Parte das classes médias vive dias de excitação enorme por conta do espetáculo oferecido pelo supremo tribunal federal e a imprensa majoritária. Trata-se de um suposto julgamento de ação penal contra vários réus, uns políticos, outros ex-políticos, banqueiros, publicitários.
Uma malta que teria criado um imenso e genial esquema – todos em perfeito e sincronizado acordo de vontades – para que o governo subornasse por meio de pagamentos mensais sua própria bancada de apoio no congresso.
Coisa que se fosse provada seria um feito a merecer registro nos anais da política brasileira, em que a tradição é comprar deputados esporadicamente, caso a caso, o que é mais caro evidentemente.
Até o presente, não apareceram as provas de pagamentos para que os parlamentares votassem pela aprovação das reformas tributária e previdenciária, que são as duas grandes votações que dão suporte à acusação. Nunca é demais lembrar que essas duas reformas foram aprovadas quase à unanimidade, ou seja, por partidos de governo e de oposição, o que aponta que se houve suborno foi um desperdício…
À parte a falta de provas, é fascinante perceber o tribunal supremo desfazendo todas as inverdades que os bacharéis em direito aprendemos em cinco anos de faculdade sobre penal e constitucional. Estava tudo errado afinal e esse intrépidos senhores togados vieram reparar iniquidades longevas
Aquela estória de presunção de inocência em matéria criminal era coisa para coitados, para românticos anacrônicos que não perceberam as emergências do momento presente. Aquela conversa de que na dúvida absolve-se foi enfim superada, a bem da celeridade no processo, valor supremo destes tempos tão céleres.
A maior de todas as tolices, a exigência de que a conduta dos malfeitores se adeque a uma previsão legal, que os tolos conheciam por tipicidade, isso acabou-se. Hoje, no recém inaugurado direito penal, bondosamente revelado pelo supremo tribunal, vigora a escolha caso a caso segundo o supremo discernimento que os magistrados têm.
Não haverá quaisquer riscos decorrentes dessas inovações porque os magistrados são infalíveis e neles se encontra coisa mais sólida e segura que em simples leis com pretensões a generalidade e abstração.
A EXECUÇÃO DOS MARCADOS PELO MAL
Andou muito bem o tribunal, porque o país estava farto da leniência da justiça com os políticos que cometeram os crimes mais graves da história deste país. História que, obviamente, é amplamente conhecida por todos, já que somos um povo cultivador da memória, das letras, da tolerância.
Livramos-nos de perigosos e inadequados anacronismos nestes tempos de emergência, em que o mundo e o Brasil estão infestados de terroristas e toda sorte de malfeitores. E nós, desacostumados a ver a face da corrupção, que nunca houve significativa por aqui, acreditávamos até pouco que a poderíamos combater com românticos sistemas garantistas.
O tribunal, por outro lado, ouviu os clamores públicos por justiça, ouviu a indignação dos justos cidadãos pagadores de impostos, que não suportam nem concebem que o país seja destruído pelos intuitos criminosos de uma perigosa e bem articulada quadrilha.
Não se concebe que meliantes deste grau de perigosidade ousem invocar preceitos arcaicos da velha ordem, como se todos não soubessem imeditamente que são culpados de tudo quanto os acusam e provavelmente de ainda mais.
Diante da gravidade das acusações e da importância de puni-los exemplarmente, iniciou-se o debate sobre a fixação das penas. Uma tímida parcela inclinou-se pela utilização das penas que a antiga ordem previa. Logo, como era de esperar-se, foi vencida e convencida pela maioria de que nada da antiga ordem teria serventia neste caso excepcional.
Os debates evoluiram e surgiu uma bela idéia. Os crimes eram tão graves e os culpados tão execráveis que convinha ao país livrar-se da simples possibilidade de ter a descendência desta gente entre seus cidadãos. Realmente, criminosos deste tipo têm algo de genético, ou seja, têm uma propensão natural ao crime, coisa que se transmite aos seus descendentes.
Daí que houve consensso quanto à castração de todos os culpados. Eles não poderiam engendrar mais seres detestáveis como eles e a medida justificar-se-ia plenamente. Até alguns choramingas que insinuaram inicialmente não haver evidências científicas de inclinações naturais foram convencidos.
Ora, que conversa mais tola essa de negar que a maldade é como a marca de Cain! É transmissível, sim, e o mal tem que ser cortado pela raiz para que não volte a macular um país que o não conhecia. Que sejam castrados, portanto!
Todavia, a inteligência insinuava-se aos poucos; aparecia furtivamente a um e outro membro deste magnífico tribunal, a revelar-se cada vez mais, em aspectos diferentes. Eis que um magistrado percebeu a possibilidade de aplicar-se pena muito mais efetiva e que implicaria também, por decorrência lógica, a pena antes cogitada da castração.
O ideal era executar os culpados! Ora, executando-os, tanto se lhes aplicava a pena máxima possível, quanto livrava o país de possível descendência que eles pudessem deixar. Foi rápida a adoção desta genial solução por todos os integrantes do tribunal, que logo perceberam sua superioridade sobre o que antes cogitara-se.
Porém, a fada da sapiência não deixou de pairar airosamente no magno recinto tribunalício. Esta boa emissária não se fatigava nos seus misteres até que os homens tivessem visto a verdade em sua plenitude. Foi aí que o magistrado da acusação teve um sonho e acordou encantado com as visões tidas.
Ele percebeu que a execução dos culpados era, sim, a pena máxima e o expurgo de alguma descendência futura, isso era verdade. Todavia, restava a descendência já nascida! Aquela gente carregada de culpa atemporal já tinha filhos!
O acusador compareceu à sessão seguinte com um discreto sorriso de quem se sabe guardião de uma idéia inédita e genial, daquelas que se devem revelar aos poucos, gozando o assombro dos outros e a inveja por não a terem aventado antes.
Acontece que a inteligência realmente estava entre aqueles ungidos. Tão logo o acusador desvelou partes da idéia, os demais perceberam-na. Não lhe negaram os créditos, mas percebia-se que a sintonia era tamanha que pouco mais ou menos, qualquer um teria chegado àquela conclusão sobre as penas idéiais.
Assim foi que a fada descansou; sua missão chegara a termo e tudo estava bem encaminhado. Com relação à forma de execução, ela estava segura que podia deixar essa parte somente para os magistrados, que eles saberiam levar as coisas da melhor maneira.
E ficou decidido que seria tudo em um só grande dia; que se iniciaria pela manhã cedo, à volta das sete e meia, afinal eram muitos os executados. Seria na grande praça que se abre em três lados para os palácios de governo, do parlamento e do tribunal.
Os culpados seriam conduzidos em fila, trajando uma túnica de pano grosso, pés e mãos amarrados. Alinhados em frente à grande tribuna, ouviriam a exortação para reconhecerem seus delitos de lesa nacionalidade e sua afirmação de aceitação da justa pena.
Decidiu-se que às pessoas assistentes seriam distribuídos pequenos binóculos, bebidas à vontade e leques para se abanarem. Deliberou-se, ainda, que a lei criminalizadora da posse de armas de fogo seria suspensa naquele dia, afinal suspender leis era imperioso nas emergências. Poderia haver algum partidário dos culpados pronto a querer agedir o egrégio povo ou, pior, os mais egrégios magistrados.
As execuções seriam por três meios: enforcamento, decapitação na guilhotina e fuzilamento. Assim, o meio do primeiro executado seria sorteado e os seguintes iriam na ordem. Isto proporcionaria mais sentido de justiça ainda, na medida em que cada assistente poderia rejubilar-se com o meio de execução que mais lhe agradasse.
Seriam pouco mais de cem os acusados a serem justiciados no grande dia. Às sete horas, já não cabia mais uma pessoa na grande praça; estava completamente tomada de gente eufórica pelo espetáculo da justiça a ser realizada materialmente.
O magistrado chefe quase não consegue ler o sumário de três linhas da sentença condenatória, tal era a gritaria na praça. Nada obstante, o justo magistrado não deixou de instar a multidão ao silêncio, pois não se permitia relativizar aquela importante formalidade. Era imperioso ler o sumário!
Afinal sorteou-se o meio de execução do primeiro culpado e deu enforcamento. Não poderia ser mais adequado, tratando-se o primeiro executado de um homem de aproximadamente 40 anos. Aconteceu o que muitas vezes dá-se nesta cena que os frágeis acham repugnante: o enforcado teve uma ereção…
A massa entrou em transe furioso, afinal aquele infame, aquele filho de Satanás tivera a ousadia de desdenhar de um ato de suprema justiça levantando voluntariamente seu membro viril, em evidente provocação ao povo e aos representantes dele e de deus na terra.
Daí em diante, a crônica não conseguiu mais registrar nada. A fúria justiceira do povo não podia mais ser contida. Alguns creem que daquela imensa confusão, que resultou em 3500 mortes, um ou outro culpado conseguiu escapar.
De minha parte, acho bastante improvável porque lastimavelmente nem um só dos magistrados escapou, embora protegidos por soldados. Estes, coitados, também pereceram todos nessa grande saturnália.