Vargas aumentaria as classes médias baixas, que são precisamente o público mais vulnerável à conversa da corrupção avassaladora e iniciada ontem. Ou seja, o bombardeio mediático, embora de intensidade maior que hoje, gerava menos efeitos.

Por outro lado, isso foi ruim porque o golpe precisava de mais que imprensa, precisava de militares. A Marinha de Guerra e a Força Aérea eram historicamente entreguistas, golpistas e contra Getúlio. Mas, o exército estava bem dividido entre nacionalistas e entreguistas. Falo aqui, sempre, do oficialato, que a situação entre praças era diferente, mas resolvida pela hierarquia.

O golpe materializou-se em reunião ministerial havida depois do atentado da Rua Toneleros. Em frente da casa de Lacerda, na Rua Toneleros, dois homens atiraram contra ele e contra seu guarda-costas, o Major da Aeronáutica Rubens Vaz. Lacerda feriu-se no pé, o Major foi morto.

A Força Aérea constituiu uma comissão própria de investigação – ilegal – chamada A República do Galeão e acusou três pessoas: Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio, Alcino João Nascimento e Climério Euribes de Almeida.

Desses, Alcino foi condenado a 33 anos e cumpriu 23. Escapou de duas tentativas de assassinato e sempre negou os fatos como eles foram consignados no inquérito. Gregório e Climério foram condenados, repectivamente, a 25 e 33 anos de prisão. Ambos foram assassinados na penitenciária… O inquérito concluiu-se após um taxista dizer que conduziu os dois atiradores. Preso um deles, disse que fora contratado pelo outro. Presos os dois, disseram que foram contratados por Gregório.

A eliminação física de opositores políticos somente funciona se for em massa. Getúlio sabia disso, obviamente. Seria mais estúpido que Lacerda mandar matar Lacerda. Duas coisas são prováveis: ou Gregório contratou os pistoleiros, em postura de mais real que o rei, ou o atentado foi contratado pelos golpistas. É notável que dois atiradores profissionais tenham alvejado um homem – o sem importância – nas costas, mortalmente, e o outro no pé, quando estavam lado-a-lado…

Foram dezenove dias do atentado ao desfecho do golpe. Uma reunião de gabinete foi convocada, após as conclusões do inquérito da República do Galeão. Nela, Zenóbio, o ministro da defesa, disse a Getúlio que devia renunciar, que era o exigido por um grupo de generais e civis. Convencionou-se, na reunião de 24 de agosto de 1954, que Getúlio pediria licença da Presidência da República, a partir de sugestão de Amaral Peixoto.

Acontece que os golpistas acharam a licença pouca concessão e um grupo de generais foi ao Catete, por volta das seis ou sete da manhã, exigir a renúncia. Getúlio já imaginava o que estava em curso e preparava a mais dramática e genial jogada da política brasileira. Ele já havia encomendado a Carta-Testamento a José Soares Maciel Filho, o presidente do BNDE e quase secretário pessoal do Presidente. Fez algumas revisões e reparos no texto.

Dois dias antes, o Presidente Getúlio havia recebido uma carta de oficiais da Força Aérea exigindo sua renúncia e respondera que: Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho razões para temer a morte.

Getúlio deu um tiro no peito, na manhã de 24 de agosto de 1954. Havia três exemplares da Carta-Testamento: um na mesa à cabeceira da cama, um no cofre e um entregue a Jango dia antes, em envelope lacrado.

Os golpistas não obtiveram um vencido, uma renúncia que seria confissão de culpa e traição ao povo, um governo manso e pacífico; obtiveram um cadáver dificílimo de sepultar.

O caixão com o corpo de Getúlio teve de ser embarcado em avião da Força Aérea para levá-lo a São Borja. A multidão era imensa no aeroporto Santos Dumont e a melhor forma de dispersa-la que os oficiais da Força Aérea conceberam foi atirar contra o povo, com o saldo de um morto e vários feridos.

Jango fez um discurso fúnebre em São Borja. Deslacrou a carta a si destinada depois e deve ter percebido o tamanho da complicação: era destinatário do único de três exemplares, único pessoalmente destinado. Pode estar aí alguma explicação do seu afã de evitar derramentos de sangue quando ele próprio foi vítima do golpe.

Quatro personagens emergem a partir de então, uma delas efêmera demais: Café Filho, o vice-presidente mais ou menos golpista; Carlos Luz, o presidente da Câmara efusivamente golpista; Henrique Teixeira Lott, o Marechal apegado à legalidade; e Nereu Ramos, o presidente do Senado da República, legalista, talvez por falta de vontade de ser golpista.

O contra-golpe de Lott é dos episódios mais espetaculares da história do Brasil e a personagem interessantíssima.

A banda de música. Getúlio Vargas, João Goulart e os golpes sucessivos. Parte 1.

Em 1952 – ou terá sido em 1953, não sei bem – João Belchior Marques Goulart assumia o Ministério de Trabalho, Indústria e Comércio, no governo de Getúlio Vargas. Sucedia a Segadas Viana, desgastado, que tinha sucedido a Danton Coelho, mais desgastado ainda. Isso, busco na memória de ter lido, que na de ter vivido é impossível.

Em 1953, Jango fez uma viagem ao Norte e ao Nordeste do país. Iniciou por Manaus, passou por Belém, São Luís, Teresina, Parnaíba, Fortaleza, Mossoró, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió e Aracajú. Quando o avião da força aérea pousou no Santos Dumont, no Rio, na volta, a multidão invadiu a pista. Foi preciso estacionar o avião antes do pátio, porque havia gente demais.

João Goulart era um homem bem-nascido e bem educado. Rico, filho de fazendeiro de gado na fronteira com a Argentina, tinha enorme visão empresarial. Percebeu a oportunidade de ganhar muito dinheiro com invernadas, ou seja, engordando o gado rapidamente, em pouco tempo e em pouca extensão de terras. No começo da década de 1930, Jango comprou um avião de dois lugares, pois facilitava as deslocações entre São Borja, a fazenda e Porto Alegre.

Em 1946, a escrituração contábil de Jango revela um patrimônio de U$ 500.000,00, ou seja, de um homem realmente rico. Nada obstante a riqueza e a origem, ele tinha enorme facilidade de comunicar-se com as pessoas, independetemente da classe social; era um sujeito simpático, enfim.

Getúlio Vargas foi deposto da presidência da república em 1945. Voltou para São Borja e foi morar na casa do irmão. Ele tinha nada, nenhuma pensão, aposentadoria, nem dinheiro. Tinha a herança ainda não dividida do pai. Precisou abrir inventário e obter um pedaço de terra e casa para viver, a Fazenda Itu, creio eu.

Essa observação, faço-a com o propósito de dar um pouquinho de história nesse momento de alucinação, em que maniqueísmo, ignorância, ânsia de ver sangue, corpos desmembrados, tudo isso mistura-se para turvar a política brasileira. O fato de Getúlio ter saído de 15 anos de presidência sem nada mais do que tinha 15 anos antes nunca foi contestado nem enfatizado. Foi o que tinha que ser.

Getúlio era contemporâneo de Vicente Goulart, o pai de Jango, já morto pelo ano de 1945. João Goulart começa a visitar o ex-presidente isolado na Fazenda Itu e desenvolvem uma relação íntima e paternal. Jango era amigo de Maneco Vargas, filho de Getúlio; ia quase todos os dias conversar com Vargas; respeitava-o bastante.

Jango entra na política. Articula a campanha presidencial de Getúlio para 1950. O homem é eleito por larga margem e volta ao Catete. Jango elege-se deputado federal e vai morar no Rio de Janeiro, no Hotel Regente. Quase todos os dias visita o Presidente, no Catete, onde conversam de política e de tudo.

O Presidente dá a João Goulart um gabinete no Palácio do Catete e, ano depois, o nomeia Ministro do Trabalho. João Goulart entra na cena das negociações entre trabalhadores e patrões e obtém popularidade com uns e com outros. Deixa o meio da repressão – clássico com relação às greves – e passa a conversar. O seu vice-ministro – não existe o termo –  Hugo de Faria, um homem anti-comunista convicto, lembra-se de uma pessoa com paciência quase infinita.

Getúlio viveu situação complicadíssima. Os seus 15 anos de presidência e ditadura anteriores, entre 1930 e 1945, tinham pouco a ver com esse período presidencial para que fora eleito em 1950. Em 1951, depois da guerra, enfim, Getúlio iniciou a presidência quando iniciava-se o período em que a dicotomia nacionalistas e entreguistas fazia sentido.

Getúlio era nacionalista. O país uma enorme reserva de recursos naturais e de mão-de-obra semi-escrava. O que ele visava era apenas inserir o Brasil no capitalismo, coisa que ainda está por ser feita, hoje. Industrializar o país era prioridade, mas isso conflitava com a noção ortodoxa da inclinação natural para exportação de recursos naturais, que é a perspectiva dos defensores semi-letrados embasados na leitura a duas páginas da teoria das vantagens comparativas.

É claro que Getúlio seria deposto. Ocorre que o getulismo era popular e tinha herdeiros declarados.

Devaneio: execução em praça pública.

Parte das classes médias vive dias de excitação enorme por conta do espetáculo oferecido pelo supremo tribunal federal e a imprensa majoritária. Trata-se de um suposto julgamento de ação penal contra vários réus, uns políticos, outros ex-políticos, banqueiros, publicitários.

Uma malta que teria criado um imenso e genial esquema – todos em perfeito e sincronizado acordo de vontades – para que o governo subornasse por meio de pagamentos mensais sua própria bancada de apoio no congresso.

Coisa que se fosse provada seria um feito a merecer registro nos anais da política brasileira, em que a tradição é comprar deputados esporadicamente, caso a caso, o que é mais caro evidentemente.

Até o presente, não apareceram as provas de pagamentos para que os parlamentares votassem pela aprovação das reformas tributária e previdenciária, que são as duas grandes votações que dão suporte à acusação. Nunca é demais lembrar que essas duas reformas foram aprovadas quase à unanimidade, ou seja, por partidos de governo e de oposição, o que aponta que se houve suborno foi um desperdício…

À parte a falta de provas, é fascinante perceber o tribunal supremo desfazendo todas as inverdades que os bacharéis em direito aprendemos em cinco anos de faculdade sobre penal e constitucional. Estava tudo errado afinal e esse intrépidos senhores togados vieram reparar iniquidades longevas

Aquela estória de presunção de inocência em matéria criminal era coisa para coitados, para românticos anacrônicos que não perceberam as emergências do momento presente. Aquela conversa de que na dúvida absolve-se foi enfim superada, a bem da celeridade no processo, valor supremo destes tempos tão céleres.

A maior de todas as tolices, a exigência de que a conduta dos malfeitores se adeque a uma previsão legal, que os tolos conheciam por tipicidade, isso acabou-se. Hoje, no recém inaugurado direito penal, bondosamente revelado pelo supremo tribunal, vigora a escolha caso a caso segundo o supremo discernimento que os magistrados têm.

Não haverá quaisquer riscos decorrentes dessas inovações porque os magistrados são infalíveis e neles se encontra coisa mais sólida e segura que em simples leis com pretensões a generalidade e abstração.

A EXECUÇÃO DOS MARCADOS PELO MAL

Andou muito bem o tribunal, porque o país estava farto da leniência da justiça com os políticos que cometeram os crimes mais graves da história deste país. História que, obviamente, é amplamente conhecida por todos, já que somos um povo cultivador da memória, das letras, da tolerância.

Livramos-nos de perigosos e inadequados anacronismos nestes tempos de emergência, em que o mundo e o Brasil estão infestados de terroristas e toda sorte de malfeitores. E nós, desacostumados a ver a face da corrupção, que nunca houve significativa por aqui, acreditávamos até pouco que a poderíamos combater com românticos sistemas garantistas.

O tribunal, por outro lado, ouviu os clamores públicos por justiça, ouviu a indignação dos justos cidadãos pagadores de impostos, que não suportam nem concebem que o país seja destruído pelos intuitos criminosos de uma perigosa e bem articulada quadrilha.

Não se concebe que meliantes deste grau de perigosidade ousem invocar preceitos arcaicos da velha ordem, como se todos não soubessem imeditamente que são culpados de tudo quanto os acusam e provavelmente de ainda mais.

Diante da gravidade das acusações e da importância de puni-los exemplarmente, iniciou-se o debate sobre a fixação das penas. Uma tímida parcela inclinou-se pela utilização das penas que a antiga ordem previa. Logo, como era de esperar-se, foi vencida e convencida pela maioria de que nada da antiga ordem teria serventia neste caso excepcional.

Os debates evoluiram e surgiu uma bela idéia. Os crimes eram tão graves e os culpados tão execráveis que convinha ao país livrar-se da simples possibilidade de ter a descendência desta gente entre seus cidadãos. Realmente, criminosos deste tipo têm algo de genético, ou seja, têm uma propensão natural ao crime, coisa que se transmite aos seus descendentes.

Daí que houve consensso quanto à castração de todos os culpados. Eles não poderiam engendrar mais seres detestáveis como eles e a medida justificar-se-ia plenamente. Até alguns choramingas que insinuaram inicialmente não haver evidências científicas de inclinações naturais foram convencidos.

Ora, que conversa mais tola essa de negar que a maldade é como a marca de Cain! É transmissível, sim, e o mal tem que ser cortado pela raiz para que não volte a macular um país que o não conhecia. Que sejam castrados, portanto!

Todavia, a inteligência insinuava-se aos poucos; aparecia furtivamente a um e outro membro deste magnífico tribunal, a revelar-se cada vez mais, em aspectos diferentes. Eis que um magistrado percebeu a possibilidade de aplicar-se pena muito mais efetiva e que implicaria também, por decorrência lógica, a pena antes cogitada da castração.

O ideal era executar os culpados! Ora, executando-os, tanto se lhes aplicava a pena máxima possível, quanto livrava o país de possível descendência que eles pudessem deixar. Foi rápida a adoção desta genial solução por todos os integrantes do tribunal, que logo perceberam sua superioridade sobre o que antes cogitara-se.

Porém, a fada da sapiência não deixou de pairar airosamente no magno recinto tribunalício. Esta boa emissária não se fatigava nos seus misteres até que os homens tivessem visto a verdade em sua plenitude. Foi aí que o magistrado da acusação teve um sonho e acordou encantado com as visões tidas.

Ele percebeu que a execução dos culpados era, sim, a pena máxima e o expurgo de alguma descendência futura, isso era verdade. Todavia, restava a descendência já nascida! Aquela gente carregada de culpa atemporal já tinha filhos!

O acusador compareceu à sessão seguinte com um discreto sorriso de quem se sabe guardião de uma idéia inédita e genial, daquelas que se devem revelar aos poucos, gozando o assombro dos outros e a inveja por não a terem aventado antes.

Acontece que a inteligência realmente estava entre aqueles ungidos. Tão logo o acusador desvelou partes da idéia, os demais perceberam-na. Não lhe negaram os créditos, mas percebia-se que a sintonia era tamanha que pouco mais ou menos, qualquer um teria chegado àquela conclusão sobre as penas idéiais.

Assim foi que a fada descansou; sua missão chegara a termo e tudo estava bem encaminhado. Com relação à forma de execução, ela estava segura que podia deixar essa parte somente para os magistrados, que eles saberiam levar as coisas da melhor maneira.

E ficou decidido que seria tudo em um só grande dia; que se iniciaria pela manhã cedo, à volta das sete e meia, afinal eram muitos os executados. Seria na grande praça que se abre em três lados para os palácios de governo, do parlamento e do tribunal.

Os culpados seriam conduzidos em fila, trajando uma túnica de pano grosso, pés e mãos amarrados. Alinhados em frente à grande tribuna, ouviriam a exortação para reconhecerem seus delitos de lesa nacionalidade e sua afirmação de aceitação da justa pena.

Decidiu-se que às pessoas assistentes seriam distribuídos pequenos binóculos, bebidas à vontade e leques para se abanarem. Deliberou-se, ainda, que a lei criminalizadora da posse de armas de fogo seria suspensa naquele dia, afinal suspender leis era imperioso nas emergências. Poderia haver algum partidário dos culpados pronto a querer agedir o egrégio povo ou, pior, os mais egrégios magistrados.

As execuções seriam por três meios: enforcamento, decapitação na guilhotina e fuzilamento. Assim, o meio do primeiro executado seria sorteado e os seguintes iriam na ordem. Isto proporcionaria mais sentido de justiça ainda, na medida em que cada assistente poderia rejubilar-se com o meio de execução que mais lhe agradasse.

Seriam pouco mais de cem os acusados a serem justiciados no grande dia. Às sete horas, já não cabia mais uma pessoa na grande praça; estava completamente tomada de gente eufórica pelo espetáculo da justiça a ser realizada materialmente.

O magistrado chefe quase não consegue ler o sumário de três linhas da sentença condenatória, tal era a gritaria na praça. Nada obstante, o justo magistrado não deixou de instar a multidão ao silêncio, pois não se permitia relativizar aquela importante formalidade. Era imperioso ler o sumário!

Afinal sorteou-se o meio de execução do primeiro culpado e deu enforcamento. Não poderia ser mais adequado, tratando-se o primeiro executado de um homem de aproximadamente 40 anos. Aconteceu o que muitas vezes dá-se nesta cena que os frágeis acham repugnante: o enforcado teve uma ereção…

A massa entrou em transe furioso, afinal aquele infame, aquele filho de Satanás tivera a ousadia de desdenhar de um ato de suprema justiça levantando voluntariamente seu membro viril, em evidente provocação ao povo e aos representantes dele e de deus na terra.

Daí em diante, a crônica não conseguiu mais registrar nada. A fúria justiceira do povo não podia mais ser contida. Alguns creem que daquela imensa confusão, que resultou em 3500 mortes, um ou outro culpado conseguiu escapar.

De minha parte, acho bastante improvável porque lastimavelmente nem um só dos magistrados escapou, embora protegidos por soldados. Estes, coitados, também pereceram todos nessa grande saturnália.

STF: o que certas escolhas implicam?

Na ação penal 470, o STF deveria julgar trinta e tantos réus pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro. Para ser rigoroso, o tribunal deveria julgar apenas três dos réus, que tem foro por prerrogativa de função. Mas, o Rubicão já foi cruzado há muito tempo.

O núcleo da acusação é que José Dirceu e outras figuras políticas do PT teriam alugado, mensalmente, o apoio de bancadas parlamentares integrantes da base de apoio ao governo, para votarem alinhados aos interesses do governo, notadamente em grandes votações como as reformas tributária e previdenciária.

À parte a falta de provas – que o tribunal superou ao inaugurar o novo direito penal brasileiro, devidamente expurgado de anacronismos como a presunção de inocência e o in dubio pro reo – fica a puerilidade da acusação em si. Primeiro que conseguir alugar uma bancada parlamentar brasileira seria uma façanha a fazer o autor merecer o céu sem escala no purgatório.

Segundo que alugar a própria base é, no mínimo, estranho. Mas, o anseio de linchar não se acanha diante de simples improbabilidades e estranhezas. A coisa foi adiante, bem embalada e propagandeada pela parte majoritária da imprensa atuante no Brasil – não digo brasileira por razões intuitivas.

Ainda que o acusador e os juízes creiam mesmo nisso – é de crença que se trata, pois sem provas não há verdade jurídica – ficarão diante de situação no mínimo embaraçosa, pois haverá quem os chame à coerência.

Ora, se as reformas tributária e previdenciária, em que os partidos oposicionistas votaram unanimemente, foram compradas, temos aqui leis inválidas, por vícios no processo legislativo. O acusador e os juízes irão até às últimas consequências?

Julgamento no STF começa como farsa e segue como violação à constituição.

Parte da classe média brasileira delira em gozo extático com o linchamento que o Supremo Tribunal Federal, apoiado e estimulado por grande parte da imprensa brasileira, promove contra réus que não deveriam nem mesmo serem julgados naquela corte. Essa gente já disse Anauê com muita satisafação.

As massas são assim e as coisas pioram quando a imprensa acha conveniente piorá-las e estimula as mais baixas inclinações. Não é necessário estimular as inclinações mais vis, que elas já têm impulso natural mais que suficiente.

Ora, em um julgamento criminal, 10 juízes do tribunal mais graduado de um país e o acusador-geral dão-se ao espetáculo surreal de discutir a condenação sem provas, como se fosse uma tertúlia de mesa de café, onde as coisas vão em termos abstratos e de simples cogitação. Nas mesas de café, discute-se tudo, em hipótese, até a revogação da lei da gravidade, mas em tribunal convém não rasgar a constituição assim explicitamente.

Infelizmente, parece que o único argumento restante contra tal aberração é aquele de lembrar aos relativizadores se desejarão, na eventualidade de virem eles a serem julgados, ser julgados com garantias relativas e a partir de provas tênues, a extraordinária nova postulção do acusador – geral.

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