Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O Brasil precisa de armar-se.

À direita e à esquerda – que não sou desses novos direitistas que negam a dicotomia – receia-se postular que o país se arme adequadamente para autodefesa. O receio, por razões diferentes, é bastante indicativo de outra dicotomia fundamental: entre nacionalistas e entreguistas.

Os grupos que se opõem ao armamento adequado do país fazem-no basicamente por medo de forças armadas detentoras de bons equipamentos, por medo de forças armadas capazes de garantir a soberania e por crer que há outras prioridades no gasto público. Percebe-se que o terceiro argumento é quase neutro, porque pode ser adjacente aos dois primeiros.

As forças armadas têm histórico de ajuda a golpes de estado, no Brasil, sempre em auxílio dos grupos que não logram êxito na obtenção do governo por meios eleitorais. Todavia, essas forças que ajudam golpes ou os realizam não precisam necessariamente estar bem equipadas, porque nunca chegamos ao limite duma guerra civil. Elas patrocinam golpes de Estado mesmo sendo mal equipadas e mal treinadas.

Por outro lado, historicamente, a divisão entre nacionalistas e entreguistas é bem marcada nas forças armadas e sempre houve, ainda, os legalistas, ou seja, grupo que não adere a iniciativas golpistas. Assim, a balança é desequilibrada por ação de forças outras e externas às forças armadas, independentemente de quão equipadas sejam.

É óbvio que, cedo ou tarde, se não conseguirem aceder às riquezas minerais e ao mercado brasileiros sem limites, os EUA aumentarão a intensidade das tentativas de desestabilização de governos que se preocupam mais com interesses locais que com transferir riquezas para fora e ficar com as comissões. De início, são pressões disfarçadas com argumentos que soam bem aos ouvidos de parte das classes mais altas.

Em momento posterior, das pressões passam à intimidação e à busca de pretexto para invocar suspensões ou perdas de soberania localizadas e pontuais. O discurso ecológico serve bem a esta segunda volta do parafuso e dizem que o país é incapaz de garantir patrimônios naturais que se convertem, discursivamente, em patrimônios mundiais que devem ser protegidos por fiscais externos.

Não há recuo nisso exceto se o país vítima for capaz de defender-se. Realmente, se a vítima potencial tiver real capacidade de defesa, até essas etapas iniciais tendem a morrer logo após o nascimento, porque neste campo há pouco discurso inútil.

É claro que o Brasil foi imensamente estúpido ao abrir mão de fazer sua bomba atômica e que, agora, é um pouco tarde, mesmo que nunca seja tarde de todo. Retomar a construção da bomba é essencial e, contra os raciocínios baseados no senso comum, é muito mais barato que pode parecer. A bomba é caríssima para economias pequenas que não se beneficiam da enorme cadeia de produção tecnológica e industrial, mas é relativamente barata para economia do tamanho da brasileira, considerando-se todos os efeitos econômicos e estratégicos que decorrem.

De qualquer forma, mesmo que continuemos nesta tolice de renunciar à bomba, devemos ter uma defesa adequada e isso implica, basicamente, sistemas anti-mísseis, anti-navios e anti-aéreos. Não precisamos de largos investimentos em infantaria, nem em cavalaria mecanizada. Tampouco precisamos de uma marinha opulenta ou com inúteis porta-aviões.

Baterias de mísseis anti-navios e anti-aéreos devem ser instaladas ao longo da costa brasileira e na amazônia. Da mesma forma, bases aéreas com poucos caças como Sukhoi 35 ou Dassault Rafale equipados com armamentos contra embarcações e contra alvos aéreos são o suficiente. O que precisamos de infantaria e de cavalaria mecanizada deve ficar nas fronteiras orientais ao norte.

É completamente anacrônica a estratégia de defesa que reputa prioritárias as fronteiras sul, com Argentina e Uruguai. É mais que anacrônica, é mesquinha, a manutenção de enormes contingentes militares burocráticos no Rio de Janeiro. Esses dois exemplos de prioridades e falsas prioridades revelam que as forças armadas sucumbiram à lógica do oportunismo de funcionalismo público e nada mais.

Porque a classe dominante aceita pagar um sistema judicial caríssimo.

O custo do sistema judicial brasileiro – incluindo-se todas as adjacências a ele – é altíssimo e nitidamente desproporcional à sua utilidade, à complexidade de suas tarefas e ao nível dos seus funcionários.

Este último aspecto chega a ser assustador, porque à capciosidade bizantina das provas de admissão corresponde profunda ignorância de qualquer outra coisa que não sejam prazos e teoremas jurídicos da moda mais recente. São técnicos estreitos, desconhecedores de teoria do Estado, de História e de qualquer outra coisa que não seja técnica e modismos elevados a novidades.

Qualquer um que se detenha a pensar e, dispondo de alguns dados de outros países, disponha-se a algumas comparações percebe que a litigiosidade no Brasil é desviante e abrange em larga margem causas contra o Estado e contra prestadores de serviços públicos concedidos. A lide contra o Estado, em si, já é algo dificílimo de sustentar-se com algum rigor conceitual, porque é necessário muito privatismo jurídico para assumir o Estado como parte em juízo, a ser julgado por órgão dele mesmo. Claro que o direito é o mundo das ficções, mas algumas vão demasiado longe.

Tudo isso, custo elevado, profusão de funcionários, excesso de lides, não é assim porque tem que ser, inexoravelmente, ou porque vivemos no melhor dos mundos de amplo e irrestrito acesso ao judicial. Isso existe porque se insere na lógica da apropriação privada do Estado, seja pela colocação de vários funcionários bem pagos, seja pela indústria de honorários pagos pelo Estado a bancas privadas, seja pela necessidade de um bastião defensor da classe dominante, em penúltima instância, ou seja, antes das baionetas.

Uma das tolices que vicejaram passava por objetar à conformação do sistema uma suposta falta de trabalho. Isso é absolutamente falso e é mirar no ponto errado. Há bastante trabalho porque há realmente muitíssimas causas. A questão é que essas causas existem para justificar o sistema e não o inverso. Esse número aberrante de causas é algo que se consente que haja, enfim.

Sempre pensei qual seria o porquê da classe dominante permitir a escalada insensata dos custos do sistema judicial brasileiro, quando é óbvio que, se não pretendesse, não teria havido esta aceleração vertiginosa. A princípio não faz qualquer sentido consentir este aumento disfuncional, quando se poderiam apropriar deste dinheiro de outras maneiras mais rentáveis, como por exemplo obras e isenções fiscais.

Mas, de algum tempo para cá, dei-me conta de algo sagazmente percebido pela classe dominante a levar-lhe à complacência com a hipertrofia do sistema judicial. Ela, a classe dominante, adquiriu com recursos públicos um sentimento de identidade social deslocado para cima dos pontos originais dos funcionários isoladamente.

Com raras exceções, o ingresso nas corporações judiciais – públicas ou privadas – implica mobilidade social ascendente e, consequentemente, o ingresso noutro patamar de identificação social. Isto modifica nitidamente as inclinações gerais do sistema ao produzir alguma decisão, mesmo que haja um e outro que se glorie, ou de ser aleatório, ou de ser quixotesco.

As remunerações muito altas não compram os funcionários em bloco para algo que se lhes peça claramente. Compram-lhes para solidariedade e identidade de classe em níveis superiores à média. O que é muito mais eficaz, porque muito mais sutil e menos percebido pelo neo-cooptado.

Em termos práticos, podemos perceber mais nitidamente o funcionamento da coisa na área criminal. Suponha-se que um jovem marginal de classe alta, com histórico de condutas violentas ao estilo pitt bull tão celebrado atualmente, invista contra outra pessoal que não seja de sua classe e o inflija ferimentos graves por meio de uma barra de ferro.

Essa barbaridade – evidente na provável futilidade da motivação e na desproporção dos meios – implicará a concepção de toda uma rede de pressões e invocações de cumplicidades em torno do agressor. Por proximidade de classe, fatalmente haverá algum funcionário do judicial próximo do agressor, ou de seus parentes, ou de seus amigos, que consciente ou não fará eco ao discurso da complacência.

Rápido a rede de cumplicidade social por identificação de classe evoluirá para o destaque dos aspectos familiares e íntimos do marginal. Dir-se-á que é bom filho, muito amável e carinhoso, que chorava ao receber presentes no aniversário, que rezou muito compungido na primeira comunhão e muitas outras coisas de caráter subjetivo e familiar, que nada têm com o que se chama análise jurídica de um caso.

Breve, não haverá crime, mas um deslize eventual, imprevisto e plenamente desculpável de uma criança amorosa que foi exemplar filho dentro de casa. Isso, claro, se a vítima for de classe social inferior e não dispuser dos meios de fazer girar a máquina da cumplicidade e identidade sociais.

De forma um tanto foucaultiana, da mesma maneira que o criminoso construído e enfatizado afasta o julgamento do crime, o sujeito desfeito de uma suposta personalidade criminosa afasta o crime e ninguém pensa mais em termos objetivos, apenas num histórico muitas vezes forjado para lembrar ao sistema que se trata de um deles, afinal.

Quando nada disso funciona, por fim, recorre-se à chantagem pura e simples, outra coisa fácil de fazer numa corporação que se deve favores reciprocamente e que cala das infrações e oportunismos dos outros para contar com o silêncio deles quanto a si, quando chegar sua vez. Assim caminha o judicial brasileiro e não parece haver quem esteja interessado em cambiar esta perversão.

A direita alfabetizada rejeita a teoria jiu-jitsu do direito.

A ação penal 470, que atende pelo nome vulgar mensalão, pôs em cena violações a princípios jurídicos básicos: liquidou a presunção de inocência, liquidou a necessidade de lei penal anterior, liquidou o duplo grau de jurisdição e liquidou o princípio do juiz natural.

Estas violações abertas foram praticadas pelo tribunal mais elevado do país, o que revela a que ponto se queria e quer promover o expurgo político de alguns, mesmo que isso implique o expurgo de todo o direito e da suposta respeitabilidade intelectual dos juízes do tribunal.

Isso foi possível porque a imprensa televisiva, três grandes jornais diários e uma revista semanal incitaram a condenação sem provas por meio de bombardeio incessante que levou parte do público a esquecer-se de que todos são inocentes até provas em contrário.

Essa parte do público convencida da culpabilidade sem provas divide-se em partes menores. Uma delas constitui o terreno fértil para semeadura de qualquer proposta de juízo de exceção de quantos tenham trabalhado por uma melhor distribuição de rendas e por menos subserviência a interesses externos.

Outra parte dos que se convenceram da culpabilidade sem provas compõe-se das pessoas que precisam ser constantemente estimuladas pela imprensa, em clima de emergência e de escândalo. Esses arrefecem os ânimos linchadores se os estímulos cessarem.

Ocorreu, todavia, algo auspicioso, recentemente. O tribunal que encena o juízo de exceção reduziu um pouco a coleção de aberrações jurídicas que havia perpetrado e afastou uma delas: a supressão do duplo grau de jurisdição. Isto deu-se por meio de uma obviedade, que foi a aceitação de um recurso a dar aos condenados o direito à revisão do julgamento, algo a que todos têm direito.

Foi o que bastou para o pessoal do linchamento indignar-se, embora a reação fosse ela própria uma aberração, na medida em que o duplo grau é garantia constitucional que nunca se pôs em questão e fora suprimida pela primeira vez no país, sob os aplausos enfáticos de uma imprensa pueril, analfabeta e partidária.

À reação furiosa contra o puro e simples respeito a princípio jurídico antiquíssimo sobreveio algo surpreendente: dois juristas respeitados, ideologicamente de direita, insuspeitos de amizade com os réus do processo, proclamaram que houvera nada mais que condenação criminal sem provas, o que é inadmissível.

O que muitos diziam desde o princípio foi dito por pessoas alinhadas ideologicamente aos que promoveram e festejaram o expurgo político disfarçado em processo jurídico. Evidentemente que chama atenção não terem denunciado a farsa e as violações evidentes ao direito antes.

Esses dois juristas deram sinal importantíssimo de que ainda há direitistas bem educados, que receiam a subversão total do Estado de Direito e a celebração festiva e acrítica de julgamentos de exceção violadores de garantias obviamente abrigadas na constituição federal.

Que haja quem perceba a hora de cessar a espiral do linchamento é fundamental para que não seja inevitável desaguar-se no golpe e no rompimento total, ou seja, para afastar-se a lógica do tudo ou nada, tão cara aos irresponsáveis da imprensa que incensam a histeria nas camadas médias já propícias à superficialidade, à bipolaridade e à esquizofrenia.

Os mencionados direitistas alfabetizados perceberam que usar os tribunais assim de maneira a violar tão abertamente as garantias básicas, com o propósito de expurgo político seletivo, é demasiado arriscado. Realmente, esse tipo de conduta assemelha-se às guerras, que se sabe como começam, mas não como terminam.

É muito menos arriscado manter as regras jurídicas em sua aparência de isonomia e não levar os tribunais a operadores de expurgos políticos, que violar abertamente as normas mais básicas a bem de um clamor de moralismo histérico produzido sistematicamente por parte da imprensa.

Perseguição de José Dirceu pode ter mais aparência jurídica se embargos forem admitidos.

A ação penal 470 é um embuste montado para afastar José Dirceu da política brasileira, porque ele é um traidor de classe que não se deixou cooptar pelo 01%. Os demais processados com ele estão lá apenas para que não haja um só réu e para as conveniências do enredo farsesco. Neste julgamento de fancaria, stf e ministério público agiram sob ordens da imprensa majoritária ou, no mínimo, com medo dela.

A coleção de aberrações jurídicas presentes nesta ação é enorme. Garantias do juiz natural e do duplo grau de jurisdição tiveram suas violações abertamente defendidas, como se fosse o mais normal, até por gente que diz ter frequentado a escola básica e saber ler. Inversão do ônus probatório em matéria criminal foi defendida pelo acusador e por juízes.

Deformações nas adequações típicas, como, por exemplo, suprimir a realidade e reputar ocorrido o crime de peculato de dinheiro privado. Manipulações de datas, feitas abertamente, como a que reputou ocorrido um crime de corrupção após a morte do suposto corrompido! A farsa do período anterior ocorreu para violar o princípio da irretroatividade da lei penal, porque as penas foram aumentadas por lei posterior ao falecimento do corrompido e queriam a todo custo punir os supostos corruptores com penas mais graves, mesmo que estabelecidas após o fato.

Houve momentos extraordinários em que juízes chegaram a dizer que não havia provas, mas que condenavam porque podiam fazê-lo. Tudo isso causou espanto nos mais bem instruídos e menos imbuídos do desejo linchador porque se esqueceram que juízes – independentemente do tribunal que componham – são gente vulgar, mesquinha e manipulada, como são as pessoas em geral.

Realmente, essa tolice de crer que juízes são sensatos e imparciais é tão difundida quanto infundada. Eles são profundamente sujeitos às pressões quando o caso desperta interesses políticos e mediáticos relevantes e deixam-se aprisionar pelos afagos às vaidades e pelo medo de serem atacados pela moralidade seletiva da imprensa. Nos casos pequenos, suas grandes influências são os caprichos momentâneos e o ir ou não com a cara das pessoas litigantes. A lei é algo que fica muito longe das principais motivações para decidir.

Neste caso, a imprensa resolveu antecipadamente que José Dirceu devia ser condenado, que devia ser considerado responsável pelo maior esquema de desvio de dinheiros públicos do Brasil – embora o processo fale de dinheiro privado – que devia ser linchado em praça pública sem que qualquer outra consideração fosse feita exceto nos termos da comédia novelesca que foi encenada.

E isso deu certo, a despeito da fragilidade e da vulgaridade do enredo da novela oferecida ao público. Deu certo no sentido de instilar nas pessoas da classe média em diante o espírito de linchamento alimentado por moralismo difuso e totalmente cego às violações de direitos e às supressões de fatos. Assim é porque o vulgo basicamente não pensa e facilmente defende qualquer violação de direito e ocultação de fato, desde que a imprensa diga-lhe para proceder desta maneira.

Mas, a farsa é tão grotesta que escandalizou a um e outro razoavelmente alfabetizado e desinteressado em ver sangue e entranhas expostos – são raras as pessoas localizadas neste grupo – e envergonhou timidamente um e outro integrante da corporação jurídica.

Eis que o tribunal que serve de cenário para esta novela decide se os réus de acusações etéreas poderão ter o duplo grau de jurisdição. Ou seja, decidem se uma garantia constitucional óbvia será mantida ou estuprada à luz do dia com caras sorridentes a posarem para câmaras de TVs. Está a depender do voto do juiz mais antigo do cenário, que já disse repetidas vezes que o duplo grau deve ser assegurado.

Se o recurso é admitido, uma de muitas aberrações é afastada. Conviria que as demais também fossem, para que não ficasse a parecer o estado normal de coisas a justiça servir aos desígnios de eliminação política da imprensa. Conviria que a corporação judiciária percebesse que a desonra só pode ser considerada momentânea sob a perspectiva meramente pessoal, o que destoa até mesmo do núcleo do pensamento corporativo, que anseia à conservação de privilégios.

Essa farsa, basicamente, foi o deslocamento do jogo político de seu âmbito próprio para os tapetes dos tribunais, onde se decide sem votos populares e com pessoas extraídas do que há de mais conservador. E, o que há de mais conservador no Brasil é pior que os semelhantes alhures, porque é certo dizer que o pior do Brasil são os brasileiros de classe média em diante. Não há gente mais predadora, vendida, oportunista, mentirosa, rancorosa, mal instruída, sem honra mas com moralidade e superficial.

O protótipo do comportamento dos conservadores é o menino que tem a bola de futebol, chama os outros para jogar e pelas tantas quer proibir os dribles porque não os sabe dar; depois muda as regras e por fim encerra o jogo e guarda a bola.

A encenação do processo contra Dirceu é demonstração de poder extravagante porque significa dizer claramente que a imprensa pode fazer a partir de nada ou quase nada um escândalo mobilizador das camadas médias e despertar nelas os instintos assassinos que guarda cuidadosamente nos armários. É um recado claro para os que insinuem alguma reação efetiva aos interesses dela imprensa e também aviso aos que a ela se alinharem que podem fazer o que bem quiserem.

A resposta ou reação possível dá-se em campos muito estreitos. Primeiro, convém que as pessoas alfabetizadas e não inclinadas ao linchamento sempre digam da farsa que se encena, mesmo que isso resulte imediatamente em nada. Segundo, é preciso elevar o nível da crítica técnica às violações perpetradas na encenação. Ou seja, já que escolheram o cenário jurídico para expurgar José Dirceu, que ao menos tenham algum trabalho discursivo e algum receio por suas contradições explícitas.

Antigos senhores de escravos vivem saudosos.

É longa a recuperação das sociedades que conhecem pessoas com estatuto de coisa, objetos de direitos e não sujeitos deles. Esta situação, a do escravismo legalizado, somente é superada por dois meios: a luta – o que implica escravos relativamente bem instruídos – e a inviabilidade econômica de manutenção da escravidão legal.

No Brasil, que foi aquinhoado por Deus e por seus espíritos mais próximos, caídos ou não, com uma classe dominante especialmente genial, o escravismo legal foi abolido porque não fazia mais sentido econômico e porque prejudicava as exportações de colônias inglesas que não tinham mais este tipo de mão-de-obra.

Ele deixou de ter estatuto legal, mas permaneceu longamente após a aquisição pelos ex-escravos do estatuto de sujeitos de direitos. Os câmbios sociais são muito mais lentos que alguma mudança jurídica abrupta possa fazer crer, o que revela o caráter teatral do jurídico quando se o compara com o social e econômicamente dinâmico.

Um grupo humano ter, em qualquer lugar, nos seus tempos iniciais, a divisão das pessoas entre coisas e donos de coisas é nada mais que evolução da anterior prática de matar os vencidos. Escandaliza os ignorantes e os preguiçosos de pensar a evidência de que a escravização é um passo evolutivo relativamente à simples eliminação de todos os vencidos.

Todavia, outro passo evolutivo é dado quando se reúnem as condições para explorar os vencidos de maneiras mais sutis que simplesmente os reduzir a coisas, objetos de compra e venda. O passo seguinte mantém estratificação social, com classes de cidadãos, embora suprima as distinções legais, exceto por um e outro grupo que mantém privilégios legais explícitos.

No Brasil, o escravismo de pretos era legal até há pouco, precisamente há cento e vinte e poucos anos. A escravidão persistiu muito forte até hoje, o que fica evidente para quem vir a divisão na apropriação de rendas, os índices de mortalidade por crimes, os índices de encarceramento por faixa de renda e por etnia. Enfim, todos os indicadores que se usem apontam para um fosso entre dois grupos.

É óbvio que as coisas estão muito menos ruins hoje, porque ao menos se tem a igualdade jurídica formal, aquela maneira de praticar a injustiça com mais aleatoriedade, o que dá às massas a sensação de que a igualdade material está próxima ou que nem mesmo é algo desejável. Hoje, em poucas palavras, os escravos têm TVs, aparelhos telefônicos móveis, leem tão precariamente quanto a classe média e recebem vez e outra o que os senhores lhes deixaram de pagar.

O aspecto mais destacado da herança escravista no Brasil é o emprego doméstico. Uma pesquisa recente, não me lembro de qual instituição, constatou que não há outro país com mais empregados domésticos que neste paraíso tropical dos 10%. É impressionante, principalmente porque não somos o país mais populoso do mundo e estamos muitíssimo atrás da China, da Índia, dos EUA, da Indonésia e provavelmente do Paquistão.

Uma quinta posição relativa a par com uma primeira absoluta – e considerando-se a imensa diferença para os mais populosos – é realmente uma vitória indiscutível nesta modalidade. É extraordinário em termos quantitativos e em termos qualitativos e revela que ficamos com o escravismo em realidade muito mais que com traços arqueológicos que se possam encontrar.

O emprego doméstico até há pouco não tinha jornada limitada em lei, não tinha fundo de garantia contra despedidas arbitrárias, coisas que todos os demais empregos têm há mais de cinquenta anos. A distinção, para quem se disponha a pensar – só a pensar, esquecendo-se de seus interesses de classe e pessoais – era simplesmente absurda, por destituída de qualquer razão.

Mas, vale a pena observar a distinção entre o tratamento legal de um trabalho e dos demais e a recente supressão dela. Ela, a supressão da escravidão formal e da violação ao princípio da igualdade, gerou reações que beiram a loucura. Além dessas reações, permite ver o quão longeva era uma diferenciação baseada em nada e que sempre pareceu a coisa mais comum e aceitável do mundo.

Tornou-se hábito repetir o lugar-comum tolo de que o texto produzido pelo congresso nacional em 1988 é a constituição cidadã. Ora, essa magnífica obra dos jurisconsultos brasileiros oriundos da oposição permitida ao regime ditatorial de 1964 a 1985 continuou a distinguir todos os trabalhos do trabalho doméstico.

Agora, o trabalho doméstico assemelha-se juridicamente, formalmente, aos demais e isso causa escândalo às classes médias e altas. Esse escândalo revela algo feio de ver-se, que é a estupidez. A burrice é mais feia que a má-fé, em qualquer perspectiva que tome em conta a estética e a história. A burrice é muito mais nociva que a má-fé pura.

Os médio classistas brasileiros, useiros contumazes do trabalho doméstico semi-escravo, insurgem-se contra a igualdade de direitos dos trabalhadores domésticos apenas com a sua raiva de quem perdeu algo e quer que esta perda tenha alcance de argumento. Assim, neste ambiente, tornou-se comum dizer-se que bons eram os tempos antigos, que as pessoas antigamente sabiam dos seus lugares, que se faz um favor oferecendo um trabalho doméstico a alguém e outras tolices do gênero. Claro, neste ambiente povoado por estupidez, há o argumento do mérito…

Para comparação, posso dizer que bons eram os tempos em que o Estado pagava 40% de juros ao ano, sem riscos quaisquer, sem ameaças inflacionárias, a troco de nada mais que ter o que emprestar ao Estado, por intermédio de algum banco. Era bom para mim, se tivesse o que emprestar, mas era absurdo para todos os mais que 90% que nada emprestam ao Estado.

Se eu ou a personagem que se enquadre neste papel for além de cuidadoso consigo um pouco menos estúpido, saberá que o assalto revertido não será uma violação de lei divina e estável, apenas a recomposição de forças e algo que me contraria. O que é ruim para alguém decorre de alguma vitória de quem estava perdendo, apenas.

Ter que pagar um pouco mais caro por escravos domésticos não é algo a violar os estados naturais, até porque o humano, pessoal e coletivamente, nada tem de natural: É algo violador dos interesses pessoais e de grupo e não significa violação de algum balanço natural de forças e de classes e de trabalhos.

Para as classes médias moralistas brasileiras, isso agrediu até um de seus patrimônios mais valorosos: a idéia de estar a fazer favores. Quando algo torna-se direito escrito, reduz-se um pouco o campo do discurso da concessão graciosa do que sempre se deveu. Eis aí algo mais importante que o preço em si: suprimiu-se de certa classe média piedosa a sempre conveniente oportunidade de dizer-se caridosa porque dá aquilo que a lei não exige.

Revista Veja nos estertores finais?

Tenho a impressão de que o pior da imprensa brasileira, que são a Globo e a Veja, experimentam mais uma volta no já apertado parafuso do baixo nível, do partidarismo aberto e da desinformação mal-disfarçada. Chegaram a tal ponto de maniqueísmo rasteiro e de destinação evidente a semi-alfabetizados e nazistas de nascimento que a coisa parece um pedido de socorro.

No caso da Globo, tenho para mim, com poucas dúvidas, hoje, que é sim um pedido de socorro e de acordo com o governo federal. A Globo deve muito a credores privados nos EUA – algo à volta de 2 bilhões de dólares norte-americanos – e deve muito ao Estado brasileiro, por conta de sonegações oceânicas de tributos federais, dívida que corrigida e acrescida de juros chega próximo a 800 milhões de reais.

Não é pouco dinheiro nem para uma grande corporação detentora de alto poder de desinformação e chantagem. Por isso, calculou cuidadosamente os movimentos de ataques infundados e violentíssimos ao governo e seus integrantes, sempre por um nada ou quase nada, na medida cronológica certa para interditar a presidente para as próximas eleições, dando o golpe, ou fragilizá-la a ponto de não precisar do golpe mediático judiciário e ganhar o pleito com qualquer um dos postulantes à direita.

Talvez a campanha moralista dos amorais natos tenha iniciado-se muito cedo, notadamente para empresa que se serviu de expedientes demasiado iníquos até para padrões da imprensa brasileira. Parecia que o governo seria mais covarde que o habitual, mas houve alguma reação à campanha sistemática de agressões quase sempre fundadas em puras inverdades.

Vieram à tona os casos das enormes dívidas de subsidiárias da Globo nos EUA onde, inclusive, a coisa foi parar nos tribunais e soube que girava em torno aos expressivos 2 bilhões de dólares. Soube-se, também, que a empresa fora autuada pela Receita Federal por vários ilícitos contra a legislação tributária brasileira, notadamente manobras para escamotear a ocorrência de fatos geradores de tributos.

O processo no fisco brasileiro montaria, em valores atuais, a cerca de 800 milhões de reais de multa. Este caso teve o agravante de envolver episódios dignos de novela, como foi por exemplo o caso da funcionária do fisco que roubou os autos e teria desaparecido o processo.

Particularmente, apesar das discretas mas desesperadas propostas implícitas de acordo, não creio que fosse inteligente o governo anuir porque acordo com a máfia só faz quem é mafioso e se dispõe a assim agir do começo até ao fim. Aconteceria o previsível: o governo deixaria de ser maltratado por qualquer coisa por três ou quatro meses e mais tarde voltaria a tomar pau no lombo em editoriais e matérias supostamente jornalísticas diariamente, ainda a tempo de jogar-se o resultado do pleito de 2014.

O caso da revista Veja é mais interessante, porque algo vertido em linguagem escrita apresenta por contraste e pela expectativa gerada contornos mais nítidos da baixeza de visão e superficialidade de abordagens. A Veja não pode ir além no maniqueísmo, na superficialidade, na manipulação, na negação da realidade, na distorção dela, na mentira pura e simples, porque ela chegou aos limites viáveis.

Mais além do que já foi, somente se se dispuser a estimular o assassinato de pretos, pobres e petistas somente por o serem, sem mais quaisquer arremedos de desculpas ou sofismas de botequim.

Uma revista destas semanais pseudo-informativas vive, entre outras coisas, do mito da imparcialidade, algo que lhes confere autoridade junto a seu público. Sua prática, além de violar evidentemente a imparcialidade, coisa que não existe nem é necessária na imprensa, consiste em levar o público ao desconhecimento. Assim, muito mais importante que noticiar e moldar respostas do público é deixá-lo na escuridão quanto a tal ou qual assunto, seletivamente.

Não era à toa que o falecido barão da Globo dizia, com muita sagacidade, que o importante não era o que o jornal da noite dava, mas precisamente o que não dava, porque assim era inexistência. Não é preciso ser tão sagaz quanto o barão global para saber que esta lógica diabólica funciona muito bem, mas pressupõe o monopólio da comunicação de massas.

A revista Veja não tem o monopólio das comunicações escritas, mas certamente atinge e seduz metade da classe média brasileira, o que se percebe a toda evidência quando se chega ao trabalho na segunda-feira. Qualquer ambiente de trabalho e principalmente alguma repartição pública terá dois ou três versões faladas do que continha a versão mal-escrita do final de semana passado. Essa gente chega ao trabalho ávida por reproduzir as propostas de linchamento que leu no seu veículo instrutor, bem como as jóias de ciência de astrólogos que a revista veicula.

Ora, a aposta na burrice é das mais seguras que existem, porque ela é superabundante. Acontece que nem todo o público cativo de alguma publicação deste nível integra uma malta criminosa organizada, ou seja, nem todos são empregados diretos e beneficiários do pessoal para quem trabalham as Vejas. Daí que essa gente que é apenas moralista histérica, semi-alfabetizada e demofóbica pode sentir-se traída em certas ocasiões.

Se se retirarem os associados e beneficiários diretos e indiretos da atividade mafiosa da revista e de seus patrões e os visceralmente conservadores – mesmo quando seu conservadorismo é contra si mesmo – restam as pessoas de boa-fé que se assustam e se escandalizam com a imoralidade da semana. Se a revista omite algum escândalo de roubo de dinheiros públicos, como no caso dos trens de São Paulo, ela pode estar sucumbindo à burrice que contra encontrar nos seus leitores.

A parcela do público médio que, mesmo com raciocínio binário, conservador e moralista, vir na capa de outra revista que um esqueminha desviou 500 milhões de reais do Governo de São Paulo, ao longo de vinte anos, e que foi comprovado por depoimentos dos que pagaram o suborno, ao ver na capa de sua Veja a milésima reportagem sobre exercícios físicos, boa forma, emagrecimento e que tais pode sentir-se um tanto traída.

Pois a Veja ignorou solenemente o que nem mesmo a Globo, o Estadão e a Folha de São Paulo tiveram coragem de fazê-lo. Esses outros meios deram a notícia banhada em eufemismos, mas a Veja suprimiu, pura e simplesmente.

A Globo, a Folha e o Estadão são demofóbicos e entreguistas e trabalham a bem da demofobia e do entreguismo, mas parecem não ler ligações umbilicais com certo partido político – ou a disfarçam razoável e esporadicamente – e têm algum instinto de sobrevivência. Dá-se algo notável com a Veja, que é sim e claramente um panfleto de um partido, sem mais disfarces.

Seu jogo é arriscadíssimo, porque o governo não a procurará e porque parte dos que a leem sentir-se-á traída pela gritante seletividade que omite algo impossível de ser ignorado, como é o caso oceânico de roubalheira nas compras de trens à Alstom e Siemens pelos sucessivos governos tucanos em São Paulo. Há conservadores que não integram bandas criminosas: são apenas conservadores e demofóbicos, mas emprestam sinceridade ao seu moralismo pós-udenista. Estes podem sentir-se feitos de tolos.

O assalto corporativo-burocrático ao Estado e as perspectivas com uma viragem à direita.

No Brasil, desde que ele existe, o Estado sempre foi instrumento do grande capital e das camadas médias. Prestou-se à drenagem das riquezas da maioria, para transferi-las à minoria, ou seja, foi apropriado como instrumento de concentração de propriedade e de rendimentos.

Para o grande capital, o Estado é quase um prolongamento de empresas que negam frontalmente idealismos pueris como a livre iniciativa, a livre concorrência, o predomínio dos mais aptos, o perecimento dos piores e, suma incoerência, o Estado eliminou o risco das iniciativas do grande capital. É bom esclarecer que a expressão grande capital é aqui usada no sentido próprio e sem as ambiguidades que no Brasil chegaram a ter expressões inequívocas como exclusiva ou máximo.

O grande capital nunca perde realmente. No máximo, reduz-se um pouco a velocidade de sua acumulação e isso basta para que se ponha em marcha a convocação dos explorados por ele para trabalharem a favor dele. Recentemente, ele convocou as classes médias, que vivem das migalhas a caírem de sua mesa, a comandarem uma viragem à direta, ou seja, a pedirem a volta da concentração, mesmo que isso seja ruim para as próprias classes médias.

As classes médias perceberam que lhes convém estruturarem-se em corporações e defenderem interesses de grupos como se fossem coletivos. Assim, elas tomaram conta, por exemplo e principalmente, da burocracia estatal, que existe em função de si mesma e não da prestação dos serviços que teoricamente deve oferecer. Isso explica porque os serviços públicos são ruins.

Os serviços que tiverem opções privadas a que os burocratas possam recorrer serão invariavelmente ruins, porque a burocracia existe para que haja burocratas. Parece excesso de auto-referência, mas olhando-se com calma percebe-se que nada será excessivamente predador e auto-referente para esse grupo.

A lógica disso deve muito ao modelo ateniense, sempre lembrado e sempre incensado sem que se diga como e porque funcionava. Atenas foi, em certo momento, democracia modelar, quase perfeita, porque funcionava para 10% da população. Esta democracia formal precisa de elevada percentagem de excluídos, seja por escravidão, seja por gênero, seja por patrimônio.

A nossa democracia, para os interesses do grande capital e das classes médias, precisa exatamente do mesmo que Atenas: tem que implicar na participação efetiva no processo decisório de no máximo 15% da população. Além disso, ou o processo sai do controle dos dominadores ou a coisa toda marcha para tornar-se outra. Então, em dados momentos, é preciso que tudo aparentemente mude, para que se mantenha igual. Mas, isso vale como regra para o 01% e não se estende necessariamente para as corporações pequeno-burguesas que vivem das maiores migalhas.

A maior cegueira das corporações pequeno-burguesas é não perceberem a fragilidade ou mesmo inexistência do vínculo de solidariedade com o grande capital. Esquecem-se que com escravos mais frágeis são precisos menos feitores numa fazenda.

Com mais uma volta no parafuso da concentração de riquezas, será menos necessária a manutenção de corporações a predarem o Estado, porque os escravos estarão mais frágeis e será menos necessária uma classe intermédia a amortecer tensões e fazer o trabalho sujo. Mas, é próprio das corporações pequeno-burguesas, notadamente das que vivem direta e adjacentemente ao Estado exagerarem sua importância e passarem a acreditar que seus papéis formais são materiais.

Não é para que se distribua justiça, nem para que haja acesso amplo à saúde que o grande capital consente que haja milhões de pequenos-burgueses a ganharem muito por trabalhos que rendem pouco ao todo. Nem é para que julguem contra o grande capital, nem para que prestem saúde pública com o dinheiro apurado com os impostos cobrados ao grande capital. É para que exista e defenda os patrões, só isso.

Seria sábio, se sabedoria houvesse, que o médio classista típico percebesse que não há, nas duas pontas do espectro, nenhum sentido no Estado pagar, com dinheiro saqueado aos mais pobres, salários de 10.000 euros a médicos, juízes, promotores, advogados, fiscais e outros burocratas mais. Isso, para o grande capital, é um estorvo, porque ele próprio poderia ficar com esse dinheiro, e para a maioria um desconhecimento, porque afinal não sabe quanto custa a pequena-burguesia nem sabe precisamente que ela vive às custas dele povo.

Seria sábio levar mais a sério as bobagens que são as normas criadas pela própria burocracia estatal, inspiradas no seu moralismo, que nada mais é que a face visível da sua hipocrisia e do seu instinto de permanência. Se se portasse ao menos conforme aos disfarces postos por ela própria, talvez mais êxito tivesse na sua manutenção, mas, ao contrário, trabalha para facilitar sua própria degradação, quando isso convier aos patrões.

No Brasil, o moralismo de ocasião levou a que se fizessem leis que definiriam limites aos saques ao tesouro estatal. Se estas regras fossem respeitadas, isso não evitaria o aniquilamento da pequena-burguesia estatal, mas lhe daria alguma chance de resistência, quando o grande capital resolvesse que a festa já ia longe. Todavia, foram feitas e violadas desde o nascimento, num espetáculo de falta de honra digno de nota até onde escasseiam traços de honradez.

Inventou-se um limite remuneratório para os que recebem do Estado e esse limite foi continuamente violado desde a criação, sob os mais pueris argumentos formais. Inventou-se a deidade e a concepção imaculada do poder judicial e da magistratura do ministério público, que zelariam pelas declarações de boas-intenções que se encontram na constituição e nas leis. E eles fizeram pouco mais que custar obscenamente ao tesouro, sem dar contas de seus gastos.

Inventou-se a ciência tão perfeita, quase revelação divina, que receberam os integrantes da corporação médica, de tal forma que é impossível contrapor ao discurso destes filhos de Zeus qualquer coisa, pois de todas as coisas eles possuem a verdade final. E possuem, principalmente, a capacidade de ditarem os preços dos seus préstimos voluntários, porque afinal há mais a precisarem que a ofertarem.

Inventou-se que todo um grupo de pequenos-burgueses era bom, essencialmente bom, probo, capaz, produtivo e outras valorações mais do repertório da moralidade plebéia, só porque nasceram na classe em que nasceram e ocuparam os empregos que sempre estiveram às suas disposições. E essa invenção aproximou da divindade o subgrupo dos que ingressaram na burocracia estatal porque foram aprovados em testes de suficiência técnica e capacidade de detectar capciosidades em perguntas iniciadas por negativas.

Essa gente acreditou que está onde está porque deve ser assim e porque haveria inabalável aliança com o grande capital. Todavia, o grande capital não tem qualquer dificuldade em romper esta frágil aliança, principalmente quando a pequena-burguesia tem conduta tão próxima à dos escravos.

Na história bem recente do Brasil, há dois exemplos interessantíssimos dos efeitos da viragem à direita. Um, súbito e esquizofrênico, foi estancado porque era tão confuso que atrapalhou a vida do grande capital, como efeito lateral, porque não visava a isto. O outro, organizado e sistemático, com apoio da imprensa, quase destrói o pouco de serviço público que havia e o muito de burocracia estatal que sempre houve.

Fernando Collor de Mello chegou ao governo como as Erínias a Orestes. Ele teria liquidado tudo, burocracia estatal pequeno-burguesa e inclusive um e outro pedaço do grande capital. A fúria revelava muita força e até a grandeza que não se deve negar aos loucos, mais que a patifaria que o grande capital marcou como própria dele. Fato é que não servia, nem à pequena-burguesia, instalada direta ou indiretamente no Estado, nem ao grande capital. Foi preciso afastá-lo, depois de criar comoção moralista por nada.

Fernando Henrique Cardoso chegou como Odisseu de volta à casa e agiu como Odisseu com os pretendentes de Penélope. Quase destrói as corporações pequeno-buguesas que ocupam a burocracia estatal e teria levado a tarefa a cabo se houvesse tempo hábil. A grande finalidade não era especificamente a aniquilação da classe média a soldo do Estado, senão que era vender serviços e patrimônio estatal ao grande capital, mas uma coisa trouxe a outra e isso agradou aos patrões.

Esses dois ocupantes do governo apresentaram-se ao público como veículos da novidade e da moralidade e nunca deixaram muito claro para as classes médias viventes do Estado que suas propostas implicavam a aniquilação ao menos parcial delas, até porque os patrões delas não precisam de escravos que ganhem mais que a maioria dos escravos.

Novamente, apresentam-se propostas que não vão além de retornar à crescente concentração de rendas e novamente as classes médias em geral e em particular a burocracia estatal apoia estas propostas com sinceridade comovente. É própria da classe média brasileira a sinceridade que namora a hipocrisia e segue de mãos dadas até ao cadafalso ou até o átrio da mansão, conforme a sístole ou diástole histórica.

Será, de qualquer forma, interessante ver essa gente no próximo influxo da queda de migalhas da mesa do grande capital, desassistida pelo Estado, ávida em manter o discurso mesmo à medida em que recuam os rendimentos, ávida em justificar o novo agente do patrão, mesmo que ele seja um tantinho distante.

A maior conquista dos ladrões é tornar o público moralista.

Ninguém se lembra, evidentemente, por questões cronológicas, mas alguns conhecem o episódio. Dos maiores golpes de enriquecimento ilícito e corrupção generalizada da história recente foi a lei seca nos Estados Unidos da América. A partir de um surto de moralismo destituído de quaisquer razões, criou-se esquema que enriqueceu vários grupos mafiosos e vasta porção dos agentes do Estado.

Proibir o que muitos querem é o caminho mais curto para aumentar a oferta do proibido, a custos maiores e qualidade menor, e para gerar lucros enormes para os vendedores de coisas ruins que não pagam impostos. Tem a vantagem adicional de gerar renda para os fiscais da lei, que recebem para não fiscalizarem o que, de resto, seria praticamente infiscalizável.

O exemplo da lei seca dos EUA nos princípios do século XX não se aparenta muito a coisas a se tratarem de passagem aqui, exceto pelo moralismo que foi seu motivo determinante.

O moralismo é aquilo que a plebe – não se trata de uma questão de dinheiro, sempre é bom dizê-lo – usa. Não conhecendo honra, vai com moralismo. Achando rigoroso demais algo que supostamente é geral e abstrato, como a lei, vai de moralismo. Tendo sido instruída para achar que não há escolhas políticas e econômicas, vai de moralismo.

Hoje, nesta obra de Satanás que é a sociedade brasileira, o mais deformado e longevo esquema de rapinagem e dissimulação que já se dispôs, o moralismo tornou-se motivo primeiro de tudo e ponto central de discussão. Chegamos ao ponto de um lugar-comum ter-se tornado mais que comum: sempre se fala que algum fulano é do bem ou não é. Nem Jó foi alvo de experimentos assim tão avançados, deve-se convir.

Sabe-se de saber sabido – e perguntar de fontes e origens é entrar no argumento em círculos – que certo grupo, componente maioritário de certo partido político, praticou os maiores assaltos aos cofres públicos do país, nos últimos cem anos. A brincadeira foi muito além do contratar obras e serviços mais caros que a realidade e receber uma gorjeta do contratado.

Tratou-se de vender serviços públicos – e não somente as concessões para prestá-los – de vender empresas públicas a preços baixíssimos e com financiamentos amistosos de bancos públicos. A brincadeira foi muito bem feita e implicou, também, na assunção prévia pelo vendedor de vários custos que poderiam ser incômodos para os compradores.

Há um caso muito bonito e revelador: o Estado do Rio de Janeiro tinha um banco. Particularmente, não acho que Estados federados precisem ter bancos, mas se os forem vender, convinha que fosse uma venda mesmo. Pois bem, o banco do Rio, antes de ser vendido, demitiu metade dos funcionários e o Estado do Rio custeou o alto preço destas demissões. Achou pouco o Estado do Rio, vendedor, e assumiu todo o passivo previdenciário dos reformados do banco e, ao final, vendeu-o por alguns trocados ao virtuoso Itaú.

É prazeroso, para o que escreve estas linhas, conversar com liberais defensores de privatizações bem alfabetizados. Mas, direitista bem alfabetizado, assim como esquerdista, é coisa rara e ficamos na infeliz situação de poder conversar pouco, o que é lastimável. O caso é que não há, conceitualmente, com relação à maioria das atividades, quaisquer problemas em passá-las à iniciativa privada e fiscalizar a prestação dos serviços.

Não é recomendável, por outro lado, passar algumas atividades para a iniciativa privada porque implica simplesmente renúncia à soberania e ao poder de decisão. É o caso de pelo menos um banco e de uma companhia de exploração de petróleo.

Problema há em entregar a troco de quase nada muita coisa de valor bem tangível e em setores que poderiam ter boas prestações de serviços desde que se investisse costumeiramente o que se investe antes das vendas. No Brasil, sem mais, não se fizeram privatizações de serviços públicos que são prestados por particulares, cometeram-se crimes e há evidências de subornos imensos.

Há pouco, tornou-se notícia aquilo que já se sabia mas não chegava ao grande número porque os veículos que servem à instrução do grande número trabalham para os beneficiários do esquema fraudulento. Um certo partido político, num certo Estado da federação, recebia subornos constantes das grandes fornecedoras de trens Alstom e Siemens, francesa e alemã, respectivamente.

Quem disse ter havido uma drenagem de aproximadamente cinquenta milhões de dólares norte-americanos do Estado de São Paulo para subornos aos gestores deste Estado foi um dirigente da Siemens, que recebia mais que o devido e devolvia aos imaculados gestores paulistas. O funcionário da Siemens detalhou o esquema dos subornos pagos aos homens de bem, mas nada disso virou notícia ou processo judicial ou investigação do imaculado ministério público.

A seletividade da imprensa majoritária é algo fundamental na criação desta histeria moralizante que se esquece dos maiores assaltos ao Estado brasileiro. Esta imprensa fala para as classes médias, sejam baixas, médias ou altas e o que diz é recebido como verdade absoluta, precisamente porque é vertido nas tintas moralizantes que consistem no básico do pensar médio-classista.

Tanto são eloquentes as acusações aos opositores da imprensa, quanto o silêncio quanto a tudo a envolver certos partidos e certas figuras que contam com a simpatia da imprensa. No meio disto, no meio deste jogo de propaganda mal disfarçada em jornalismo, está o público essencialmente médio-classista, essencialmente inclinado ao linchamento, essencialmente conservador, essencialmente incapaz de reconhecer o quanto não é merecedor do que tem, essencialmente disposto a por o dedo na cara do vizinho por exatamente o que ele faz.

Tornando-se moralista o público, especialmente o médio-classista, o terreno encontra-se arado para semear-se a inquisição de mão única, aquela que levará à fogueira inclusive muitos acendedores de fogueiras. Encontra-se pronto o terreno para a ignorância generalizada da real oposição importante, aquela entre mais ou menos concentração de rendimentos.

Tudo gira à volta da moralidade e os maiores ladrões, os maiores violadores desta moralidade cambiante de botequim, serão os mestres de cerimônia do julgamento de quem faz ou não faz exatamente o que eles mestres de cerimônia fazem à exaustão.

A senzala defende a casa-grande.

O Brasil é caso de estudo no que se refere a concentrações abissais de rendas por prazos muito longos. Também é objeto precioso de estudos sobre inércia social e sobre a capacidade de um pequeno grupo manter as rédeas do país, em benefício próprio, mesmo que isso implique em prejuízos imediatos e tangíveis para a maioria.

Para decepção dos amantes de lugares-comuns, não se trata aqui daquela síndrome que alguns sequestrados apresentam e que consiste em se enamorarem dos sequestradores. A coisa é muito menos simples e não se presta a abordagens simpáticas ao médio-classismo como são estas a partir de lugares-comuns. Não é a vítima que se torna simpática ao agressor por conta de uma convivência forçada, excepcional e traumática. É a vítima que ignora sua condição.

Só há – e desculpe-me quem ler este texto pelo corte abrupto – duas inclinações e propostas políticas: uma propõe concentrar mais a apropriação dos rendimentos; outra propõe desconcentrar um pouco a apropriação. Todo o resto é bobagem e adereço a querer disfarçar esta dicotomia. Estas bobagens passam geralmente por considerações pueris sobre capacidades inatas, sobre esforços individuais, sobre méritos, sobre natureza.

É interessante apontar que o disfarce é utilizado pelos proponentes da maior concentração, sempre. E também é digno de nota que os proponentes da maior concentração negam veementemente a historicidade do humano e, em via inversa, insistem numa natureza humana tão improvável quanto inexistente. Natureza humana, para os defensores da maior concentração de rendas, é um axioma a ser vertido em mantra, lento, repetido…

Isso que a teoria chama natureza é desdito por sucessivas naturezas conflitantes a depender da extensão do período que se considera. Ou seja, haveria tantas naturezas humanas quantos são os períodos históricos considerados, o que nega o próprio conceito de natureza como essência e identidade, coisa herdada de Parmênides.

A concentração de apropriação de rendimentos não é natural, como não é qualquer coisa de humano. Estas considerações estão no âmbito do arbitrário e moral, ou seja, do que se resolve ser regra sem qualquer parentesco com a necessidade ou com a identidade obtida por sucessivas depurações. A provar a não naturalidade dessas supostas leis temos que há períodos de maior e de menor concentração na apropriação de rendas e se uns fossem anti-naturais simplesmente não existiriam.

Nós teremos – e devo desculpas por outro corte abrupto – ruptura em 2014 e fim de um ciclo. A direita deve voltar ao governo central brasileiro e isto terá as consequências óbvias, porque tem as finalidades óbvias: consequências serão todas as que advêm da maior concentração e finalidades são, basicamente, vender o que faltou: a Petrobrás e um e outro serviço público.

Isso afetará a maior parte da população e inclusivemente as classes médias, que são o móvel desta viragem. A mudança será para pior, mas será realizada com apoio dos que perderão economicamente com ela. Eis o extraordinário para quem supuser racionalidade no processo. A senzala defende a casa-grande.

O bolsa imposto de renda da classe média é maior que o bolsa família dos paupérrimos.

O ponto central da histeria das classes médias contra as políticas de rendimentos mínimos é o Programa Bolsa Família. Oito em dez médio classistas que se instruem em Veja, Globo, Folha e Estadão repetem o mantra que receberam desses meios, de que isso é um absurdo, que estimula as pessoas à preguiça e outras tolices deste tipo.

Mais recentemente, os meios em questão resolveram fazer seus repetidores veículos de uma tolice ainda mais tola. A nova moda do perfeito repetidor do que recebe sem pensar é defender que beneficiários de programas de renda mínima, por serem dinheiros do Estado, não poderiam votar!

Essa extravagante proposição, se levada a sério, conduziria ao impedimento da maioria deste país comparecer às urnas, porque todo mundo é sócio do Estado, embora só os pobres devam, aos olhos da imprensa e de seus repetidores, ser excluídos da democracia.

O Bolsa Família é um programa destinado a garantir renda mínima para famílias que tenham renda mensal por pessoa de menos de R$ 140,00 e crianças de zero a quinze anos.

Ou seja, uma família de quatro pessoas que tenha renda mensal inferior a R$ 560,00 é elegível para receber o benefício. Para se ter parâmetro de comparação, um salário-mínimo no Brasil é de R$ 678,00. Conclui-se, inicialmente e fora de dúvidas ou sofismas, que o programa destina-se aos muito pobres mesmo.

Para estas famílias em extrema pobreza é concedido o Benefício Básico, no valor de R$ 70,00 – o que é jantar para dois médio classistas que só bebam água e gostem de pizza, em São Paulo, por exemplo.

Além do benefício básico de R$ 70,00 para a família, há o Benefício Variável, que será concedido se a renda mensal por pessoa for inferior a R$ 140,00 e se houver crianças entre 0 e 15 anos, um benefício de R$ 32,00, até um máximo de cinco por família.

Enfim, uma família de quatro pessoas, com renda pessoal inferior a R$ 140,00 e com duas crianças menores de 15 anos, auferirá, globalmente, o enorme valor de R$ 198,00, composto de: R$ 70,00 + 4 x R$ 32,00 = R$ 198,00.

Para se comparar com esse irrisório valor, que não leva qualquer pessoa à preguiça e não deveria levar qualquer pessoa honesta e minimamente inteligente a repetir as tolices da imprensa, temos que um médio classista deduz, mensalmente, do que pagará de imposto de renda, R$ 180,00 por dependente que tenha.

Se a família médio classista da comparação tiver dois dependentes – e neste caso até aos dezoito anos e não os quinze – a dedução mensal  no imposto de renda será de R$ 360,00, o que supera o maior valor que alguma família extremamente pobre pode receber a título de bolsa família, que são R$ 306,00.

Essa breve comparação aponta que a histeria contra os programas de renda mínima deve-se primordialmente a demofobia.

Os demais pseudo-argumentos laterais revelam, por sua vez, a profunda hipocrisia e espírito de predação das classes mais altas brasileiras, porque sempre ávidas em acusar qualquer redistribuição de renda, por tímida que seja, realizada pelo Estado, enquanto todos são sócios do Estado em muito maior proporção que os mais pobres.

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