Há vários interlocutores condicionados por sistemas axiomáticos de matriz judáico-cristã com que tenho algum contato. Vez e outra, convidam-me ou insinuam o entabulamento de alguma conversa que será conduzida inexoravelmente para alguma coisa do velho texto da bíblia hebráica.

Uns dominam a axiomática derivada desses textos e alguma coisa de Aristóteles, além de terem sinceros propósitos conversadores, mesmo que cheios do final, ou seja, cheios previamente de verdades. Eles gostam essencialmente da conversa e devem achar bom o feed-back de lógica formal que não me é muito difícil dar-lhes.

Com esse primeiro tipo, converso de bom grado, evito os axiomas em si e fico pela laterais a saborear uma e outra operaçãozinha silogística em que conclusões fecham bonitinhas porque as premissas foram bem colocadas. Não ponho em causa as premissas, nem digo que afinal outras dariam conclusões também perfeitas.

Essas pessoas percebem mal que giram na regressão infinita ou, melhor dizendo, que evitam a regressão infinita como se fosse possível parar o infinito em apenas um dos lados.

Dia desses, meu interlocutor queria conversar sobre criacionismo e dizer que era absurdo o modelo do big bang – e tenho certeza que ele e eu ignoramos o Big-Bang na mesma e profunda medida – porque esta criação retrocederia ao nada.

Ainda pensei dizer-lhe que esse nada inicial era a mesma coisa que a Deidade inicial, estaríamos sempre e ainda com o modelinho causual aristotélico. Fôssemos com criação divina, fôssemos com Big-Bang, iríamos sempre tentar travar a regressão infinita num termo ou causa inicial. No fundo, era o mesmo, mas dizê-lo, assim sem mais, era apostatar e escandalizar o interlocutor contra que nada tenho.

Meu conversador indagava o que haveria antes do Big-Bang e isso não era armadilha intelectual, nem triunfalismo prévio do sujeito a gozar o esmagamento do outro por uma verdade pesada; era o dizer sincero de um homem preocupado com isso e disposto a encontrar alguém disposto à conversa e munido de algumas habilidades para o joguinho de causas, efeitos, exclusões.

Assim, ele fixava a criação divina, algo que não me escandaliza, nem me parece mais nem menos plausível que qualquer outra coisa. Mas, não digo isso, pelo menos a quem acho merecedor de respeito. E também não o digo a quem não acho merecedor de respeito, mas por razões diferentes, é claro.

O problema da criação é tão complicado que para mim é melhor posto como um não problema. Qualquer que seja a fórmula, ela é objetável pela evidente insinuação da regressão infinita, porque uma linha – e tempo pode ser precariamente visto assim – infinita não o é apenas num sentido, senão não seria infinita.

Se o sujeito tem fixação fetichista com começo, pouco importa onde o situe, mas importa logicamente que aceite um fim também. Como o fim não é aceite – nem na axiomática que crê numa parusia, posto que ela é fim num plano mas não no todo – o início tampouco é concebível: não há infinito só para um lado.

É claro que pôr um Deus ou o Big-Bang no início permite, para ambos, que se pergunte o que havia antes. Não é um Deus inicial que inibe a regressão, porque virá inexoravelmente a questão do que ensejou este Deus. Assim, no fundo, as duas proposições serão quase as mesmas, com diferenças de graus poéticos e públicos visados. Dá no mesmo, porque Deus ou Big-Bang, ambos podem ter ou não antecedentes.

Há, porém, outro tipo de sujeito conduzido pela axiomática religiosa, assim como outros conduzidos pelas variantes da religiosidade científica. Interessa-me o tipo conduzido pela axiomática judaíco-cristã que, ao invés de diretamente querer falar da criação a partir dos velhos textos genéticos quer transbordar seus valores vulgares a partir de frases feitas, de lugares-comuns, enfim.

Esse segundo tipo tem especial predileção por frases de efeito e especial aversão pelo pensamento um grau mais livre que a média do vulgo. É, basicamente, para não ficar a teorizar nem a colecionar exemplos muitos, o sujeito que gosta de dizer que política e religião não se discutem, que gostos não se discutem, que todo sujeito com mais de trinta anos torna-se conservador se não for burro, que um revolucionário acaba-se aos trinta anos e outras vulgaridades, tão comuns e aceites quanto tolas.

O colecionador de frases é o sujeito crente que as pessoas tendem a tornar-se ele e seus modelos e cheio de júbilo ao perceber um e outro caso que seriam gloriosas conversões próximas à mediocridade reinante e indicadora da normalidade a ser atingida.

Realmente, daria quilômetros de texto o estudo da satisfação do vulgo com o que ele acha oportunidades próximas de converter mais gente à vulgaridade. É a satisfação de quem antevê a conversão do que não compreende para o vocabulário escasso que adota, para o manejo de quatro ou cinco categorias imutáveis de moralidade de escravo, para a tendência ao linchamento e ao julgamento sumário.

O segundo tipo dessa gente caracteriza-se pela falta de autenticidade. São prosélitos da mediocridade, do conservadorismo que se quer disfarçar, da tendência à homogeneização pelo mais baixo, da inutilidade da liberdade de pensamento, do vale-tudo quando se tratar de manter-se a situação social.

Esta falta de autenticidade será revestida de uma mansidão de voz baixa e pausada que não revela conhecimento, mas cálculo frio de dissimulação da coleção de perfídias e baixezas que lhe suportam.

A tolice da frase feita deste tipo é não apenas tolice, mas um deleite de vingança. Os medíocres de todos os tempos e lugares vingam-se, e seu meio preferencial é vaticinar a estupidificação do que não aceitam não ser totalmente vulgar. É a raiva de tudo e todos não serem espelhos de si mesmos.

O homem excelente não se sente atingido por haver o vulgo: ele, talvez, lamente a vulgaridade, mas não a crê contra ele, nem quer ser prosélito do que é, para converter o vulgo. O vulgo, este quer e precisa que vulgares sejam todos.

Voltei, neste escrever, a Ortega y Gasset, como muitas vezes, sem achar que prodigalizo nesse retorno. O homem, referido aos valores, será nobre ou vulgar. Referido a si mesmo, será autêntico ou não autêntico.  

O segundo tipo que desenhei, em traços rápidos, é vulgar e inautêntico. Ele fala de valores moralizantes, o que equivale a falar de nada ou, no máximo, do que acha serem valores, a confundir subjetividades moralizantes e vontade mal disfarçada de homogeneização com valores.

O tipo não tem valores, tem apenas balizas e preconceitos de sobrevivência, recebidos de fora e assimilados sem pensar. Valores são categorias ontológicas e não são axiomas de matriz religiosa e tampouco anti-históricos.

O tipo está em desconformidade consigo próprio, é essencialmente inautêntico, porque insincero ao propor frases feitas e lugares-comuns. Ele não quer que essas tolices sejam modelos do homem excelente, ele quer que todos sejam ele, sem o dizer claramente. Ele proclama a tolerância sem acreditar em milímetro de tolerância e sem nunca ter pensado no que consiste isto.

Ele proclama que não há parâmetros e que gosto não se discute, o que é perto da máxima imbecilidade proponível e ao mesmo tempo não acredita nisso.

O segundo tipo, o axiomático inautêntico, nada discute, não tem gostos, tem raiva profunda e desejo de vingança profundo e fala mansamente. Ele é o tipo apto a vencer…