Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Segregação por aparência.

Toda lógica de atuação social tende a tornar-se inercial e, portanto, autoreplicar-se sem que os agentes percebam claramente o que fazem e porque o fazem de tal ou qual maneira.

O domínio de poucos sobre muitos depende bastante deste tipo de inércia percebida como um estado natural de coisas. Claro que isso tudo, de tempos em tempos, é temperado com pequenas pitadas de razoabilidade e de aparência de igualdade formal.

Em junho, acontece algo extraordinário nestas bandas do nordeste do Brasil: festas de São João que levam quase o mês inteiro. Em Campina Grande, precisamente, há um espaço dedicado à realização desta farra de trinta dias, que hoje pouco tem de tradicional, na verdade.

Como é intuitivo, o espaço fica cheio de gente, e nos finais de semana fica tão repleto que é quase intransitável. Esse tipo de aglomeração é ideal para a prática de pequenos furtos e alguns roubos. Assim, são tomados certos cuidados com a segurança.

Todo o amplo espaço é fechado no seu perímetro, a partir das cinco horas da tarde, e há quatro ou cinco locais de entrada e saída. Nestes pontos, há dois corredores de entrada, um para mulheres e outro para homens.

Neles, fiscais passam rapidamente aqueles detectores portáteis de metais, em busca de armas brancas ou de fogo. Caso os detectores acusem metais, o que quase sempre ocorre, por causa de moedas e chaves, faz-se uma rápida revista com as mãos. Realmente, não é nada constrangedor, nem invasivo.

Não gosto de multidões concentradas, nem gosto dessa música ruim que o atrevimento sem fim da indústria de entretenimento achou de chamar de forró, nem gosto de pagar caro por coisas ordinárias. Assim, só vou lá bem cedinho, pelas seis, sete horas, para uma brevíssima volta, pois nesta altura há pouquíssima gente e apenas trios de forró de verdade.

Eis que entrava e o detector de metais apitou. Claro, tinha um bolso cheio de moedas e no outro as chaves de casa. Parei e fiz menção de meter as mãos nos bolsos e retirar o que lá se encontrava, para provar ao sujeito da segurança. Ele balançou a cabeça e disse: nada, pode entrar, vocês são gente de bem… 

O maluco concluiu que éramos gente de bem – o que quer que isso signifique – e não fez em mim a revista com as mãos, que é de praxe quando o detector apita. Tudo bem, segui em frente. Mas, detive-me brevemente, apenas o suficiente para entrever uma cena que daria uma tese de doutoramento.

Atrás, entravam pai e filho, sendo este último uma criança à volta de quatro anos de idade. O detector de metais apitou quando o pai entrou e ele foi rapidamente apalpado nas pernas. Em seguida, entrava o menino, que devia ter qualquer coisa metálica no bolso e foi revistado manualmente.

A revista não teve nada de agressiva, intrusiva, humilhante, nada disso. Foi rapidíssima e superficial. Acontece que um menino de quatro anos foi revistado e eu não fui, mesmo que o detector de metais tenha apitado nos dois casos.

O menino de quatro anos e o pai eram pretos, assim como o sujeito da segurança…

A pequena burguesia e a necessidade de levar a classe baixa ao suicídio político.

A política é o espaço dos conflitos de interesses de grupos e classes, ou seja, o espaço próprio da luta de classes. Na política, está pressuposto o escolher, o tomar decisões a partir de alternativas possíveis. Não se trata, portanto, do âmbito do bem e do mal, não é o campeonato da moralidade. Aqui, está em jogo a apropriação de parcelas da riqueza gerada num certo espaço; quem fica com quanto.

Os grupos minoritários precisam esconder essa realidade a qualquer custo e, por isso, oferecem o discurso moralizante como forma de afastar o que efetivamente está em jogo. Os grupos minoritários, que correspondem aos dominantes, precisam evitar que os maioritários percebam que não há correspondência de interesses entre as diversas classes.

No Brasil, a disparidade na apropriação das rendas é de fazer corar qualquer pessoa bem alfabetizada que não esteja a soldo de interesses maiores. Ela, em resumo, justifica-se discursivamente na mitologia do mérito, o nome que se usa para inércia social. 90% dos meritocratas brasileiros estão onde estão porque nasceram onde nasceram. Mas, para a rapina é preciso crença, então essa gente acredita na mistificação da meritocracia.

Pois bem, de alguns anos para cá, anos que correspondem precisamente aos dois governos do Presidente Lula e aos quatro da Dilma, a desigualdade recuou. A melhora na distribuição das rendas resultou bem para todos, mas evidentemente esses benefícios não foram proporcionalmente iguais para todas as classes.

Os mais acima ganharam muito, tanto vendendo bens de consumo e imóveis, quanto vendendo dinheiro. Os mais abaixo ganharam mais, relativamente, porque tiveram acesso a pouco, depois de muito tempo com acesso a nada. Os do meio também ganharam, mas menos que os demais estratos. Os do meio e principalmente da parte superior do meio, são a pior gente que há, não apenas no Brasil. Incapazes de guerra, recorrem à sabotagem.

A redução das desigualdades fez-se de maneira óbvia: programas de rendimentos mínimos e aumentos do salário mínimo. Isso, além de certo conforto material, levou às fronteiras do rompimento do pensamento da eterna servidão e às raias da crença quimérica na igualdade. Os de muito de cima acharam ótimo, à exceção de um e outro profunda e sinceramente imbecil e fascista in pectoris. Os de cima celebram o aumento do mercado interno, salvo quando são entreguistas a ponto de trabalharem contra si próprios.

A classe média alta, esta não perdoa a inclusão social de vastos milhões de concidadãos. Ela é capaz de perceber que o movimento de ascensão dos pobres reduziu tensões e criou mercados para seus serviços, mas não tolera que o Estado tenha despendido com os ascendidos dinheiro que ela classe média alta queria para si. A questão é de divisão do roubo e de simbologia do poder.

Hoje, às vésperas de eleições presidenciais, a classe média alta vota para tomar para si os dispêndios estatais com programas de redução de desigualdade social. São contra aumentos do salário mínimo e contra o bolsa família porque querem estes dinheiros para si, na forma de isenções de imposto de renda e de isenções de imposto de importação de automóveis.

Para essa gente, a disputa é por dinheiro e, secundariamente, por manutenção de símbolos de poder. Os funcionários domésticos encareceram, no Brasil, de doze anos para cá. O trabalho doméstico é estigmatizado como o mais próximo ao nada e ainda permanece destituído de direitos e assimétrico a todos os outros trabalhos, sem que haja razão para isso.

A classe média alta viu-se obrigada a gastar mais para manter seus servos domésticos e, mais que isso, obrigada a fazer de conta que os considerava iguais, embora apenas pessoas com salários menores. No íntimo, encheram-se de rancor e buscam reverter esta situação. Aí está a esperança de quantos se oferecem contra a candidatura da Presidente Dilma: o rancor da classe média alta.

Precisam convencer os da classe baixa a votarem contra quem lhes melhorou a vida materialmente. Contam com a preciosa ajuda da imprensa dominante, que é contra qualquer coisa que diminua a concentração de riquezas, porque teme que venha na esteira a desconcentração do poder mediático. Só há uma forma de levar a classe baixa a votar contra si mesma: fazer acreditar na identidade de interesses.

Para tanto, é fundamental fazer acreditar na inexistência da luta de classes e na indiferenciação política. Isso implica espetáculo e moralismo, o que é ofertado maciçamente na imprensa. Tal estratégia tem boas chances de êxito, mas resta algo a considerar.

Caso a direita ganhe as eleições presidenciais de outubro e tenha mandato para executar seu programa concentrador e entreguista, terá que dispor de meios para aplacar as reclamações que emergirão inevitavelmente dos que rapidamente regridirão. Será difícil fazê-lo somente com editoriais de jornais televisivos e novelas. Mais difícil ainda será fazê-lo com repressão policial.

Como quer que seja – e não é remota a possibilidade da direita ganhar – fica para a classe baixa e para a esquerda clara a necessidade de evidenciar que política é conflito de interesses e não campeonato de moralidade.

A juridiquice a serviço da demofobia e contra a constituinte da reforma política.

Resultou da assembléia constituinte instalada pela emenda nº 26 à constituição de 1969 o que se esperava dela: um documento de compromisso, muito longo, mal redigido, apto a alimentar o fetichismo litigante, enfim, uma obra feita à semelhança dos seus autores, tanto quanto às suas capacidades, quanto relativamente às suas aspirações.

Claro que há coisas boas e elas são, basicamente, o elenco dos direitos fundamentais, abrigados sob a cláusula de imutabilidade exceto por rutura institucional plena. Não podiam escapar a esta tendência jurídica à irrealidade, a par com a não aceitação de suas pretensões geológicas. A conformação do Estado, essa ficou especialmente mal feita, o que não se sabe se foi de caso pensado ou por puro descuido.

A federação não apresenta incompatibilidade com o parlamentarismo e deveríamos ter adotado esta forma naquela ocasião. Posteriormente, sempre foi adiada ou afastada a discussão, porque ela sempre retornou como golpe de ocasião contra o grupo instalado no poder. Semelhantemente dá-se com a reeleição para cargos executivos, que deveria ter sido prevista no texto original e que foi criada como golpe, depois, ao sabor de circunstâncias.

Curiosamente, os constituintes quiseram proclamar, logo no início, que o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos, ou diretamente. A fórmula, a despeito de meio piedosa, está suficiente e merece o destaque. Tanto merece, que foi esquecida pelos guardiões das juridiquices, que aspiram muito mais à criação de um Estado tecnocrático que à democracia.

Certamente que a puseram lá no início e sem ambiguidades – algo raro nos textos legais brasileiros – porque nela nunca acreditaram. O poder nunca emanou do povo, nunca foi por ele exercido e a expectativa das classes dominantes é que nunca fosse, ainda que timidamente.

Agora, fala-se na convocação de plebiscito para consulta popular sobre a instalação de constituinte parcial a visar a reforma política. Melhor seria dizer reforma do Estado, mas o nome não compromete a ótima idéia. A governação do presidencialismo de maioria circunstancial é especialmente complicada no Brasil e as coisas precisam ficar mais claras, até para ficarem mais baratas.

Parece-me que mais uma vez perder-se-á a ocasião de afastar a figura do Chefe-de-Estado das intrigas mesquinhas do dia-a-dia, ou seja, não haverá parlamentarismo. De qualquer forma, convém redesenhar o presidencialismo brasileiro e retirar do congresso nacional as possibilidades tão amplas de ser chantagista e pusilânime, ou seja, dar-lhe responsabilidades a par com seus vastos poderes.

O espectro político ideológico não comporta tantas variações quantos são os partidos políticos. Conclusão óbvia é que várias agremiações representam as mesmas coisas ou representam coisa nenhuma, o que vem a dar praticamente no mesmo. Não se cuida de querer alguma espécie de bipartidarismo, mas da evidência da utilidade da cláusula de barreira.

O financiamento das campanhas eleitorais tem de ser público, a partir de um fundo a ser repartido conforme as representações existentes antes do pleito futuro. Isto evita a captura despudorada dos partidos pelos interesses econômicos e afasta a insegurança jurídica subjacente aos financiamentos privados por caixa 2.

Todavia, além dos aspectos puramente eleitorais, ou seja, relativos diretamente à forma de se fazerem eleições, é ocasião para reformar o Estado e inibir um jogo perigosíssimo que se tem visto aprofundar-se. É necessário estabelecer o que é o poder judiciário, que padece da legitimidade do voto popular.

O aplicador – e excepcionalmente intérprete – da lei não vai além disso, porque não pode escolher nem criar a regra sem para isso ter sido escolhido pelos cidadãos. O judicial brasileiro viola esta regra básica há tempos e fá-lo sem quaisquer críticas consistentes nem dá sinais de querer retornar a ser o que pode ser num panorama estritamente formal.

O Brasil tem uma aberração chamada justiça eleitoral, que avança sempre no seu afã de legislar sobre as eleições, superpondo umas às outras camadas de resoluções confusas e muitas vezes contraditórias. Vezes há que avança contra competências do poder legislativo como se fosse uma brigada de ungidos de Deus.

 É comum a insegurança persistir até depois das eleições e é possível entrever que situações mantidas em suspensão servem bem à causa da desmoralização da política, algo que interessa às corporações burocrático-jurídicas, mas não ao país.

Evidentemente, a corporação jurídica, dentro e fora do Estado, cerrou fileiras contra a convocação da constituinte exclusiva para a reforma política. A demofobia funciona como o medo do fogo nos animais que não falam: é instintiva. É tão forte que a primeira barreira violada é a da coerência.

Ora, nada há de juridicamente impróprio na convocação de uma constituinte parcial e específica, por meio de plebiscito. A própria constituição vigente previu os instrumentos de participação popular direta, bem como as duas formas de consulta aos cidadãos: plebiscitos e referendos.

Por outro lado, a reforma que se busca não atinge os fetiches supremos dos juridiquistas, as cláusulas pétreas. Aqui, não me contenho e abro um parêntesis para admirar o gosto do ridículo e o romantismo tardio do juridiquismo. O sonhar com regra petrificada beira a loucura! Não se petrifica nada na história e o direito está dentro dela, não fora.

Se os constituintes não tiveram a coragem de evitar fórmulas democráticas e a criação de instrumentos de participação popular, seus sucessores deveriam obedecer às aparências e jogar o jogo pelo regulamento. Aberrante é, com medo do que pode resultar, trabalharem contra a idéia socorrendo-se de grupos que, se puderem, suprimem o próprio congresso.

Enfim, não interessa à melhoria da governação do país afundar-se em discussões tão bizantinas quanto insinceras sobre a possibilidade da instalação da constituinte parcial e específica, após aprovação popular da convocação. É perfeitamente possível submeter a idéia ao povo e instalar a assembléia constituinte, porque, afinal, a soberania é popular.

Linchamento. A imprensa apropriou-se da objetividade manipuladora.

O espetáculo mais feio que o gênero humano pode dar, antes da guerra aberta, é o linchamento. É uma forma de ação direta e, portanto, muito sedutora para as massas, amantes perpétuas do imediato.

Essa forma bárbara de se unirem várias pessoas em torno a objetivo comum renasceu no Brasil. E renasceu, deve-se dizê-lo, porque foi estimulada pela imprensa, como se as piores inclinações necessitassem de adubação.

Depois de dramáticos assassinatos por linchamentos – e não cabe descer ao nível de considerar se as vítimas eram ou não culpadas de algo – a imprensa majoritária entra em cena para faturar em cima da selvageria, como se não a tivesse estimulado anteriormente.

Fiéis à condição de imprensa mais desonesta e iletrada que se conhece, numa breve comparação com as congêneres por aí, passaram do estímulo à apropriação da dramaticidade. De qualquer forma, a postura era previsível e própria de quem quer ganhar sempre e de todos os lados, certos que coerência é algo inexistente.

A estratégia passa por reservar-se a construção da narrativa objetiva, à revelia da efetiva descrição dos fatos. Isso percebe-se facilmente nas entrevistas feitas aos parentes próximos das vítimas de linchamento.

Um repórter qualquer, munido duma pauta pré-fabricada e não munido de qualquer autonomia profissional, pergunta à esposa do sujeito que foi linchado como ela está sentindo-se. É a superficialidade e a patifaria elevados ao máximo, porque é óbvio que o cônjuge de alguém selvagemente assassinado está sentindo-se muito mal.

A pergunta é uma não pergunta, serve apenas para dar ares de reportagem e por dramaticidade subjetiva, abrindo espaço para a objetividade ser delineada em termos de editorial.

O repórter não pergunta ao parente da vítima quem ele acha que foi responsável por aquilo, se houve estímulos a desencadearem o movimento de massa, se acha que os criminosos serão punidos. Enfim, não se faz uma mísera pergunta objetiva ao entrevistado.

A única coisa que se faz à guisa de entrevista é pergunta óbvia de forte conteúdo dramático, que, não pondo qualquer elemento objetivo, reserva ao editorialismo a construção da narrativa da forma que bem entender.

Não é jornalismo, nem acrescenta coisa alguma a quem vê, o ter um parente de vítima a chorar e dizer que se sente mal. Pelo contrário, isso banaliza a selvageria, banaliza as lágrimas da vítima, banaliza o sentir mal. Tudo é tornado em espetáculo banal.

Dado o espetáculo da banalidade, fica para o meio de imprensa o caminho aberto para dar sua teoria rasteira do evento e, possivelmente, dá-la como novo estímulo meio disfarçado da barbárie, o que é evidente nas mal-disfarçadas sugestões de linchar os linchadores…

O saque do Estado e os dilemas e interesses da classe média.

Não há nobreza senão no proletariado e na aristocracia. E não há inteligência em negar as estratificações que se conhecem pelos nomes consagrados. Isso deve ser dito, aqui no início, porque tornou-se moda negar não apenas a existência de classes, mas a própria classificação e sua terminologia própria.

Convém ainda anotar que classe média, como está no título, significa realmente classe média alta, porque ela pode realmente ser dividida. Dividi-la é negar o grande negacionismo patife que se instalou e oportunisticamente chamou de classe média todo um grupo heterogêneo que se aproxima tenuemente por critério de rendimentos auferidos.

É tolo por duas pessoas no mesmo grupo apenas por terem aparelhos de televisão do mesmo tamanho.

As identidades não se fazem mais fortes por similitude de rendimentos que por outros fatores mais sutis e etéreos. E o alargamento de banda de rendimentos permite colocar no mesmo saco muita gente que está distante, tanto nos rendimentos, como na instrução, nos anseios, na percepção da história.

Assim, essa estória de nova classe média é qualquer coisa de vaudeville ou então estratégia pensada para confundir. Realmente, interessa bastante à parte alta que a parte baixa acredite-se partícipe de um mesmo núcleo de aspirações e não perceba a realidade: a luta. Não há sucesso maior que fazer o oprimido acreditar-se em comunhão com o opressor.

Neste ponto, entrego-me à uma lástima antiga, que sempre me assalta quando penso no Brasil: não há liberais clássicos neste país, exceto por um e outro isoladamente, que recebeu por herança o pensamento juntamente com os bens. Resulta que quase todos os discursos liberais não passam de desonestidade e insuficiência intelectual.

A tal classe média alta deu para achar que faz discurso liberal, quando defende apenas a apropriação do que tem sido gasto pelo Estado com políticas de rendimentos mínimos e outras iniciativas de seguridade social. Ora, o liberalismo não postula o alargamento da desigualdade como objetivo a ser perseguido. Na verdade, o liberalismo define-se bem pela ausência de objetivos definidos; não é um programa, senão uma reunião de meios. Os objetivos têm que ser cuidadosamente disfarçados.

Essa gente, na verdade, sempre está a meio caminho de algum fascismo de defesa corporativa, talvez por nostalgia do que a fez ascender, que certamente não foram os méritos que proclamam. Têm alguma repugnância pela estética puramente fascista, mas desejam ardentemente a impressão de ordem e o assalto compacto do Estado.

As classes baixa e média baixa tampouco são liberais ou têm alguma noção mais precisa do que seja isso. Elas estão em verdadeira ebulição, vivem a mistura dos anseios de progresso material e estabilidade, ou seja, temem profundamente os retrocessos.

São a matéria perfeita para a edificação de um fascismo clássico, que permite ver o Estado a desempenhar o linchamento do diferente, a propósito de dar espetáculo em data certa. Vão em busca da técnica com empenho sincero e dedicam-se à superficialidade nas humanidades clássicas. Seu flerte com o bacharelismo jurídico gera os rebentos mais monstruosos que a sociedade vê.

É difícil conceber um acordo real e consciente entre as classes média alta e baixa, na medida em que não comungam de interesses e de identidades na medida do que a parte de cima quer fazer crer. O acordo é possível a partir de inverdades e traição pura e simples a posteriori. Em bases claras, não vai adiante porque ninguém o aceitará.

Curioso é perceber que a parte alta vem apostando em alguma sinceridade narrativa, nestas vésperas de eleições presidenciais, o que significa dizer que postula abertamente a cessação das políticas de redução das desigualdades sociais. Ora, estas políticas beneficiam as partes mais baixas, o que implica a necessidade de enganá-las para apoiarem a supressão do que as beneficia.

De qualquer forma que se olhe esta tentativa, há que reconhecer que carrega boa dose de audácia e crença na burrice alheia.

As raízes do ódio medio-classista ao Bolsa Família.

Há meses, escrevi pequeno texto a demonstrar que o programa de rendimentos mínimos Bolsa Família é algo realmente mínimo e inferior ao que os médio classistas apropriam do Estado por meio de simples isenções tributárias, como aquela decorrente de ter um menor dependente. Basta um pouco de informação e de honestidade intelectual para perceber que o bolsa imposto de renda é maior que o bolsa família dos miseráveis.

A cruzada contra os programas deste tipo, e marcadamente o Bolsa Família, não dá sinais de arrefecer-se; antes, ao contrário, assume ares cada vez mais histéricos. Dois argumentos disputam a primazia na composição do sofisma contra os rendimentos mínimos: um, de caráter nitidamente moralizante, diz que estimula a vagabundagem; outro, pseudo-econômico, diz que enfraquece as finanças públicas e corrói o equilibrio fiscal.

O argumento farisáico plebeu é desmentido diretamente pelos números. Ora, ao mesmo tempo em que avançam as políticas redistributivas baseadas em rendimentos mínimos reduz-se a taxa de desemprego para mínimos históricos, à volta de 05%, o que, em termos econômicos, equivale a pleno emprego. É pueril demais até para moralizantes medio classistas brasileiros defender tamanha contradição.

A segunda bobagem tem maior conteúdo político, embora esconda-se sob o disfarce econômico. As contas públicas brasileiras vão muito bem, hoje, com endividamento público relativo ao PIB realmente baixo. Além disso, se se trata de levar o fetiche da redução do gasto público adiante, como idéia fixa, podem-se cortar inúmeras despesas e não necessariamente o Bolsa Família. Que tal suprimir as deduções de despesas médicas e de educação do imposto de renda de quem tem rendas?

As motivações reais percebem-se se nos mantivermos no âmbito do pensamento político, da disputa pelo poder a partir de seus maiores pilares: dinheiro e prestígio social.

Quem fala contra Bolsa Família não acredita seriamente – exceto uma minoria realmente estúpida demais – nisso de estímulo a vagabundagem, nem está preocupada com o número de vagabundos, até porque quanto maior este número melhor para a Casa Grande. Tampouco há alguém seriamente preocupado com equilíbrio fiscal, desde que o desequilíbrio o favoreça.

A Casa Grande e seus médio servos quer mesmo é apropriar-se deste dinheiro. Ou seja, quer que ele seja gasto com ela e não com os miseráveis. Quer que seja despendido na forma de mais isenções de impostos por despesas que fez porque quis. Quer aumento na cota para importar espelhinhos comprados em Miami sem incidência de impostos. Quer redução de impostos nos bens de consumo de luxo e outras formas de assaltar o Estado.

Por outro lado, a obtenção de níveis mínimos de dignidade impede que os miseráveis submetam-se à escravidão da Casa Grande, sempre disfarçada em bonomia e generosidade. Aquela que troca trabalho por três pratos diários de comida e a falsa intimidade dos que se cruzam dentro de casa. Isso diminuiu, encareceu a mão-de-obra não especializada e retirou algo preciosíssimo para as classes médias e altas: a simbologia do servo à disposição.

É notável que se vejam, com frequência assustadora, as figuras tão clássicas como anacrônicas da senhora que caminha à frente da babá com o filho nos braços. São muito simbólicos o andar à frente e o não precisar fazer esforço físico. Esta é a simbologia do prestígio social, a permanecer quase inalterada mais de cem anos depois das belas pinturas de Debret.

O jantar de Dilma em Lisboa e a mediocridade ativa da classe média brasileira.

Carlos Lacerda, que sabia ler e escrever bem, estaria entre encantado e estarrecido com os seus atuais rebentos. Encantado, porque a classe média alta brasileira é-lhe à imagem e semelhança no que diz respeito ao moralismo oportunista e à tenacidade anti governista, sempre que se tratar de governo que aumenta o preço dos escravos.

Estarrecido ficaria ao perceber que sua descendência é bastarda no que diz respeito ao nível intelectual. É preciso alguma inteligência e alguma cultura para ser de qualquer lado ativamente, sob pena de repugnar tanto à direita, quanto à esquerda que se alfabetizaram. Da mesma forma, é preciso não ser estúpido para ser ladrão…

Vamos às circunstâncias que deram ao prototípico brasileiro de classe média alta a oportunidade para reproduzir o que a imprensa disse-lhe e achar que pensara por si : a Presidência da República Brasileira tem um avião para os deslocamentos do chefe de Estado. Este avião não tem autonomia para cumprir a rota que vai de Genebra a Havana. A presidente Dilma estava em Davos, na Suiça, para o encontro do grande capital, e ia a Havana, para o encontro dos países sul-americanos.

Esse deslocamento implicava uma paragem. Ela foi feita em Lisboa, o que é mais que óbvio em todo vôo de longo curso que cruzará o Atlântico. Chegada em Lisboa, a comitiva brasileira pernoitaria e sairia no dia seguinte, como aconteceu.

Eis que a histeria propagou-se relativamente aos preços das hospedagens, porque a comitiva da presidente passou a noite em hotel de cinco estrelas, em Lisboa. Qualquer pessoa que não tenha empenhado seus lobos frontais na casa de penhor do fascismo brasileiro sabe que isso é um nada. Qualquer um – e são poucos – dos médio classistas que tenha memória sabe que os presidentes não se hospedaram em pensões no andar de cima de uma casa de fados na Mouraria.

A histeria, por lógica, permite concluir que os histéricos nem têm memória, nem sabem o que é um presidente da república. Além dessas ignorâncias, os histéricos revelam sua vontade íntima de agredir uma governante que cometeu crime: agiu marginalmente a favor dos sempre escravizados, e nada mais.

O lacerdismo mal alfabetizado atinge preferencialmente uma camada social composta de gente que ignora o conflito de interesses – embora acuse no governante que não lhe agrada coisas que consente em si.

A gente que se escandaliza com os preços das diárias dos hotéis em que a presidente hospeda-se gostaria de neles se instalar à custa do Estado, desde que ninguém soubesse. Gostaria de neles se instalar recebendo diárias mesmo no gozo de férias, como fez um campeão da moralidade nacional.

A gente que fez do preço da diária de hotel da presidente da república um assunto recebe descontos na aquisição de automóveis por conta dos cargos que exerce na função pública. Essa gente, quando exerce a profissão médica, aceita prendinhas de viagens à custa de indústrias dos produtos que constarão de suas prescrições.

Essa gente vende-se a acreditar não se ter vendido, o que é atentado duplo contra a honra. Ora, aprendemos que não convém nos vendermos, mas que, se o fizermos, convém entregarmos. O pessoal da classe média alta brasileira vende-se e faz-de-conta que se não vendeu.

O duplo da desonra é vender-se e não entregar. Mas, aí, se for para um alto médio classista brasileiro perceber, é demais…

O rolezinho, os novos-ricos, os novos-pobres e a demofobia.

O maior risco de ensinar por meio de exemplos é ter êxito…

A vacuidade, os maus modos, a forma atabalhoada de estar, o ser barulhento e a busca incessante da redenção no consumo foram diligentemente ensinados às massas, independentemente de suas classes sociais. Óbvio que cada classe age segundo seus interesses e que adota uma estética própria, o que é meio de identificação externa.

As partes mais aquinhoadas financeiramente das massas erigiram o centro comercial – shopping center, na nossa abissal caipirice – em mais que templo. Tornaram-se os espaços privilegiados porque seguros e plenos de um grupo mais ou menos uniforme socialmente. Fica claro que essa essência de segurança baseia-se pura e simplesmente na segregação por classe, o que revela a identificação dominante de pobreza com criminalidade.

Insegura da eficácia do discurso gerador da crença nos lugares adequados, ou seja, insegura de que os pobres saberiam reservar-se aos seus espaços exclusivos, as classes mais altas cuidaram de resguardar suas áreas de convívio de algumas maneiras. A mais evidente é geográfica e com dificuldade de acesso: os centros de compra são erigidos em locais cujo acesso ideal dá-se por automóvel, por exemplo.

Outra estratégia de resguardo passa pela estética, por signos que levam o diferente a perceber-se inadequado e envergonhar-se. Isso ainda é resquício de fases mais sofisticadas de exclusão, fases bem caracterizadas pela expressão pobre que sabe o seu lugar. Assim, o excluído é que cuida de excluir-se, posto que a crença na inabalável diferença solidificou-se nele.

Ocorre que a sedução consumista fincou raízes profundas e afastou as barreiras físicas e a aceitação das crenças. Jovens de periferia inundaram centros de compras reservados à classe alta e expuseram aberta e francamente sua estética. Isso assustou a clientela preferencial, que viu nos episódios dos rolezinhos algo semelhante aos famosos arrastões, embora de criminalidade não se trate.

O que escandaliza, deixando eufemismos de lado, é a predominância da pele escura, uma estética dos trajes, do falar, da gestualística diferentes das marcas de pertencimento dos frequentadores habituais. Não é mais feio nem mais bonito que a estética da classe alta, mas é diferente.

É demofobia, sem mais nem menos. Mas, ela precisa esconder-se e lançar mão do discurso do medo da violência, ainda que não tenha havido mais violência que a comumente produzida pelos adolescentes de classe alta.

Dizem que esses espaços são privados e que, por isso, é legítima a discriminação e o impedimento da entrada dos jovens das periferias. Inclusive, essa variante nova do apartheid foi confirmada judicialmente, em São Paulo, o que está longe de surpreender quando se sabe para quem trabalha o poder judicial. Todavia, não se cuida de espaços meramente privados, na medida em que os centros de compras são espécies de sucessores das praças públicas.

Não é aplicável ao centro de compras a lógica própria de um condomínio residencial, em que os donos escolhem quem entra e quem não, porque o critério de discriminação que pretendem aplicar aos centros comerciais não é lícito e a clientela a ser admitida não é composta de condôminos do espaço comercial.

Todavia, aqui aparece algo bem revelador: o grupo dos clientes a serem admitidos age como se fossem condôminos, como se fossem os donos dos centros de compras e assim legitimados a exigirem a obstrução aos que não se incluem na categoria dos proprietários do espaço. Da mesma forma essa classe dominante age relativamente aos espaços inteiramente e conceitualmente públicos, mantidos pelo Estado.

Enfim, o escândalo com os rolezinhos dos jovens da periferia é resultante da mistura de duas coisas muito antigas: demofobia e patrimonialismo.

Os três pilares do golpe: udenismo, esquerdismo Cabo Anselmo e judiciário.

Antes de qualquer coisa, convém uma pequena advertência. Conversando com um amigo sobre o segundo pilar apontado no título, ouvi que Cabo Anselmo lembrava imediatamente delação. Sei bem disso, mas a referência a Anselmo, como inspirador de certo discurso, não tem a ver com seu caráter delator, mas com a incitação irresponsável a um esquerdismo supostamente radical, que serve bem à direita golpista. Enfim, a lógica Cabo Anselmo, para mim e para este texto, tem a ver com esta incitação irresponsável, não com a delação.

Ao contrário de países vizinhos, o Brasil não tomou cuidados para evitar um golpe que subverta a vontade popular nas próximas eleições para a chefia do Estado. Ao contrário do que a maioria da imprensa diz, o Brasil tem níveis de liberdade que implicam verdadeira negação da soberania, da constituição e dos crimes de injúria, calúnia e difamação.

Contrariamente ao que fizeram Argentina e Venezuela, o Brasil, mesmo governado por gente que pensa mais no povo que na minoria de 15%, achou que era possível ter imprensa concentrada, monopolista, sem limites e entregue a capital estrangeiro. Os que estão no governo acreditaram que era possível comprar esta imprensa e receber dela o mínimo, ou seja, que ela fosse imprensa e não partido político. Mesmo tendo provas contínuas da impossibilidade, o governo continuou pagando para ser caluniado dia e noite…

Contrariamente ao que fizeram Venezuela e Argentina, o Brasil, pelos governos que estão há treze anos, acreditou que a honradez é paga com honradez e que não existem identificações de classe nem subornos. Não purgou a cúpula do judiciário dos golpistas e experimentou o sabor amaríssimo de juízes ignorantes, recalcados, vaidosos, cúpidos, farisáicos, oportunistas e com nenhum apreço à constituição que supostamente guardam. Vimos, então, o espetáculo horrível de juízos de exceção que degradaram homens inocentes e que foi a antesala da interdição de gente querida pela maioria.

Os que governaram e governam o país há treze anos trabalharam para reduzir a desigualdade social, o pior problema do país, e tiveram êxito marcante. Não trabalharam suficientemente para que a maioria tivesse consciência de classe e para que esta maioria pudesse escolher livremente doravante, todavia. Eles ignoraram os instrumentos do golpe e acreditaram que o povo e os que vendem para o povo seriam apoio suficiente.

Ignoraram que há, sempre, quem os queira tirar não apenas do poder, mas da vida, e que têm tenacidade para seguir a tentar. Sinceramente crentes que todo poder emana do povo, deixaram agir com poder de Estado os que nada têm emanado do povo e não tiveram coragem de dizer que funcionários a 10.000,00 euros mensais não podem trabalhar pelo povo, porque num país de renda mensal média de 300 euros, quem ganha 33 vezes mais que a média não é povo e, obviamente, age por sí e por quem está acima.

Aceitaram o jogo udenista, porque parte de seu êxito deveu-se a terem feito discurso udenista, lá atrás, há quinze ou vinte anos. O moralismo, aquilo que passa por dizer que tudo se trata de fulano ou sicrano ser ladrão ou infiel ao cônjuge ou adicto de drogas ilegais ou de álcool, foi uma das bases de seu discurso inicial. Hoje, este discurso é base da oposição a eles, com a amplificação da imprensa e da corporação judiciária.

Nunca insistiram unicamente nas conquistas relacionadas à melhoria na desconcentração da apropriação de rendas, que efetivamente realizaram. Nunca disseram que o ponto central da dinâmica social é a luta de classes, porque aliaram-se àqueles que passaram a vender mais. Assumiram a vergonha de serem de esquerda – que foram, realmente – e aceitaram as regras do discurso da oposição, que insiste em moralismo e na inexistência de esquerda e direita.

O grupo que hoje é governo no Brasil terá êxito nas eleições do ano próximo, mesmo que a seleção nacional não triunfe no mundial de futebol. Mas, ter êxito nas urnas, no voto, na preferência dos eleitores, não significa assumir o posto obtido pelo voto. Haverá um judiciário ávido por encontrar alguma questiúncula, um detalhe qualquer, ou mesmo servir-se de farsa pura e simples – e há precedente – para interditar a opção que não seja a do retorno da concentração de rendas e da entrega ao estrangeiro.

Há uma opção para o grupo que está no governo, se quiser resistir ao udenismo, ao esquerdismo Cabo Anselmo e ao judiciário: falar para a maioria e deixar claro o que ganharam e deixar claro o que é o judiciário e de que é composto. Com relação ao moralismo udenista e ao pseudo esquerdismo Cabo Anselmo, o primeiro deve ser ignorado e o segundo deve ser mais que ignorado.

Um pequeno pós escrito tem lugar. O que chamo de lógica cabo Anselmo fica claro num episódio recente e no comentário que fez um jornalista que posa de simpático, aberto e outras coisas bacaninhas do gênero. O Kenedy Alencar – jornalista que é empregado do Frias da Folha de São Paulo –  faz de conta que é livre e que segue sua pauta.

Pois bem, há cinco ou mais dias, o Congresso Nacional, em sessão plena, devolveu o mandato do Presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Na ocasião, em abril de 1964, o congresso, amedrontado, considerou vacante a Presidência da República, o que ajudou a malta golpista a dar aparências jurídico-formais ao golpe.

Na sessão que anulou a farsa de cinquenta anos atrás, os comandantes do exército, da aeronáutica e da marinha de guerra estavam presentes e não aplaudiram quando o Presidente do Senado proclamou a anulação da vacância declarada cinquenta anos antes. Todos os demais presentes aplaudiram quando da formal proclamação.

O tal jornalista Alencar – de prenome Kennedy – escreveu artigo a dizer e pedir que a Presidente Dilma punisse os comandantes militares porque não aplaudiram a reabilitação de João Goulart. E essa cretinice repercutiu e foi repetida, tanto por quem fazia ironia, quanto por aqueles que viram nisso um grande arroubo de esquerdismo cioso da história.

Isso do Kennedy Alencar é Cabo Anselmo puro. Primeiro, militar não aplaude nada. Segundo, aplaudir não é obrigação de ninguém. Terceiro, não aplaudir não é falta funcional, portanto não é infração. A Presidente Dilma não tinha, nem podia punir algo que não é infração.

A imprensa, a pregação para os convertidos, a cólera e o golpe.

Pode-se dedicar todo o tempo do mundo a lateralidades e a coisas acessórias quando se trata de falar do Brasil, mas o principal é a hedionda concentração de riquezas. Hoje, os 10% mais ricos detém 42% de toda a riqueza do país. Isso é quase sem precedentes e nenhuma abordagem que se queira séria passa à margem dessa evidência.

Nos últimos doze anos, ou seja, no período que compreende os dois governos do Presidente Lula e o governo em curso da Presidente Dilma, esta concentração recuou e a velocidades maiores que as de outros recuos pontuais havidos anteriormente. Ou seja, o que hoje é terrível, era muito pior.

Essa aceleração na redução de desigualdades na apropriação de riquezas é um dos pontos centrais do ódio votado a Lula e a Dilma por partes da classe dominante, pela classe média alta e pela imprensa de forma quase generalizada. É verdade que a maior parte da classe dominante não se move pelo ódio, porque não se entrega ao luxo de ser estúpida, ela que ganha com o aumento dos mercados consumidores.

Todavia, uma significativa parcela move-se mais por ideologia que por cálculo e a inércia social e econômica lhes permitem essa aparente contradição. As classes médias altas movem-se tanto por cálculo quanto por cólera, pois percebem que a descompressão dos de baixo faz-se em detrimento dela, que vê o custo dos escravos aumentar muito e seus preconceitos moralizantes se esfumaçarem.

As classes médias altas são incapazes de perceberem a melhora do ambiente social como algo que lhe inclua e lhe beneficie, porque só pensa em ganhar mais e não crê que isto seja possível senão em detrimento das camadas mais baixas. Escravos que são, não cogitam aquinhoar-se melhor em detrimento dos de cima, sempre dos de baixo. Escravos e covardes…

A imprensa, em sua maioria, essa move-se por causas que muito dificilmente se poderiam considerar estrategicamente racionais. Ela não foi ameaçada por este tímido mas sustentado movimento de desconcentração de riquezas empreendido pelos Presidentes Lula e Dilma. Pelo contrário, viu seu mercado de publicidade aumentar significativamente.

Aqui, entra em cena outro elemento: ódio de classe. Os patrões da grande imprensa creem-se aristocratas, embora as evidências neguem a qualidade de melhores àqueles que nada mais fizeram que viver de privilégios estatais obtidos à custa de chantagem constante.

Temos no Brasil a mania de confundir as coisas e viver num ambiente de perpétua confusão conceitual. Isso não é devido ao acaso, mas a uma postura calculista inercial, que todos assimilam e praticam sem se perguntarem porque. Assim, costumamos lançar cortinas de fumaça sobre as origens sociais das pessoas e principalmente confundir social e econômico.

Lula foi verdadeiramente a primeira pessoa de origens humildes a obter o poder em nível elevado. Todas as demais, fossem de esquerda, direita, centro ou o que fosse, eram de extração social elevada, mesmo que não fossem nitidamente plutocratas. Isso nunca foi perdoado a Lula: o atrevimento de postular e ganhar eleições, após ter perdido em várias oportunidades e, pior, de cumprir o que dele se esperava.

A maioria esmagadora da imprensa não deu tréguas ao Lula e o assediou insistentemente por oito anos, com mentiras, insignificâncias, deselegâncias, insinuações, manipulações e com propaganda subliminar. A despeito de tudo isso e de terem levado o tribunal supremo a forjar um julgamento criminal sem provas contra pessoas próximas ao Lula, não o conseguiram apear da presidência da república.

Essa insistência da grande imprensa transferiu-se para Dilma, embora sem o mesmo nível de deselegância e vileza, porque Dilma não é propriamente alvo do ódio de classe.

O caminho escolhido pela imprensa conduziu a algo terrível e de difícil reparação, que vitima partidos políticos de situação e de oposição: a idéia disseminada de que todos são iguais e que política é algo indigno.

As idéias mais cretinas, menos elaboradas e mais moralizantes vicejam nas massas. A imprensa investiu contra a política em geral por ter crido esta a única estratégia possível para conduzir à interdição dos Presidentes Lula e Dilma. Ocorre que o efeito foi geral, o que prova não haver venenos de efeitos localizados e destruição limitada.

As massas – aí incluída a classe média alta, que é profundamente massificada – envenenaram-se de um moralismo rasteiro e colérico que rápido pode degenerar na rejeição pura e simples da democracia eletiva e dos direitos e garantias mais básicos. A ânsia de linchamento foi despertada como poucas vezes se viu neste país.

Um efeito imediato desta cólera e deste moralismo de botequim dominantes é a porta aberta para as alternativas ao sistema representativo. Ora, o mais evidente à disposição é um burocratismo pseudo-meritocrático, ou seja, uma espécie de fascismo.

Não creio, particularmente, que isto acontece assim tão drasticamente, mas não posso fingir não ver que a imprensa dominante instigou formas de pensar que abrem caminho para tais formatos.

Outra resultante terrível da campanha da imprensa contra a política em geral e a favor do nivelamento intelectual pelo mínimo possível é que ela não chega a muitos quando quer fazer política editorial de direita a sério.

A imprensa chegou ao ponto de pregar para convertidos nos seus editoriais nitidamente de direita. Ela desqualificou insistentemente a política, promoveu o linchamento, a cólera, a suposta ação direta, mas continua a gostar de falar de política. Quando o faz, a sério, nalgum editorial escrito por um direitista alfabetizado, ninguém lê, exceto os já convertidos!

O grande problema de instigar o que há de pior, mais rasteiro, mais moralizante, mais massificante é que não há resgate ao depois e que essas coisas são muito sedutoras realmente, o que fica provado pela facilidade de sua disseminação.

Outra resultante, talvez a mais terrível, é que demonizada a política e ainda assim incapazes de ganhar de Dilma em 2014, eles terão que recorrer ao golpe da interdição judicial instigada pela imprensa. Mesmo com fortíssima campanha mediática contrária, com os convites para a superficialidade, para o ódio e para o linchamento, a presidente conta com 47% de apoio, segundo pesquisa recentíssima.

A aprovação à Presidente revela que colocar o nada e a cólera como suporte discursivo da oposição não lhe rendeu apoios, porque a cólera vai igualmente em todas as direções e o nada alugar nenhum vai. Novamente conclui-se que, ou se resignam a nova derrota eleitoral, ou partem para o golpe judiciário.

Não acredito na resignação de grupos de direita fascistizantes que nunca conseguiram viver afastados do Estado. Resta, portanto, o golpe.

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