Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica.

Se está acabando el partido, vamos tres a cero, nos ganan los brasileños.

En el salón de mi casa veo la indignación de mis compañeros ante la derrota anunciada. Ya no hay remedio: perdemos. Me cuentan cómo se ha desarrollado el juego, hablan de suerte y desgracia, al parecer, las “canarinhas están en una buena racha. Los escucho por educación, sin inmutarme porque el fútbol no me importa nada. Después de todas las críticas y juramentos de mis compatriotas, enrabietados con la victoria del gran gigante del Sur, pronuncio la frase que da título a este texto:

“Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica”.

—¡No digas eso! —me imploran— pero ya es tarde, mi sentencia cae sobre el murmullo de una sala de estar que ya no quiere ser.

Poco después hago otro comentario mucho más desafortunado:

“Mañana empiezo los trámites para solicitar un pasaporte azul”.

Mis amigos me miran con una mezcla de euforia y decepción.

No me he unido al enemigo, hace tiempo que formo parte de otro equipo,

de otro esquema sociocultural, de otra orilla, que no es la misma que me vio nacer un día.

Yo ya soy del Sur, extranjera, adoptada, inmigrante retornada.

Hace más de un año que volví a España y, desde entonces, el desarraigo

de una “desubicación” exacerbada recorre mi sangre y aviva mis ganas de huir

a cualquier otra parte, lejos de aquí y dentro o cerca de las fronteras del verde Brasil.

Nos ganan, sí, pero no ahora, hace ya tiempo que perdemos todos los enfrentamientos con patrias americanas por goleada. Perdimos hoy, pero también ayer y tal vez mañana.

El deporte, que antes nos beneficiaba, llenando de medallas y gritos de triunfo

un país minado por las deudas, los impagos y los desahucios,

ahora nos expone ante nuestras carencias y temores.

Hoy nos acusa de una mala gestión en el campo de cualquier juego,

mientras Bárcenas se muere de miedo frente a un extraño compañero de celda y

el ciudadano de a pie revienta de rabia frente a sus iguales en el viciado ambiente de todos nuestros bares.

Nos vamos a pique en todas las riberas, el barco no se hunde: se entierra.

No nos ahogamos: nos sepultan.

No nos marchamos: nos expulsan.

No nos morimos: nos marchitan.

El fracaso no lo creemos: no los inculcan.

Um texto de M. E. M. C.

Os manifestantes, do MPL e de todos mais, votam.

Manifestações massivas houve em grande parte das maiores cidades brasileiras e continuam, com maior ou menor força, a depender de que vertente seja considerada. Iniciaram-se a partir do Movimento do Passe Live – MPL, na sigla que facilita tudo e revela o jornalitismo que impregna a escrita. O MPL voltou-se contra um absurdo imenso, que são os preços dos transportes públicos no Brasil, preços que drenam parcela significativa da renda dos usuários e custeiam serviços ruins.

Isso da haver manifestações massivas surpreende uns, desagrada outros e mete medo em alguns. É comum, da parte do governo, minimizar as coisas e da parte das oposições, propor repressão radial, por um lado, e tentar apropriar-se, por outro. As manifestações são movimentos políticos, o que é inescapável e ainda bem que assim é.

Na raiz do MPL está a ascensão de parcelas da pobreza e da classe média muito baixa a condições melhores. Isso ocorreu nos últimos dez anos e pode ser explicitado por números até para os impermeáveis que vivem a vida entre o apartamento de 150 m2, o Land Rover blindado e o shopping center com estacionamento caro e não servido por linhas de ônibus. Se esta gente perceberá mesmo a evidência dos números, é outra coisa.

Mudar ainda que timidamente a estrutura de apropriação de rendas de um país populoso é algo que insere no jogo variáveis com que os mesmos promotores da mudança não contavam. Eles, com as poucas exceções de sempre, pensam em termos organizadinhos demais e ficam pela estória do pessoal estar a comprar mais TVs e geladeiras.

Acontece que o maior consumo de TVs e geladeiras é a parte evidente do encontro dos interesses dos ascendentes e dos sempre estabelecidos. Haverá, sempre, espaços de não intercessão entre os interesses desses grupos. Os vendedores deslocar-se-ão em helicópteros, tratar-se-ão no Sírio ou no Einstein e contarão com uma benevolência inercial quando tiverem que recorrer a serviços públicos não essenciais.

Aí, os interesses desconectam-se. Para quem viu a situação melhorar timidamente no que se refere ao poder aquisitivo, breve será o intervalo para perceber que certas coisas, a despeito da melhora inicialmente mencionada, continuam estruturadas muito mais a favor de quem oferece serviços concedidos, principalmente.

É também muito natural que os governantes se acomodem e creiam que serão endeusados ou pelo menos reconhecidos perpetuamente pelo que já foi obtido. Mas, é sinal forte de vitalidade social pedir mais e isso houve com o MPL.

O desconcerto atingiu, tanto governo, quanto oposição e seu braço condutor, a imprensa. Uma semana intermediou a tomada de posições dessas duas partes envolvidas. Governos, em várias esferas, viram rápido a necessidade de reprimir a crescente violência e vandalismo dos movimentos, mas sem violar a proporcionalidade, como a tinham violado com violência brutal, no início.

Oposição e imprensa levaram aproximadamente uma semana até passar do convite reiterado à repressão brutal à percepção de que podiam apropriar-se dos movimento como se eles fossem à partida, específica e unicamente contra o governo federal. Nesse ponto, recuaram dos convites à repressão e passaram a criar pautas para os movimentos que não eram as deles movimentos.

Do ponto de vista da oposição, abria-se uma maravilhosa janela para inserir algo que nunca têm: povo. A partir daí, seria mais fácil dar a segunda volta do golpe sempre sonhado e trabalhado: tornar a coisa um caso judicial. Daí que inseriram os ovos da serpente: o anti-partidarismo – que nesses casos atende pelo incorreto termo apartidarismo – e a contrariedade a coisas que um movimento de massas não consideraria nem reputaria relevante, como se deu com a artificialíssima objeção à PEC 37.

Tão grande foi o descompasso entre o que os media diziam ser objetivos dos protestos e o que percebem as pessoas e vêem nas TVs, que a coisa revelou-se um tanto absurda. É complicado até para o mais rede globo dos seres negar que usaram de mão muito pesada no viés forçado que deram às coisas. As manifestações iniciadas pelo MPL não eram contra o governo, elas eram para além do governo.

O governo, este insistiu, inicialmente, na tolice de ver somente infiltrados a soldo para desvirtuarem os movimentos. Claro que infiltrados a soldo há muitos, porque Cabo Anselmo não é algo único, mas não é possível, tampouco que Cabo Anselmo seja 100%. Nesse ponto, a Presidente Dilma parece ter percebido com bastante acuidade de que se tratava, e disse haver boa-vontade em conversar com os proponentes reais, disposição de revidar o vandalismo puro e simples e vontade de aperfeiçoar o jogo político.

Sabiamente, o MPL denunciou a inautenticidade da virada à violência que se viu na maior parte dos protestos subsequentes aos momentos iniciais. Isso que se põe sob a sigla MPL quer tarifas de transportes adequadas e quer aprofundamento da democracia. Ora, isso convém aos integrantes deste governo que não tenham sido inteiramente capturados pela autoreferência ou pela inércia do salvador que se crê merecedor de sacrifícios diários no altar da celebração acrítica.

Seria inteligente que o núcleo a pensar o que foram melhoras evidentes nos últimos anos percebesse que seu projeto é deles e dos destinatários também, que são os manifestantes não voltados à porralouquice do contra todos e tudo e contra PEC 37 e outras irrelevâncias deste tipo. Os governantes não terão espaço para querer manter a autocracia. E não terão espaço para querer manter-se no governo se acharem que manifestações são nada, porque afinal eles seriam os depositários da verdade na condução de um povo incapaz de conduzir-se.

Haverá quem o perceba, espero eu. Porque, do contrário, a coisa toda volta a ser o substrato de apoio porralouca ao golpe que se dará contra a maioria, inclusive contra os que foram desempenhar patéticos atos de vandalismo. A parte vândala e pautada por uma lista de prioridade que parece advinda exatamente de onde estaria o alvo da manifestações, essa é massa de manobra clássica e sempre serve ao que se triunfante os porá em situação ainda pior.

Se a lógica formal fosse essa maneira divina de decifrar e expor a realidade, perceberiam todos que os movimentos não são, nem o pedido de derrubada de um governo, nem uma falsificação totalmente manipulada contra o governo. As manifestações – excluindo-se vândalos, infiltrados, neo-nazis e coisas do gênero – são vontade de participar na política, porque querem mais e não aceitam retrocessos, embora essa última negativa ninguém enfatize.

Para o governo hoje chefiado pela Presidente Dilma, o caminho mais sensato a trilhar passa por expurgar os elementos do governo que creem em simplismos e acham conveniente aliar-se à imprensa inimiga para tachar os manifestantes de alienados. E deixar de insistir em dizer -se aberto a conversas com movimentos organizados. Terá que falar com organizados e desorganizados, embora nunca tenha que conversar com criminosos, porraloucas ou nazistas a soldo.

Para a oposição, conviria que deixasse de achar sempre a melhor estratégia o quanto pior melhor. Além de ser facilmente identificável a patifaria, porque o comerciante em prejuízo não ouve conversa besta ideológica, a baderna não agrada a todos e nem sempre é eficaz pô-la na conta do governo, porque há contradições tão grandes que até a proverbial imbecilidade da classe média tem limites e é capaz de ver a farsa, quando evidente demais.

O que o povo quer, deve ser escutado. O mais difícil de tudo é que o médio classista ouve o que lhe diz quem não comunga com ele dos mesmos interesses. O médio classista é o sujeito que abomina o suicídio social, mas está sempre à beira dele por não pensar organizadamente com sua própria cabeça.

Hoje, manter tudo como está implica – a provar o dito proverbial do Príncipe de Salina, ou terá sido Tancredi, não lembro – mudar quase tudo. E, para desespero de quem tentou apropriar-se das manifestações e montar o cavalo selado, mudar tudo para manter tudo é dar mais uma volta nos parafusos da melhora de distribuição de rendas e principalmente no da democracia direta.

A hesitação da Veja e da Globo deixou a classe média sem opinião por uma semana.

Tem havido manifestações em grandes cidades brasileiras, que inicialmente voltavam-se contra os aumentos das passagens de ônibus urbanos. É fora de dúvidas que são preços altos e pesam significativamente nos orçamentos dos usuários. Essas manifestações tomaram dimensões muito grandes e persistem com a força inicial, agora voltadas contra quase tudo que envolva aspectos de interesses individuais e de grupos.

Não compreendo bem as movimentações – que são algo relevante – mas acho realmente difícil e até arrogante pretender compreender coisas assim amplas rapidamente. É preciso perceber, além do presente e dos interesses em jogo, os episódios históricos semelhantes que se podem por como termos de comparação.

Mas, não escrevo para tentar perceber as manifestações, que envolveram muita violência policial, inclusive. Escrevo para rir-me de algo realmente cômico.

Dois meios de comunicação hesitaram por uma semana antes de se posicionarem taxativamente sobre as manifestações, o que deixou a classe média sem ter o que pensar delas também, porque não pensa exceto pelo que pensam para ela.

É verdade que um e outro, isolada e apressadamente, expuseram opiniões advindas das profundezas duodenais. Foi o caso do tolo enfurecido Arnaldo Jabor, que desfiou lugares-comuns como baderna, arruaça e coisas do gênero, aptas a emocionarem seu público cativo de superficiais propensos ao linchamento e à defesa da atividade policial como prende e arrebenta.

Acontece que os patrões, após a hesitação inicial, perceberam que havia dividendos políticos a se obterem da coisa, dizendo, enfim, que era revolta popular contra o governo. Demoraram um pouco, mas perceberam que servia aos designios monômanos de atacar governo que cometeu o pecado de trabalhar mais pelo país que por patrões estrangeiros e promoveu discreta redução nas abissais desigualdades socias.

Não vejo Globo, mas creio que o patético Jabor já deve ter-se desdito, na mesma linguagem tão exasperada quanto cheia de verdades que adota. O patrão dele deve ter-lhe dito da imbecilidade em que incorrera, deixando-se levar pelas categorias poucas que o pautam. Devem ter-lhe dito que a coisa era boa para falar mal do governo e ele, tão gênio, não percebera, mais afeto ao pensamento duodenal que ao cerebral.

O caso é que comicamente, por uma semana, era impossível encontrar alguém com opinião sobre as manifestações, porque a Veja e a Globo ainda não lhas tinha fornecido.

A classe média paga caro.

É moda a classe média brasileira reclamar dos preços de serviços e produtos que adquire e eles são obscenos mesmo. O Brasil ficou caro antes de ficar bom de viver, o que é terrível de perceber para alguém como eu, que verá este país rico, mas provavelmente nunca o verá em padrões adequados de vida e de convívio.

Esses preços altíssimos de que reclama a classe média e que ensejam apropriação política oportunista como discurso oposicionista decorrem da postura dela classe média e das que lhe são superiores em termos de apropriação das rendas. Os estratos médios e altos fizeram tudo à medida para que houvesse o elevadíssimo custo que se vê.

A apropriação política dos altos preços brasileiros é algo que não merece abordagem superficial, como a que fazem meios de comunicação dominantes e imbecilizantes, tão bem aceites nas camadas que mais reclamam. Os media limitam-se à cantilena contra a carga tributária, que é alta, mas é alta para os mais pobres, não propriamente para as classes médias e altas.

A tributação brasileira é profundamente regressiva e violadora do princípio da capacidade contributiva, porque incide maioritariamente sobre o consumo. Sobre rendas e propriedade é muito baixa em termos comparativos. O que se encarece muito por tributos encarece-se igualmente para todos: quando eu, o acionista maior do Banco Itaú e alguém que vive com um salário mínimo compramos um quilo de carne, pagamos todos a mesma coisa em impostos, o que é suma injustiça e não demanda explicações do porque.

Uma parte dos altos preços no Brasil advem de aumento recente da procura, num mercado ávido por consumir, sem conhecimentos e sem parâmetros de comparação. Neste ambiente de elevação dos níveis de renda, é fácil praticar altas margens de lucros; é fácil cobrar caro por produtos e serviços medianos ou ruins.

Outra parte disso advem de custos de logística, o que é deficiência inegável num país que passou trinta anos sem gastar nisso e oito desses trinta a escutar que a milagrosa iniciativa privada gastaria no que o governo inibiu-se em gastar. A iniciativa privada nada mais fez que cobrar pelo uso daquilo que recebeu em concessão sem fazer qualquer investimento adicional.

Outro aspecto – o que os reclamantes não podem ver nem aceitar caso vejam – é a resultante inevitável da armadilha da predação, feita pelos que hoje reclamam e que os aprisionou.

Aqui, convém apontar os três pontos fundamentais do custo elevado de vida da classe média: habitação, educação e saúde.

Os preços de imóveis no Brasil não se explicam a partir da ortodoxia doutrinária. É claro que houve aumento grande da demanda das classes médias baixas ascendentes, forçando um aumento de preços dos imóveis visados por esta camada, mas isso não se aproxima minimamente da absurda valorização dos imóveis destinados às camadas mais altas.

O jogo da elevação de preços de imóveis para classes médias e altas seguiu altivo até níveis impudicos porque gerou ganhos especulativos para os adquirentes. Funciona – ainda – como esquemas de pirâmide, em que fica cada vez mais arriscado para os que entram tardiamente. Qualquer crise de desconfiança pora o esquema abaixo e implicará desvalorização profunda desses imóveis.

Se alguém me diz que, como investimento especulativo, vale à pena comprar imóveis pequenos destinados à classe média baixa porque ela apresenta demanda reprimida, eu acredito, faz sentido. Se, por outro lado, alguém me diz que a valsa de famílias de classes altas a comparem apartamentos imensos por preços superiores aos de Paris continuará até ao infinito, eu começo a desconfiar.

Estes últimos, são imóveis que se pretendem semelhantes àlguma moeda fiduciária que paga juros – como o dólar norte-americano – e isso tende a perder sentido à medida em que alguns se recusam a comprar as promissórias. Não há mesmo muito sentido em famílias terem dois ou três aparatamentos de luxo a acreditarem que outras famílias que também têm dois ou três dos mesmos quererão comprar o quarto.

Ou seja, o problema dos preços obscenos dos imóveis de classe média deve-se muito à atitude predatória da própria classe média e às margens de lucro também obscenas dos construtores. Um castelo de cartas que cairá e será bom que caia.

Com relação aos preços de educação e de saúde, as classes média e alta experimentam o que elas mesmas produziram, porque elas detém o poder político. Deixaram os serviços de educação e de saúde públicos tornarem-se ruins porque puderam fugir deles e fazer o Estado pagar para elas por serviços privados.

Ao mesmo tempo em que relegavam educação e saúde públicas ao sucateamento, porque eram para pobres, criavam formas refinadas de assalto ao Estado para que este lhes financiasse educação e saúde privadas, por meio de subsídios em descontos ficais, em subvenções a entidades privadas supostamente de interesse público, em planos de saúde coparticipados e outras variantes do engenho saqueador nacional.

Daí que o aumento dos preços de escolas particulares e de planos de saúde privada são coisas interiores ao modelo das classes média e alta, em que algumas corporações perceberam que tinham campo para ofertarem limitadamente e com mercado certo os serviços e assim cobrarem o que quisessem. Isso resolve-se muito simplesmente com o recurso ao setor público e quando as classes médias demandarem o Estado ele oferecerá educação e saúde adequadamente.

Há, claro, os pontos de reclamação que são difíceis – para quem honre os lóbulos frontais – de abordar excepto pela mais simples lógica capitalista. Restaurantes caríssimos com refeições medíocres, cafezinhos em aeroportos mais caros que em Heathrow, cerveja ruim a oito reais, tudo isso se arranja com o tempo ou com uma improvável recusa ao absurdo.

Agora, é desonesto não perceber que muito disso deve-se ao jogo criado pelos próprios reclamadores e às margens de lucro obscenas permitidas por um mercado imaturo, deslumbrado, que gasta como se gasta dinheiro roubado, que não tem mesmo qualquer gosto.

É patife por a conta em tributos ou em renda do trabalho, onde os manufaturados ainda são muito mais caros que os serviços, ou seja, onde o capital apropria muito mais que o trabalho.

Uma conversa com Machado. Por Alcides Moreira da Gama.

Um texto de Alcides Moreira da Gama

O amigo e mestre Andrei solicitou-me escrever algo sobre Machado de Assis. Nos tratamos mutuamente assim: mestre. Mas o discípulo sou eu. É um desafio e tanto. E, sinceramente, não sei se sou capaz. Mas, mesmo cônscio disso, vá lá, aceitei o desafio.

O que dizer sobre Machado? O Brasil, apesar de tudo, é um país em que, de quando em quando, surgem agradáveis surpresas. Muitos cidadãos desprovidos de condições mínimas para galgar uma vida digna conseguem vencer barreiras dificílimas para chegarem a um patamar social razoável.

Apenas para citar dois exemplos: todos conhecem a história de Lula, criança saída dos confins do agreste pernambucano, torneiro mecânico, semialfabetizado, como pejorativamente dizem, chegou a ser Presidente da República, deixando o cargo com uma popularidade excepcional; meu pai, sem a mínima condição social quando criança, sendo em algumas ocasiões rejeitado em ambientes públicos por conta de sua paupérrima indumentária, estudava em bancos de praça, pois não havia energia em casa, chegou a passar em vários concursos públicos, alguns na primeira colocação, logrando êxito também no vestibular para Letras, tendo abandonado o curso.

Por que cito esses exemplos? Machado foi desses sujeitos. Mulato, nascido em sociedade ainda escravagista, gago, epilético, fez o que fez. Verdadeiras obras primas da literatura brasileira, elegantemente bem escritas. Ele, agora do outro lado, assim com Brás Cubas, deve rir-se de nós, por tentar querer desvendar sua vida depois de morto.

Permita-me, Machado, indagar-lhe o porquê de tanta ironia nas suas obras. Parece-me que ninguém escapa de suas tintas. Percebo que é homem letrado e muito bem informado dos fatos políticos de sua época, mas não consigo captar se você – permita-me tratar-lhe assim – é republicano ou monarquista, se defende a abolição ou não.

É conhecedor das Escrituras, mas não se mostra se é ateu ou não. Talvez você me responda que são apenas obras de arte e que não retratam realmente a sua vida particular. Mas, eu na minha insignificância, insisto em dizer que os autores das obras de arte sempre querem transmitir algo. E você continuará rindo, afirmando que quis dizer sim algo. Na verdade, muitas coisas.

O nosso problema, Machado, é que nós, que não somos gênio, queremos adentrar na mente de um, ainda mais quando ele está morto. Queremos chegar aos seus pensamentos, suas ideias, por meio de suas obras. E aí alguns chegaram a várias conclusões sobre sua vida particular. E você responderia que se é particular não era para ser descoberta. Mais uma ironia de sua parte.

Por que não teve filhos, Machado? Você responderia que sua vida com Carolina foi a melhor vivida. Os críticos literários chegaram-lhe a diagnosticar infertilidade, e você continuará rindo de nós, indagando-nos se isso faria diferença. Afinal, revista de fuxico é do tempo de vocês e não da minha época.

Mas, Machado, falando nisso, se você estivesse entre nós hoje, o que faria? Você responderia que não faria nada, pois suas obras foram completas e continuam atuais.

Machado, isso não seria uma ponta de orgulho de sua parte, assim como ocorreu com Lalau? E você responderia que o orgulho de Lalau sou eu quem o afirma. De mais a mais, aqui do outro lado não existe orgulho. Aprendi isso com Brás Cubas.

A propósito, diria-me ele, curioso leitor Alcides, lembro-lhe a dedicatória de Brás: “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.

Machado, a curiosidade que você nos aguça em Dom Casmurro é imensa. Bentinho foi traído ou não por Capitu? Responder-me-ia: todos os homens têm medo de serem traídos, mais que as mulheres. Mas não lhe responderei a pergunta, leia mais o livro.

E, por fim, arremato: Machado, por que tenho a sensação de pessimismo em suas obras? Porque na sociedade em que vivemos tudo parece tão belo e perfeito. E ele, como resposta, mostrar-me-ia trecho do último capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

 

Uma farsa e trinta e sete Dreyfus.

Um ponto de contacto entre as corporações militares, judiciárias e clericais é a reinvidicação da infalibilidade e do direito a ser farsesco de maneira irresponsável.  Assim, mesmo depois da farsa desvelada ela mantém-se e as reparações se fazem como soluções compromisso: é formula intrinsecamente contraditória do estava errado e estava certo.

Isso, claro, acontece muito por conta de um sistema interno de cumplicidades, sem o que desmoronariam mais rapidamente e, principalmente, sem o recurso às contradições profundas.

Em 1894 o capitão Alfred Dreyfus foi condenado – se não me engano em quatro ou cinco dias – por alta traição à França. O capitão, segundo apuraram os sábios do conselho de guerra, passara segredos militares para um adido militar da Embaixada da Alemanha em Paris. A prova essencial era um documento sempre mencionado e afinal simplesmente inexistente.

A prova realmente usada, a que deu ensejo ao início da farsa linchadora, era a simples afirmação de que a caligrafia da carta encontrada no lixo da Embaixada era de Dreyfus. Um qualquer oficial do exército francês disse que a letra era de Dreyfus porque já vira qualquer coisa escrita à mão por ele. Só isso. Nada importou que um perito, um funcionário do Banco da França, então o maior especialista em grafotécnica, dissesse que não havia como dizer que a caligrafia era de Dreyfus…

O oficial judeu foi degradado publicamente, em frente à Escola Militar e mandado para cumprir prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Pouco depois, o chefe dos serviços secretos militares descobriu um telegrama enviado por um oficial superior do exército francês ao adido militar alemão. Um documento autêntico que, sim, revelava segredos militares aos eternos inimigos.

O homem teve capacidade de indignar-se e falar da descoberta com oficiais generais, inclusive do tribunal que é o conselho de guerra. Obviamente que passou a ser ameaçado e perdeu a chefia dos serviços secretos. Com o intuito de proteger-se de retaliações mais profundas e menos formais, ele deu a conhecer o episódio e deu o próprio documento a um advogado renomado de Paris, pedindo-lhe que guardasse sigilo e só tratasse do assunto caso solicitado.

O advogado parece que tinha ainda mais capacidade de indignar-se e – ante a imensa e estúpida injustiça cometida contra Dreyfus – procurou um vice-presidente do Senado francês. O parlamentar procurou os infalíveis fardados-togados e a reação foi violenta e no sentido de deixar-se tudo como estava.

A insistência, porém, levou o autor do telegrama traidor da pátria, de autoria certa, ao conselho de guerra, para julgamento. Charles Esterhazy, major do exército francês, autor das correspondências para o adido alemão, era um escroque, chantagista, mal-caráter, jogador, metido em inúmeras dívidas, e foi absolvido no conselho de guerra em questão de 48 horas.

O sistema de cumplicidades que leva à proteção de pequenos e infames delinquentes como Esterhazy envolve coisas como saber as corrupções do general fulano, na compra de materiais bélicos, ou com qual polonesa o general sicrano vai ter à noite. Não raro, os Esterhazy são sumariamente liquidados, quando isso é possível sem muito escândalo. Na ocasião, não era.

Outra coisa a permitir que siga a farsa e não desmorone rapidamente, além dessas cumplicidades criminosas de gabinete, é a imensa propensão do público médio à histeria a partir de alguma idéia aglutinadora o mais tola possível: no caso, o antissemitismo. Dreyfus era judeu e, portanto, culpado à partida, posto que essa invenção tão genial quanto ausente de sentido que é o antissemitismo, à época, formava culpa prévia por qualquer coisa.

É conveniente fazer aqui um pequeno parêntesis para dizer que, hoje, o antisionismo produz o mesmo efeito alucinatório nas massas, e hoje porque é confundido com o antissemitismo, embora sejam coisas nitidamente diferentes. Os deuses têm que se divertir, enfim.

A absurdidade profunda não comunica qualquer coisa às massas médias, mas instiga reações em alguns seres mais que médios. Após a segunda volta da farsa, que foi a absolvição de Esterhazy a despeito de haver provas inequívocas, a coisa foi a ponto de meter em brios um homem que já era velho e de polêmicas aparentemente já se fartara: Emílio Zola.

Ele escreveu a famosíssima peça Eu Acuso, publicada numa espetacular tiragem de 300.000 exemplares por Clemanceau. Este último, por sinal, foi quem deu o fantástico e contundente título, posto que Zola havia intitulado o escrito de outra forma, algo como a emergência da verdade, mas não me lembro agora exatamente, nem vou pesquisar.

Zola não ressuscitou do mundo dos polemistas, até porque polemista era na verdade maneira depreciativa de tratar o grande artista das letras e o caso Dreyfus não cuidava senão de infâmia profunda, não de polêmica superficial. Zola acusa, um a um, os oficias fardados-togados do conselho de guerra e diz esperar o processo que contra ele se abrirá e que o condenará. Quem percebe os grandes passos não duvida da condenação. Ela houve, claro, e Zola foi para a Inglaterra.

A questão de fundo era a República francesa e o anseio de retorno da monarquia, ou seja, questão de poder. As linhas do caso evidenciam-no, na medida em que essencialmente traidores da nação são os monarcas e as casas reais, cujos compromissos e cumplicidades estabelecem-se entre famílias – pouco importando países ou nações – e não com um grupo identificado por língua, costumes, cultura, fronteiras.

O hiato da monarquia na França era já bastante longo, porque Napoleão III não foi um episódio político monáquico, senão o anúncio da única forma de existência estável da França: um império, ainda que decadente, sem dinastia. De Gaulle o percebeu, o próprio Giscard – com todo o ridículo do protocolo real – também, Chirac compreendeu muito bem e, principalmente Mitterand.

A partir de uma mentira pueril, sem provas quaisquer, monta-se a farsa que iria dar no golpe contra a República. Para chegar próximo ao ideal, havia um oficial judeu à disposição.

Depois da absolvição de Esterhazy e da condenação de Zola, as pressões tornaram-se insuportáveis e o governo – gabinete e parlamento – percebeu que era melhor salvar o regime a proteger incondicionalmente a casta fardada-togada. Estava em jogo eles mesmo, enfim, e a França também. Estava em jogo, ainda que tenuemente, o porquê de 1873. Alguém mais apressado diria que o exército era, ele mesmo, por seu comando, traidor da nação.

Fato é que já no século XX, em mil novecentos e poucos, depois das evidências gritantes fazerem seu papel e os políticos perceberem que estavam eles próprios em risco, Dreyfus é indultado pelo presidente da república. O perdão presidencial ocorreu depois da morte de Zola, em 1902, em circunstâncias muito suspeitas, que levaram o filho, inclusive, a suspeitar de homicídio.

O mais interessante nisso é outra contradição fundamental reveladora da força da cumplicidade interna às corporações poderosas: o perdão a Dreyfus não implicou a culpa de quem culpado era, nem a culpa dos que o condenaram sumariamente sem quaisquer provas. É como se as corporações fardadas-togadas fossem totalmente irresponsáveis. Erram e o erro não é erro.

Cento e dez anos depois, coincidências perfeitamente adequadas à história, o mesmo dá-se no Brasil, qualitativamente. Uma farsa possivelmente virá abaixo, mas os farsantes não terão errado. A contradição e a irresponsabilidade são próprios de certos grupos corporativos detentores de poder, e notadamente dos grupos fardados-militares.

Ainda que seus erros sejam evidenciados, produz-se uma solução de compromisso em que se reabilitam os injustiçados e se mantém intocados os linchadores.

Proposta para melhorar saúde e educação públicas no Brasil.

Os serviços de saúde e a oferta de educação são universais e gratuitos, nos termos da constituição brasileira de 1988. A fórmula é de abrangência que não se encontra em outros países, na medida em que universalidade e gratuidade não estão condicionados por qualquer coisa além do orçamento do Estado. Não se exigem quaisquer contraprestações, nem a nacionalidade brasileira.

Nada obstante a declaração na constituição, a realidade apresenta dois serviços ruins. É verdade que a saúde, por meio do SUS – Sistema Único de Saúde – teve melhoras na qualidade dos serviços prestados. Na educação, embora os investimentos tenham aumentado significativamente, os resultados são muito ruins: recentemente o Brasil ficou em penúltima posição numa pesquisa a envolver quarenta países.

Não se trata apenas de dinheiro, evidentemente, quando se buscam razões para as deficiências. Há desperdícios e ineficiência, mas a questão central não se encontra pontualmente. No fundo, há problemas porque os grupos detentores de poder real não estão preocupados com os problemas.

Ninguém reclama a sério dos defeitos dos serviços que não usa; no máximo faz ressonância a reclamações que se convencionou bonito repercutir, por pura conveniência de manter uma boa consciência.

Pois bem, o poder real, no Brasil, encontra-se nos estratos sociais que vão das classes média para cima. Esses grupos não se servem ou pouco servem-se de serviços públicos de saúde. Com relação à educação, esses grupos servem-se da educação de nível superior pública e, por isso mesmo, ela é superior à privada, na enorme maioria dos casos. Ainda pela mesma razão, a educação nos níveis fundamental e médio é ruim.

Aquilo que não é ofertado aos estratos médios e altos tende a funcionar mal, embora haja serviços públicos bons, como é o caso da educação superior, precisamente porque seu maior alvo são os estratos detentores do poder real.

A conclusão é inescapável e sua correção pode ser medida pela ojeriza que essa proposição desperá nas pessoas componentes das classes dominantes: para funcionarem SUS e educação fundamental e média é necessário que delas precisem as camadas média e alta da sociedade brasileira.

Ocorre que o sistema todo é conformado para evitar essa utilização de saúde e educação públicas pelas camadas média e alta, o que evita também a melhora da qualidade dos serviços.

Um Estado capturado por minorias cria mecanismos contraditórios às premissas de universalidade e gratuidade dos serviços de educação e saúde. Um desses mecanismos, que deveria ser suprimido – até por imperativo de coerência interna – são as deduções de despesas médicas e com instrução no imposto a ser pago sobre a renda.

É de uma clareza ofuscante a aberração que é deduzir do imposto pago aquilo que se despendeu com algo oferecido gratuita e incondicionalmente pelo Estado. Se algo é posto a disposição das pessoas sem custos e elas resolvem pagar por isso particularmente, não há qualquer razão para esse dispêndio por opção privada ser suportado duplamente extamente pelo Estado que já oferece o mesmo. Isso socializa os custos privados de classes privilegiadas, além de ser um contrasenso difícil de refutar.

Seriam legítimas deduções no imposto sobre a renda de despesas com serviços essenciais não oferecidos gratuitamente pelo Estado que cobra o imposto. Permitirem-se deduções com despesas em serviços ofertados gratuitamente é permitir que por decisão individual o privilegiado evada-se do pagamento de tributos, o que é disfuncional e aberrante.

Isso de a constituição prever saúde e educação públicas universais e gratuitas e ao mesmo tempo permitir que classes privilegiadas deduzam do imposto sobre a renda despesas com esses seviços é típico da hipocrisia fundante da nacionalidade. Faz-se uma bela declaração de intenções e, por vias laterais, faz-se outra norma a manter tudo como sempre esteve e a mesma sistemática de sangria de muitos em benefício de poucos, por meio do Estado.

Como sempre, percebido o esquema subjacente, hipocrisia e contradição são vertiginosos, até para nossos largos padrões brasileiros. E hipocrisia e contradição revelam-se também nas defesas do deformado sistema. Os beneficiários sempre dirão que tem que ser assim porque os serviços públicos são ruins e têm que partir para serviços privados.

Fiquemos com uma parte da objeção, desprezando a das conclusões, evidentemente, para minimizar os riscos de contaminação. Ora, se os serviços públicos são ruins, pode-se buscar sua melhora, ao invés de saquear o Estado para pagar por serviços privados. Pode-se também assumir postura mais sincera e honesta e deixar os serviços ruins para os pobres e pagar os serviços privados do próprio bolso, mas isso seria sonhar com um direitismo só direitista e não desonesto e oportunista, como é nosso comum.

O meio mais eficaz, não apenas de suprimir a contradição gritante, mas de encaminhar os serviços de saúde e aducação públicas para melhora é tornar as classes médias e altas clientes deles, deixando de ajudar esses grupos a pagarem por serviços privados, quando a constituição diz haver os mesmos serviços públicos, gratuitos e universais.

Brasil: promiscuidade público privada essencial.

Os estamentos mais elevados da burocracia estatal brasileira, seja eletiva, seja meramente seletiva, prestam enorme desserviço à implantação de uma república a merecer este nome. E não se trata aqui de falar desse moralismo difuso anti-corrupção, que não sabe mesmo de que fala.

Trata-se de vício essencial a demonstrar, primeiro, que as preocupações com corrupção são contraditórias e, segundo, que a percepção do que é corrupção é corrompida ela mesma.

Corrompida essencialmente é a noção de espaço público e privado, conveniente e inercialmente imbricadas num todo em que as distinções são pontuais e de mera conveniência.

É básico que funcionários públicos, que em teoria não atuam para nada mais que o interesse geral, não podem colocar-se em situações que insinuem conflitos de interesses. Todavia, no Brasil, esta noção básica é atropelada sem quaisquer cerimônias, ao tempo em que o discurso permanece absolutamente contraditório.

É deformante que funcionários públicos tenham e aceitem presentes e privilégios, mas aqui eles os têm e aceitam. Com relação aos presentes, habitualmente os esquecem, como a tentar fazer deles um nada ou uma normalidade silenciosa. Com relação aos privilégios, defendem-nos com o discurso puído de defesa da atuação e não das pessoas.

É antiquíssima a enunciação de que juízes não podem receber presentes. Tão antiga quanto evidente e coerente, posto que resolver conflito entre partes implica não se relacionar com elas. É intuitivo que o relacionamento do juiz com uma parte desloca sua percepção e anula qualquer possibilidade de imparcialidade. Sem imparcialidade, convidam-se os litigantes ao uso da justiça privada, da força.

Pois, no Brasil, acha-se normal que juízes, em grupos associativos, recebam presentes, que atendem pelo eufemismo patrocínio a eventos. Um sindicato ou associação de juízes recebe, assim, de empresas privadas, passagens aéreas, diárias em hotéis de luxo, refeições caras, automóveis para serem sorteados entre os integrantes.

Da mesma maneira, sindicatos e associações de funcionários públicos com algum poder decisório obtém junto a montadoras de automóveis descontos na compra desses produtos, obtidos única e exclusivamente pela circunstância de reunirem certa corporação estatal.

Curiosamente, os beneficiários desses presentes não acham que estejam a ser comprados nem detem-se a pensar na especificidade das benesses, ou porque o sindicato dos coveiros não obtém as mesmas coisas para seus associados.

Isso de não se acharem devedores dos dadores das prendas é realmente preocupante, porque pode ocorrer que realmente os agraciados acreditem-se merecedores daquilo tudo a troco de nada, a revelar imensa ingratidão e defeito de caráter maior que aceitar as prendas. Aceitá-las e dar nada em troca é realmente vil!

Brasil: República que não é, democracia sem povo e estado sem direito.

A história do Brasil teve poucos momentos de poder político efetivamente escolhido democraticamente. O que se chama democracia representativa – abstraindo-se seu caráter meramente formal – vigorou de 1946 a 1964 e, depois, de 1989 até o presente.

Não incluo a república velha porque aquilo não era propriamente democracia, dadas as barreiras a impedirem a capacidade eleitoral ativa. Muito pouca gente votava, eis a questão.

Observa-se, nestes dois períodos democráticos, uma viragem muito interessante dos escolhidos para atenderem a interesses da maioria dos escolhedores. Essas eleições no sentido de se beneficiar número maior de pessoas não significaram necessariamente escolhas à esquerda. Significaram, basicamente, escolhas a rejeitarem duas coisas: o entreguismo e o rentismo.

Nenhum presidente brasileiro nos dezoito anos antes do golpe de 1964 e nestes vinte e quatro depois de 1989 foi de esquerda, no sentido próprio de fazer drástica redução da desigualdade na apropriação das riquezas produzidas. Por outro lado, nenhum, à exceção de Fernando Henrique Cardoso, foi entreguista, nem mesmo Jânio ou Collor, talvez por lhes ter faltado tempo.

Todavia, o pouco que se experimentou de democracia formal nestes dois períodos foi suficiente para revelar sistema profundamente desfuncional. A democracia, por pouco de ameaça que represente aos poderes reais numa sociedade massificada, sempre foi assumida pelo 01% como algo terrível. E, por outro lado, sempre teve significados cambiantes para os estratos médios que vivem das migalhas do 01% e têm tempo para se desinstruir cotidianamente.

Tanto a tenacidade, quanto o êxito obtido por este esforço do 01% são coisas merecedoras de estudo, no caso brasileiro. Claro que parte do êxito de termos democracia deformada advem dela ter sido desenhada com pontos de fuga sob medida para se evitarem seus aperfeiçoamentos e manutenção. O modelo jurídico do estado brasileiro é essencialmente anti-democrático mas com eleições.

Dois fenômenos, cada um capitaneado por certo grupo de interesses, anunciam a erosão que pode levar à ruína do que nasceu para viver pouco. De um lado, dentro do próprio estado, há corporações que não dão contas a ninguém, agem em benefício próprio e dos seus mandatários e detém poder formal e material. São as magistraturas judicial e do ministério público, entidades destituídas de legitimidade democrática que agem em clara exorbitância de seus poderes.

Essas corporações são representantes do conservantismo, papel que desempenham até desinteressadamente em alguns casos, por inércia mesmo, isso que de tão importante é reiteradamente negado. Existe inércia social, assim como existe acaso, imprevisão e impossibilidade de controle.

Além dos componentes destas corporações serem recrutados maioritariamente nas classes médias-altas, eles sentem-se devedores de ninguém, porque ignoram que nascer em certo estrato, numa sociedade profundamente desigual, já é dever a todos os demais, acima e abaixo. É interesaante notar que a dinâmica corporativa estatal é tão forte que um e outro egresso de classes mais baixas rapidamente torna-se mais conservador que o conservadorismo, no que ajudam muito o desejo de disfarçar-se e de mostrar-se mais realista que o rei.

Numa democracia formal, em que poderes legislativo e executivo são eleitos por sufrágio semi-universal e que proclama princípio de igualdade ante a lei, ser conservador é precisamente negar aplicação às leis, conforme caprichos mal explicados e momentâneos: precisamente o que se tem visto fazerem o judicial e o ministério público, no Brasil.

A resistência do 01% e de partes das classes médias volta-se contra o império da lei em sentidos formal e material e contra o princípio de igualdade de todos em face da lei. Obviamente, seus instrumentos para violar os dois princípios são as corporações que lidam com aplicação de leis, que se convertem em fazedores de leis caso a caso. Aparente paradoxo…

Fosse o Brasil sociedade com mais que meros quinhentos anos de história, a violação das regras por quem as deve aplicar assustaria as pessoas. Fôssemos mais honestos e menos hipócritas, defenderíamos ditadura aberta, a rejeitar os disfarces e a farsa dos poderes contidos em limites bem delimitados. Mas, somos o que somos, uma sociedade que percebeu mais que em qualquer outra parte a utilidade da mentira.

Daí que temos textos a dizerem haver poders harmônicos e com atribuições específicas, quando na verdade há sistema com pontos de escape muito bem estabelecidos para violar-se a democracia sob aparência de a exercer.

De outra banda, a erosão da democracia formal advem de manifestações que supostamente a realizam à letra. Grupos que à origem nada têm a ver com política entram no jogo político a tentar moldá-lo aos seus preconceitos morais e religiosos. Subvertem o jogo democrático porque instilam no debate público coisas que somente se relacionam com o privado.

O privado somente interessa ao público no que tange a defender liberdades fundamentais que não devem ser sacrificadas a bem de supostos interesses maiores. A entrada no jogo político de grupos cristãos organizados em torno a regras de cunho religioso subverte a essencia do estado de direito que protege o indivíduo desse tipo de prescrição a que somente se adere por vontade própria.

O estado supostamente defende as liberdades de culto, de ir e vir, de casar-se ou não e com quem se quiser, de trasladar patrimônio, de não pagar tributos para subvencionar cultos religiosos, enfim, um plexo mínimo de coisas com que a maioria pode estar de acordo. Ao entrar em cena a pressão política organizada dos cristão, o jogo sai das regras porque as opções condicionam-se por variáveis que não se podem considerar comuns a todos.

Com relação a liberdades civis, o debate tende a tornar-se o mais estúpido possível e percebe-se a insinuação da similitude do religioso ao científico. Essa similitude existe e evidencia que ambos devem ser rejeitados. Não se cuida de religião nem de ciência quando o estado garante às pessoas que se unam a partir de um contrato que prevê várias coisas, entre elas a divisão e a transmissão de patrimônio: cuida-se da liberdade de unir-se e nisso não importam religião nem ciência.

É claro que o avanço político dos grupos de pressão cristãos no Brasil é questão de poder. As religiosidades de matriz greco-judáicas são todas bem talhadas para o jogo de poder, porque são normativas e esquematizadas na lógica do código e do tribunal. Poucas coisas são mais parecidas que uma religião greco-judáica e um qualquer poder judicial. No mundo inspirado pela tragédia do encontro de semitas e gregos, o direito e a religião são faces de um mesmo plano.

Joaquim Barbosa, os sindicatos dos juízes e a típica esquizofrenia institucional brasileira.

Os donos do poder põem seus cães amestrados para brigarem, esquizofrenicamente, claro, como deve ser no Brasil.

Joaquim Barbosa era deus até há pouco, elevado a essa dignidade pela imprensa, que saboreava o molho grosso do linchamento dos opositores a ela.

Eis que Barbosa começa a escorregar na faixa qualitativa de deidade, para o lado oposto. Breve será considerado das hostes do príncipe do mundo…

A nova e deliciosa briga, que o poder observa sentado a bebericar quem sabe uma Veuve Clicquot – por economia, claro, que as melhores são para espetáculos mais vívidos – envolve o ex-deus e os sindicatos de juízes.

O ex-deus disse coisas disparatadas, em meio a coisas sensatas. Disse, por exemplo, que o poder judicial brasileiro é conservador. É claro que é. Disse, por outro lado, que o pessoal do ministério público é rebelde, o que é sumamente falso. São da mesma compleição intelectual, as duas magistraturas.

O ex-deus vê diferenças onde elas inexistem, porque as duas magistraturas são igualmente conservadoras, auto-referentes e anti-democráticas. Essa gente toda pensa em salário, poder e chantagem, com exceções, é claro. E pensa e busca e obtem vantagens sem ter que pedir um mísero voto.

O ex-deus é profundamente maniqueísta e, pior, intelectualmente rasteiro, ao diferenciar o que se distingue, talvez, por meio ponto. A grandeza dos loucos que nada têm a perder recomendaria o atirar contra todos, mas o ex-deus não na tem, evidentemente. Ele precisa distinguir entre bons e maus.

Os sindicatos dos juízes atacam o ex-deus, coisa que não faziam até há pouco. O revide é tão tolo quanto o ataque: contraponto ligadíssimo ao ponto inicial e dele dependente. Esquizofrenia pura…

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