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Tag: Alemanha

O discurso dominador reivindica cientificidade: o caso da eficiência e austeridade germânicas.

Acompanho a evolução da crise na Europa, cada vez mais temeroso das consequências políticas que se anunciam. As consequências econômicas e sociais, estas são previsíveis: empobrecimento e recuo geral das condições de vida. Não será fácil lidar com elas, pois os recuos de gentes que chegaram a níveis elevados de vida e gozam de padrões altos de proteção social é traumático.

A crise só encontrará uma solução, que passa pela instituição da federação, na Europa. Ou seja, solução, se houver, é política antes de ser financeira ou financista. Os alemães e franceses não deveriam temer mais a federação – e a consequente diluição do poder político legitimado – do que temem a falência de alguns Estados e o consequente final da moeda única.

Na verdade, a falência de alguns Estados será pior para a Alemanha que para os falidos, na medida em que as exportações tedescas destinam-se maioritariamente a países da Europa. Ora, se esses países quebram e voltam a suas moedas originais, ficam praticamente impedidos de comprarem produtos alemães e franceses, com custos de produção no que restar do euro, ou seja, em moeda forte. Sabe-se que um euro reduzido a moeda de alemães, franceses, holandeses e belgas seria ainda mais valorizado que atualmente.

Daí, percebe-se que a competitividade dos países norte-europeus só faz sentido internamente a um espaço que usa a mesma e valorizada moeda. Se esse espaço diminui e os vizinhos subitamente voltam a suas desvalorizadas moedas, os virtuosos norte-europeus vão reivindicar sua competitividade frente a quem? À China, à Índia, ao Brasil?

Os virtuosos povos do norte da Europa convidaram seus vizinhos de mais ao sul a entrarem na festa; estimularam suas ganas aquisitivas; disseram-lhes que podiam e deviam aceder ao mundo mágico das BMWs e Audis; ofertaram-lhes crédito vasto e barato; levaram-lhes à megalomania da construção civil. Eles endividaram-se, obviamente, e seus governos endividaram-se, na sequência, para salvar os credores…

Os virtuosos falam, hoje, contra os endividados, como se não os tivessem convidado ao endividamento. Falam como se se tratasse da coisa mais evidente, amparada em alguma ciência econômica muito certa, empírica e previsível. Na verdade, fazem um obsceno discurso moral travestido de ciência econômica.

Isso não é propriamente novo, mas é alarmante no que tem de aposta redobrada em discurso envelhecido. E assombra que a coisa venha resultando até bem, que o discurso venha funcionando no seu objetivo mais escondido e mais perigoso, que é promover o sentimento de culpa da vítima, por uma suposta forma de ser, invariável e inevitável.

Falo, está claro, do mito da lassidão dos povos do sul europeu, dos mediterrâneos, latinos, ibéricos, itálicos, helénicos. De uma espécie de lassidão misturada com acomodação e desregramento e irresponsabilidade, a que se oporiam a tenacidade, a sobriedade, a laboriosidade, a honradez dos nortistas. Isso, digamos sem palavras meias, é um mito que só se pode repetir impunemente porque a ignorância histórica anda elevada na Europa, como por toda parte.

A perversidade maior disso é que os povos retratados passam a identificar-se nos seus retratos e assumem uma má-consciência, um sentimento de culpa quase, de culpa de serem algo que lhes disseram que são. Aqui e alí há gente mais lúcida e outros mais revoltados que escapam a essa prisão mental, mas a maioria está a pensar em círculos e segundo o modelo da inferioridade que lhes impuseram. Poucos lembram que a história é deveras longa, que há vários ciclos, que os povos sobem e descem.

Pouquíssimos lembram – até porque pouquíssimos leram – que há dois mil anos, mais ou menos, significativa parte dos escravos em Roma era precisamente composta pelos ascendentes dos atuais laboriosos alemães.  Que o patriciado romano chamava à região do norte da atual Alemanha, Dinamarca, Países Baixos a cloaca do mundo. Enfim, que há pouco tempo, a norte do Danúbio e a leste do Reno era a barbárie…

Os bárbaros enriqueceram, organizaram-se, saquearam o mundo, desorganizaram a Ásia nesse seu saque, destruíram a África, souberam apropriar-se de uma herança jacente helénica e latina. Não hesitam em, ao mesmo tempo, clamar por essa herança grega e romana e afirmar sua própria germanicidade, que seria o sopro revitalizante e energia fresca e original a fecundar a cultura. Isso é uma tolice racista como muitas outras. Uma mistura de racismo e moralismo com tintas de ciência de almanaque, divulgada como instrumento de dominação.

É estratégia inteligente, como são todas aquelas que visam a dominar mediante o convencimento do dominado de que ele está em uma situação natural. O dominado fica dócil ao dominador quando se convence que não há domínio, propriamente, mas a resultante natural de circunstâncias que lhes são próprias e imutáveis.

Ora, se um povo inclina-se à preguiça e à irresponsabilidade ele está previamente condenado! Mas, pensemos calmamente, é de levar-se a sério uma assertiva desse tipo? Claro que é profundamente leviano e mesmo destituído de qualquer sentido dizer que um povo tem as características tais ou quais, que lhes impõem um destino certo, assim em termos morais e maniqueístas, porque isso simplesmente é falso e destituído de qualquer rigor.

Os laboriosos e responsáveis alemães – para voltar aos exemplos históricos – eram profundamente irresponsáveis, violentos e pouco dados ao trabalho organizado há vinte séculos. Sim, porque não se pode dizer que um povo a viver sem leis estáveis, sem estradas e sem cidades, sem tomar banho, sem uma gramática codificada, sem literatura fosse o protótipo do que eles hoje afirmam de si mesmos! Eles, hoje, são a prova de que as afirmações de características imutáveis de um povo não passam de falácia superficial. Eles mudaram em quase tudo e quase nada, excepto pelos banhos, é claro…

Escravos dos bancos deviam perceber que a realidade desmente o discurso. Ou, cliente falido não compra!

Nesses tempos de crises financeiras divulga-se que todos devem prestar culto ao ajuste fiscal, à redução das despesas do Estado, à elevação das idades de reforma, à redução das ajudas sociais, à austeridade, de forma geral. Ninguém, por outro lado, deve ousar lembrar-se que os bancos foram salvos da falência com dinheiro de todos, tomado compulsoriamente, por meio de impostos, pelos Estados.

Principalmente, ninguém deve aproximar-se da compreensão de que os Estados estão a agir como prepostos dos bancos e, não dos povos  que elegeram os agentes políticos. Todavia, a coisa é acacianamente simples e por isso mesmo enseja uma campanha mediática robusta, para afastar qualquer tentativa de pensamento claro.

Convém-nos pensar em que consiste uma falência bancária. O maior problema – dirão todos – são os depósitos dos correntistas e isso é absolutamente verdadeiro. Então, a motivação principal de evitar-se uma falência bancária é proteger os dinheiros das pessoas que os entregaram ao banco.

O erro – ou o assalto – insere-se precisamente na forma de defender os tais depósitos. Ora, toda teoria de mercados indica que as intermediações encarecem as transações. Fica óbvio que se o interesse primordial são os correntistas, a melhor forma de salvamento é pagar-lhes diretamente. Pagar ao banco para que este possa pagar ao correntista é, sem juízos de valor, a pior maneira de salvamento.

Se os governos são levados a tomarem as medidas piores e mais caras, deve-se investigar o que os fez agir assim. Quem pensar em comissões passadas de bancos para governantes estará no bom caminho investigativo. Há um íntimo contubérnio entre banqueiros e políticos governantes, em detrimento das maiorias.

É interessante notar que as teses do pessoal das finanças – banqueiros privados, FMI, monsieur Strauss-Kahn – são desmentidas pela realidade. Eles dizem e repetem à exaustão que países com riscos de dívidas devem adotar ajustes rigorosíssimos para recobrarem a confiança de quem lhes empresta dinheiro.

Mas, fato curioso, a Irlanda seguiu à risca os conselhos de adotar uma rigorosa austeridade. Adiantou-se a mostrar bom comportamento frente aos bancos, cortou imensamente despesas sociais e, a despeito de tanta obediência, não viu os juros de seus títulos caírem!

A Islândia, por outro lado, reagiu de maneira diversa. Depois de ir à falência financeira, banqueiros foram presos, o governo novo de centro-esquerda deu calote nos bancos e o que aconteceu? Recupera-se melhor que a Irlanda, que seguiu à risca a cartilha financista.

Atualmente, na Europa, esse receituário de austeridade de gastos sociais tem sua entusiástica origem na Alemanha. Não sou economista, mas creio que a postura alemã precipitará a Europa em um abismo. Eles querem defender a moeda comum, o euro, que é o marco alemão com algumas pitadas de franco francês. Querem defendê-lo porque seus bancos emprestaram em valores denominados em euros e porque convém ter compradores de produtos alemães aptos a pagarem em euros.

Todavia, o garrote financeiro nos vizinhos mais pobres pode ser ruim para a Alemanha. Ora, embora a indústria alemã seja bastante pujante, não é mais competitiva que a do sudeste asiático. O grande mercado das exportações alemãs é a Europa e os produtos germânicos, por melhores que sejam, não têm condições de invadirem o restante do mundo. Os chineses têm!

Evidencia-se o paradoxo. De que servirá empobrecer o restante da Europa em benefício dos bancos alemães, se isso prejudicará a própria indústria alemã? Se este fosse um país naturalmente rico, ou seja, rico em petróleo ou em outros minérios, seria perfeitamente compreensível tal estratégia. Mas, não é o caso. Trata-se de uma riqueza de base industrial que, inclusive, antecede à bancária.

De quê servirá à Europa – e à Alemanha – ficar com o euro se faltarem euros na Grécia, na Espanha, em Portugal, para se comprarem os desejados BMW? Ou alguém acha possível inundar a Índia de BMWs de 50.000 euros? De minha parte, acho complicada uma expectativa dessas.

Embora seja anátema falar-se em saída do euro, está claro que essa possibilidade cresce dia-a-dia. Inclusive, a evidência de que tal saída tem sido cogitada encontra-se nas garantias enfáticas de que não acontecerá. Na fala recente de Cavaco Silva a assegurar que não há hipótese de Portugal voltar aos escudos vê-se o quanto essa mesma possibilidade aproxima-se. porque ninguém se põe a negar enfaticamente alguma coisa absolutamente impossível.

A riqueza muita vez conduz à perda da habilidade persuasiva. Isso parece ocorrer com a Alemanha, atualmente. A ela convém que permaneça o euro e, portanto, convém que se esforce para convencer os mais pobres a mantê-lo. Todavia, age como se isso fosse uma verdade absoluta e indiscutível, projetando para outros o que é válido para ela. Então, age com arrogância, reputando tolas quaisquer considerações quanto ao assunto que não sejam aquelas estritamente alinhadas às suas verdades.

Um e outro recuo foi obtido com sérias ameaças francesas de rompimento com a moeda única, porque a economia francesa é bastante grande, embora menor que a tedesca. Todavia, com parceiros europeus de economias menores agem imperialmente e consideram qualquer reclamação como birra de crianças mal acostumadas. Isso tem precedentes históricos demasiado conhecidos…

Preconceito e arrogância alemãs.

É ótimo quando certas situções-limite são atingidas e os disfarces postos de lado. Quem se equilibrava com enormes dificuldades em uma fingida cordialidade, imposta convencionalmente, chega a um momento em que vê-se livre dela e diz o que pensa. O caso aqui é a discussão entre jogadores da equipe argentina e da alemã.

Os mais ricos farão triunfar sua versão, claro, mas isso não impede que algumas palavras sejam ditas, buscando-se o máximo de precisão. Os argentinos falam de futebol e falam deles próprios como grandes executores dessa arte. Enfim, eles adotam o discurso segundo o qual jogam melhor que os outros. Decorre desse pressuposto que eles acham os outros inferiores futebolisticamente.

Na verdade, muitos acham isso, os brasileiros inclusive, mas não o dizem com tanta veemência. Contém as afirmações na sua crença na superioridade técnica.

Os jogadores da equipe alemã, em contrapartida, acharam de dizer que os argentinos são desonestos, que visam a induzir os juízes a erros e que são mal-educados. Em um segundo momento a sinceridade transbordou e alargaram os comentários a todos os sul-americanos. Isso vai além de futebol, obviamente.

Para os argentinos deve ter sido duro serem postos no mesmo grande grupo de sul-americanos, que eles sempre julgaram-se algo à parte, na verdade. Mas, calha bem ao retorno à realidade perceber que na hora da verdade, para um alemão, pouco importa que alguém seja argentino, brasileiro, chileno, paraguaio ou qualquer outro sudaca. No fundo é um ser desonesto, ardiloso e mal-educado que visa a induzir os árbitros a cometerem erros.

Espero, embora evidentemente não possa adivinhar resultados, que a Argentina atue coerentemente com sua crença em ter o melhor futebol e massacre os germânicos no retângulo verde. E pouco importa-me que os tedescos sigam sua trajetória – longa – de preconceitos de superioridade, desde que vejam confirmada a sua inferioridade futebolística.

E espero que percam e continuem dizendo que os sul-americanos são um conjunto de desonestos, ou seja, que continuem não compreendendo de que se trata, enfim.

Autobahn, por Kraftwerk.

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Uma banda alemã, por razões óbvias. Tudo está no lugar em que aparentemente devia. No futebol, a mesma coisa, eles estão precisamente nos lugares certos do campo. Quando a equipe é relativamente talentosa, individualmente, como atualmente é, acontece o que se viu no jogo de hoje. Acabam o adversário.