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Ucrânia: para quem faz sentido a desestabilização?

O ambiente natural do capitalismo é a selva, onde ele atinge o máximo de suas potencialidades. Regras, ordem, previsibilidade, fluxo mais ou menos normal das coisas, isso não é o adubo ideal do capitalismo.

É preciso ter isto em vista quando se tenta compreender o que está por trás de um golpe de estado patrocinado com manifestações constantes de massas fascistas a soldo, como deu-se agora na Ucrânia. Qualquer modelo que não leve em conta os interesses de dez ou quinze imensos bancos está fadado à perplexidade, à incompreensão e ao paradoxo.

Sim, porque excluindo-se esta variável está-se diante de algo sem sentido, de algo realmente estúpido, que aparentemente é ruim para todos os envolvidos.

As pessoas em geral, na região oeste da Ucrânia, mesmo as que se guiam pelo fascismo de boulevar e recebem dinheiro de fora, sofrerão as consequências da iminente falência do país, algo que não será evitado pelos 15 bilhões de euros que a Europa quase quebrada oferece. É iminente uma corrida bancária e sem ajuda dos bancos russos a coisa será drástica.

A Europa em geral e particularmente a Alemanha, compra muito gás russo. Pode-se dizer que aproximadamente 30% do gás consumido na Europa provem da Rússia, o que não pouco. Assim, à falta de opções imediatas e mesmo de médio prazo, a Europa é refém do gás russo.

Para os povos norte-americano e europeu, uma guerra real pela Ucrânia não tem qualquer sentido, pois além de serem chamados a morrerem e verem seus parentes morrerem, serão chamados a pagarem a brincadeira, ou seja: depois do enterro, a conta.

Para a Rússia, que não desencadeou esta loucura aparente, há muito a perder, na medida em que os selenitas no governo norte-americano podem congelar ativos russos em seus bancos e tentar impor-lhes problemas comerciais, servindo-se dos seus Estados Vassalos na OMC.

Além dos prejuízos com eventuais congelamentos de ativos, a mobilização militar na Criméia tem seus custos, que poderiam ser evitados.

Neste passo, é de se observar que a guerra aberta é algo estúpido demais até considerando-se os interesses dos dez ou quinze banqueiros, porque as partes envolvidas têm os brinquedos nucleares, não há garantias de que prefiram massacrar-se sem os utilizar e, assim, o mundo pode ficar sem a Riviera Francesa para refúgio…

Se fosse possível uma guerrinha sangrenta, mas convencional, a matar pobres de todas as nacionalidades, mas a preservar locais de fuga para os grandíssimos capitalistas, é certo que seria esta sua opção preferencial.

Eis então que Obama e seus dessemelhantes europeus anunciam que imporão, sim, sanções financeiras, comerciais e diplomáticas à Russia, embora não as tenham ainda iniciado. Depois disso, ocorreu algo interessantíssimo: um alto funcionário do ministério das finanças russas anunciou que a Rússia venderia parte de suas reservas em títulos do tesouro norte-americano.

O governo disse que o funcionário não expunha posição oficial, apenas opinião pessoal dele. Todavia, já era perfeitamente possível compreender qual o jogo em curso. O recado foi genial e certamente o funcionário foi instruído a fazer o curioso e, ademais, evidente, vazamento.

Evidentemente que Obama e seus assessores não ignoravam que a resposta óbvia será essa, além da tomada integral da Criméia, é claro. Acontece que a venda massiva de títulos norte-americanos – e a Rússia é credora de 200 bilhões de dólares aos EUA – teria como efeito quase imediato a queda relativa do dólar norte-americano.

Ao mesmo tempo que isso seria interessante para os EUA como meio de aumentar a competitividade de suas exportações, seria dramático em termos de empobrecimento interno de um país já repleto de pobres. Seria terrível também para uma Europa que padece os efeitos satânicos de uma moeda fortíssima a par com desemprego elevado.

Os países mais periféricos, embora de grandes economias, como o Brasil, sofreriam imensamente e mergulhariam na confusão cambial, o que é destrutivo para quem não emite moedas plenamente conversíveis. Movimentos câmbiais súbitos são piores que ondas gigantes.

Após as primeiras variações cambiais esquizofrênicas, dar-se-ia outra coisa previsível para quem não estiver afogado em confusão e dívidas: o aumento súbito dos juros pagos pelo FED a quem compre seus títulos, para revalorizar o dólar-norte americano e diminuir pressões internas e externas, após a maior e irreversível parte do estrago já ter sido feita.

Fica muito claro que tal cenário interessa apenas aos grandíssimos banqueiros, que o têm previsto à risca, tem várias bases de operação e ganham em quaisquer movimentos, seja na desvalorização de moeda de reserva, seja na valorização do ouro, seja na volta dos juros dos títulos.

Bancos e os fundamentos do poder.

O banco sempre empresta o que não tem ou mais do que tem, ou seja, a descoberto. É a regra de ouro da atividade bancária, emprestar mais do que tem e a quem não pode tomar aquele dinheiro emprestado, até porque o melhor devedor é aquele que não pode pagar e não paga o total, nunca.
A dívida com o banco deve ser como a ferida que nunca sara; aliás esse é um dos fundamentos do poder. O outro é a mentira. Dependência, mentira e discurso são os fundamentos do poder. A coação física é um meio à disposição de quem opera os fundamentos. Assim acontece com os grandes poderes que se evidenciam: o dinheiro, a ciência, a dupla política e direito.
O dinheiro é uma representação e uma mercadoria denominada em si mesma. Fundamenta-se na dependência dela, na mentira de sua realidade e no discurso de que é impossível romper com seus mecanismo.
O mesmo acontece com os poderes da ciência, em que se destaca a medicina, e do político-jurídico. Aprisionam com a dependência do saber do especialista, com a mentira de suas certezas e da impossibilidade das coisas serem diferentemente e com o discurso que embasa sua verdade inquestionável. Tudo isso funciona porque não existe liberdade; foi esmagada.
Portanto, os bancos sabem que esse dinheiro financeiro, a juros, é de mentira. Nunca um banco será mais desonesto que o sujeito que deixou de pagar-lhe. É bom lembrar disso, para objetar moralistas de ponta de rua, sejam eles movidos por tolice, sejam eles simplesmente moralistas comprados pelos bancos.
Sim, porque foi elevada a axioma a bobagem dos contratos imutáveis e dos acertos livres. Foram todos levados à devoção a uma verdade não-sabida. Experimentem todos os que vivem a verdade do sistema financeiro irem buscar o que pensam terem nos seus bancos. Isso é exemplo vulgar e gasto, pois todo mundo sabe, ao final e ao cabo, que seria a quebradeira, porque aqueles números, em papel ou no computador, correspondem a nada.
A bancocracia é possível porque as pessoas dependem da crença em algo, em alguma estabilidade, aceitam bovinamente a mentira que lhes é oferecida – porque são ignorantes ou, não o sendo, não pensam mesmo – e precisam ter um discurso para reproduzir. No fundo, as três bases são a mesma coisa, decomposta em três fatores ou aspectos diferentes.
Mas, a questão é dizer que os caloteiros de um banco não são mais ladrões que ele, banco. A questão é pensar as coisas um pouco além do moralismo rasteiro do moralista sincero ou do moralista comprado.

 

Quem manda no mundo?

Este é o título – sem a interrogação – de um ensaio componente do livro A rebelião das massas, de José Ortega y Gasset. É muito característico dos textos de Ortega y Gasset que apresentem suas premissas inicialmente, o que se harmoniza com a clareza insistentemente buscada, e obtida, por ele. Adiante, transcrevo um trecho inicial desse ensaio, onde se apresenta um conceito básico:

Por mando não se entende aqui primordialmente exercício de poder material, de coacção física. Porque aqui pretendemos evitar estupidezes; pelo menos as maiores e mais patentes. Ora bem: essa relação estável e normal entre homens que se chama mando não se apoia nunca na força, antes pelo contrário; porque um homem ou grupo de homens exerce o mando, tem à sua disposição esse aparelho ou máquina social que se chama força.

Nesse texto, o autor investiga a reiterada assertiva de decadência europeia que se fazia no tempo. É fundamental apontar que tempo é esse: ele escrevia nos finais da década de 1920. Então, emergências como as dos EUA e da Rússia recém bolchevique apoiavam certa histeria decadentista em uma europa que parecia cansada, mas que ainda teria energias para mais uma grande guerra.

Muito inteligentemente, Ortega percebe que Moscou e Nova Iorque não são o novo relativamente a Paris, Berlim ou Londres. Antes, saíram as primeiras das segundas, mesmo que se queiram ver diferenças quantitativas muito grandes. Percebe que a articulação mundial é imensa, desde o século XVI, o que constitui uma grande opinião pública conectada.

É engraçado para mim notar, a cada releitura de muitas a que me entrego, como o autor é terrível para os superficias e dados a modismos e lugares-comuns. É destruidor mesmo e agressivamente revelador de quanta coisa se chama de novidade mesmo tratando-se de coisas antigas. Apontar que a interconexão do mundo é imensa desde há muito devia fazer corar as gentes faladoras em globalização e outras tolices do gênero.

O meio a permitir essa grande unificação mundial não é tratado no ensaio mencionado. Parece-me que esse meio tem necessariamente que ser uma espécie de linguagem. E tal espécie de linguagem é a moeda, que é, ao mesmo tempo, portadora de um significado e medida de si e das outras coisas. É também mercadoria, porque é medida de si mesma. É signo, medida e mercadoria, o que faz dela uma linguagem especialíssima.

Precisamente a partir do século XVI, necessita-se de uma linguagem que sirva à acumulação mercantilista sem fronteiras e precisamente então a moeda metálica e, posteriormente a obrigação em papel, servem a tal necessidade. À medida que se aproxima o século XIX, fica mais evidente o caráter de mercadoria da moeda, algo que não entra na sua conceituação como uma linguagem.

Todavia, a  moeda mercadoria é uma tremenda ampliação da moeda signo de valor e, como mercadoria, ela impõe-se como o elemento de ligação por excelência, reforça sua função globalizante, para usar um modismo já meio gasto.

Um outro ensaio do mesmo livro, mais interessante que esse do título, chama-se Mandam as montras e é de maio de 1927. Nele, Ortega analisa o que pode indicar um período crematístico, ou seja, um em que o dinheiro – khrémata – manda. É bastante sagaz que o autor busque os indicativos dos períodos crematísticos, porque o fazendo evidencia a ocorrência de períodos não-crematísticos.

Ou seja, não é sempre que o dinheiro manda. E ele é o único poder social que, identificado, nos enoja, enquanto até a força bruta pode contar com alguma simpatia, diz Ortega y Gasset. A imensa verdade disso percebe-se na insistência com que o poder crematístico se dirfarça, pois ele é sabedor da repulsa que sua visão nua gera.

Hoje, o dinheiro manda no mundo. O dinheiro de oito, dez ou vinte famílias de banqueiros manda no mundo, manda nos recursos energéticos, manda nos recursos alimentares e determina onde e quando convém haver guerras. Manda em tudo que queiram mandar nos governos, deixando-lhes margens residuais para assuntos que não interfiram nos interesses dos oito, dez ou vinte.

Os governos mandam por exclusão, ou seja, naquilo que os donos do dinheiro não queiram mandar. Eles ocupam um campo residual e subordinado relativamente a cinco ou dez grandes casas bancárias alemãs, francesas, inglesas, italianas e norte-americanas. Eles são operadores imediatos dos sistemas de geração de débitos e recolha de impostos.

Isso não ocorre assim sempre, todavia, pois há ciclos. Nada obstante, os períodos de transição sempre reclamam do mando do dinheiro, mas nem todos o vivem realmente. Quer dizer, o mando do dinheiro não é efetivo em todos os momentos em que tal acusação se faz. Fica muito clara a percepção de não predomínio crematístico em alguns momentos se levarmos em consideração que o dinheiro esteve sempre nas mesmas mãos, mas o poder não.

Tomo emprestado outro trecho de Ortega y Gasset, muito esclarecedor:

Se os Judeus possuem hoje o dinheiro e são os donos do Mundo, também o possuíam na Idade Média e eram a escória da Europa.

Houve, na Idade Média, detenção do dinheiro pelos judeus e vontade de esconder-se, ao mesmo tempo, o que revela ausência de mando com presença de dinheiro. É bom lembrar-se disso, para não ficar refém de idéias fixas, tão perigosas que são.

Vive-se, hoje, o poder do dinheiro, e consequentemente de quem o possui, porque os possuidores também têm a possibilidade de mando a partir do discurso, ou seja, a sedução da opinião pública. O Mercador de Veneza tinha dinheiro, certamente, mas seus devedores tinham muito mais mando que ele. Quinhentos anos depois, o Mercador de Veneza tem o mando e não apenas pelo dinheiro: ele está às claras como modelo descoberto, ofertado e seguido.

Interessa notar a construção de uma base discursiva a permitir o pleno mando dos possuidores do dinheiro. E, claro, interessa apontar que os grandes detentores do dinheiro são judeus, o que não é qualquer acusação além de um fato objetivo. Essa construção discursiva evidencia-se na grande desculpa que é a matança de judeus pobres pelos alemães nazistas e na atual demonização de árabes islamitas.

O primeiro fato histórico serviu à perfeição aos grandes banqueiros judeus, muito embora não se possa dizer que tenha sido planeado por eles. O holocausto permite aos judeus em geral, e aos banqueiros em particular, reivindicar uma piedade eterna e obstar qualquer discussão que lhes seja inconveniente. O segundo fato, que hoje se vive e vê crescer, permite acabar ou minimizar sua imagem negativa.

Sim, o espírito de cruzada que embasa as atitudes dos EUA e dos países europeus é voltado contra a figura do radical islâmico. Essa figura é identificada àquela do árabe. O árabe islâmico – demonizado – é posto como a antítese do judeu. Portanto, por contraste, a demonização de uns é a homenagem de outros. Está pronta a base garantidora do mando do dinheiro, porque podem ter a opinião pública.