Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A perda do senso trágico, a crença no remédio, ou sem passado e sem futuro.

Mansidão não é delicadeza, rebelião difusa não é coragem. Covardia não é sábio cálculo. Afagos gratuitos não são estima de iguais, direitos não são antíteses de obrigações. Ignorar o passado não é aceitar condição para que haja presente e futuro. Tudo isso são sintomas de algo fartamente abordado por Ortega y Gasset, a que sempre retorno.

Muitos viram a cara às constatações orteguianas, talvez porque a clareza dele agrida os superficiais que gostam de barroquismos e sentem ojeriza pelas abordagens aristocráticas e históricas. Menor número ainda é dos que leram e perceberam constatações similares em Unamuno, ainda que vertidas em termos quase obscuros e aparentemente místicos.

Ainda menor é o número dos que perceberam a advertência na arte narrativa ficcional, seja porque leem romances em busca de entretenimento, seja porque acham que romances são formas puras, duas formas de alienação próprias de todos os tempos, não somente do atual.

Agustina Bessa-Luis percebeu muito bem o que é a perda do senso trágico, que conduz ao viver o presente contínuo, isento de riscos, possibilidades, pleno de remédios sempre cinicamente negados mas sempre acreditados. Presente de discussões compartimentadas em escaninhos acadêmicos, científicos.

Mas, no que tange ao romance e à romancista também, sempre predominará numericamente o ver obra, ou como ficção totalmente abstrata, ou como relato fiel de acontecimentos com nomes de personagens trocados. As obras do romancista bom, como Agustina, não são, nunca, uma dessas coisas somente. Aliás, um romance a merecer este nome nunca é criação do nada ou reprodução de fatos.

Claro que ele não é, num autor bom, livro de recomendações ou de previsões, ou de recriminação ou de julgamento moral de um tempo e de suas pessoas. Ele, o romance, é antes de tudo história, por mais aparentemente atemporal que seja, por mais aparentemente abstrato e desumanizado que seja. Incluso, cabe aqui lembrar a riquíssima observação de Ortega de que as abstrações artísticas do início do século XX eram reação aristocrática meio pueril.

O tempo de hoje – que não sei precisar se começou há setenta ou cem anos, ou ainda mais – é um profundamente seguro de si, como a acreditar em progresso material e civilizacional imparável, a permitir ganhos de acumulação material e de direitos sem regressos.

Tempo de certezas amparadas em ciências ou pseudo-ciências, certezas absolutas quanto às afirmações e aos seus contrários, porque há ciência para todos os lados, porque ciência tem lado ou veio a ter, tamanha a incerteza certa a que dá suporte.

Parente próxima dessa certeza no progresso favorável é a crença em remédios para tudo, ou seja, em que as coisas, todas elas, têm solução. Chega a ser fetichista esta crença, porque chegou-se a ponto de reputar todas as coisas passíveis de remediação, o que reflete a adoção de juízo moralizante para tudo.

Acredita-se em remédio até para o que não se pode abordar em termos de conserto, porque não se cuida de acertos ou de desacertos, mas de coisas ou de opções ou de falta de opções. Aqui, percebe-se que a crença nos remédios é parente também da vontade de mandar nas outras pessoas, impondo-lhes os comportamentos estandardizados aceites quase unanimemente.

Esse estado de coisas, com este tipo de gente dominante, leva à incomunicabilidade. O sujeito que supostamente tem alguma inteligência e talvez alguma cultura formal, fala para ouvir o eco do discurso pré-fabricado que fez. Ele não fala para ouvir alguma coisa, fala para receber a confirmação da matéria de revista que também foi lida pelo suposto interlocutor.

Perguntas não são perguntas; são chances dadas ao interlocutor de deixar claro ter bebido na mesma fonte de padronização do perguntador. Os conversadores são duas paredes ou talvez dois espelhos a se refletirem e amplificarem. Esse ressoar de ecos tem o efeito de amplificar o que há de pior e de filtrar, deixando passar as partículas maiores e concentrar o discurso no seu núcleo.

O núcleo purificado de um discurso pequeno burguês neo fascista é aquilo que resulta da purga de tudo que fosse tolerância meio espontânea. Resta o escândalo padronizado, as sentenças moralizantes que devem tudo à liberdade perdida voluntariamente, porque de resto servia pouco ou nada…

Pós escrito breve: a menção a Agustina Bessa-Luís deve-se a ser escritora excepcional, que não se envergonha de apreciar história, não se envergonha de ser aristocrata e não se envergonha de escrever a explicar o que reputa passível de explicação. Mais um volume de Agustina alcançou-me, de surpresa, vindo pelos correios, fruto da imensa gentileza de um amigo inteligente que pouco fala.

Vale Abraão, de Agustina Bessa-Luís.

Antes do Vale Abraão, tive só um contato com Agustina Bessa-Luís, por meio das Conversações com Dmitri e outros fantasmas, que me ofereceu Miguel. O livrinho, o primeiro que li, deu-me a impressão de uma autora profundamente aristocrática. Sim, há formas aristocráticas de escrever. Não necessariamente melhores que outras, nem, tampouco, relacionadas apenas ao pertencimento social que o qualificativo sugere imediatamente.

Não é, como sabem todos que pensaram, uma questão de dinheiro. É moda justificar-se e não o vou fazer. Não é frequente explicar-se e isso tentarei, porque fui assaltado por uma paciência meio rara e porque não quero induzir más percepções, assim logo de início. Não se trata de antiguidade daquele dinheiro referido no primeiro período, embora, sim, trata-se de antiguidade.

De antiguidade percebida como a possibilidade de afastar ou aproximar a lente do quadro. E de ter passeado a lente por todos os quadrantes, tantas vezes, que todos eles tornam-se familiares e trivial o deter-se em um detalhe, como o afastar-se deles todos e olhar o quadro de longe.

Li, em alguma revista, que Freud teria escrito o seguinte: Eu me surpreendo ao constatar que minhas observações dos pacientes podem ser lidas como romances. De minha parte, surpreendo-me um pouco ao constatar que Freud tenha sido tão sagaz, irônico e provocador, com uma observação destas, somente para dizer o óbvio. Um homem inteligente e cônscio dela tinha que dizer que a vida imita a arte de uma maneira aparentemente inocente, até porque o óbvio é o mais difícil de dizer.

E ele estava certo, uma coletânea de relatos clínicos pode ser lida como um romance, mas o inverso não é verdadeiro. A vida imita a arte…

Agustina é fina psicóloga, tanto das mulheres, quanto dos homens. De certa forma, o Vale Abraão é uma colecção de casos clínicos que duram uma vida e ligam-se a outras vidas já terminadas, muito intimamente. E ligam-se a vidas vindoiras, o que é psicologicamente uma expectativa de poder e, historicamente, quase um não conceito.

O livro tem as insinuações dos grandes autores, que só resultam bem neles. Insinuações claras, de Ema, de Carlos, de Bovarinha. Um amante dos jogos de palavras sai-se mal, se prender-se ao fácil de dizer que é, sem parecer. Nem parece, nem é. Aliás, parece-se com Flaubert – não no texto – parece-se com a conhecida frase Madame Bovary sou eu. Ema não é Bovary, ela é uma mulher que não foi adúltera dos finais do século XIX; ela foi uma mulher que seria toda se fosse homem, no último quarto do século XX.

 Minha primeira sedução, como sempre, é a historicidade; é descobri-la como inevitável. Ela muda de cores, conforme seja urbana ou rural, proprietária ou trabalhadora, refém de modas rápidas ou lentas, detentora de culturas formais ou não.

O tempo cronológico, neste romance, foi apontado uma vez: ele começa nos antecedentes dos Cravos. O tempo que os sucede é louco, teria que trazer novos impostores, que fazer suas justiças, que mudar os insignificantes por outros insignificantes. Há quem o perceba, ao tempo, e há quem seja levado por ele. A maioria vive o contínuo, que é o real, mas outros servem-lhe o prato da inadequação, porque ele é mais lento ou mais rápido conforme circunstâncias muito específicas.

Bastaria dizer que não há Bovary a matar-se com arsénico, para uma simples diferença. E a ação ocorre precisamente em uma ruptura que, de certa forma, pode ser vista como uma transição acelerada para uma cultura mais urbana. Talvez fosse mais preciso dizer uma penetração rápida de um espaço rural por uma cultura neo-urbana.

Ema morre acidentalmente e isso não é pouco. A época dela não a mataria, porque era de louca permissividade. Não alguma permissividade que aceite a diferença, mas que tem mais que fazer, o que significa buscar ganhar dinheiro e ostentá-lo da maneira mais vulgar possível. Ou seja, nem os estabilizados, social e economicamente, nem os ascendentes tinham tempo para o escândalo. Os primeiros, nunca o estimaram, os segundos só se ocupam dele quando totalmente inertes.

Não há piores épocas para quem quer viver plenamente, sem saber a que isso corresponda exatamente, que as de acelerações e rupturas. Sim, porque embora tudo fique como está, no fundo, tudo muda, aparentemente.

Paiva não se afasta de Ema. E não o faz porque sabe que a aprisiona e a ama. É diferente de não o fazer porque teme o escândalo. Não haveria mais escândalo na ruptura que na manutenção da ligação repleta de verdades meio-sabidas. Ema, por seu lado, não se separa de Carlos; e não é porque receie perda financeira ou escândalo. É porque está presa, sempre esteve…

Conversações com Dmitri e outros fantasmas, de Agustina Bessa Luís.

Já faz uns dias que terminei de ler Conversações com Dmitri e outros fantasmas, mais uma oferta preciosa de Miguel. Antes, nada tinha lido de Agustina Bessa Luís, embora me recorde de ter visto um e outro volume da autora. É facílimo e seguro de recomendar, porque é um bom livro. Despertou-me imensa curiosidade pela obra de Agustina que, andei pesquisando, é muito vasta.

Essas conversações são contos, o último um conto grande, quase uma pequena novela. Têm algo que me lembrou o chamado realismo fantástico, qualificação inexata que tem servido para a obra de Garcia Marquez. Inexata pela inexatidão de todas essas tentativas de apropriação de um estilo por uma ou duas palavras e também porque não há mesmo proximidade com aquilo que ensejou a utilização desses nomes.

Todavia, assim pareceu-me. Talvez mais herméticos que fantásticos. Diretos e econômicos de palavras e explicações para situações aparentemente inusitadas. Aparentemente porque o inusual pode ser um efeito estilístico obtido pelo autor, que trata na verdade de coisas absolutamente triviais.

Outra coisa chamou-me bastante a atenção: a elegância sóbria da escrita. Aqui, convém apontar algo que não deve ser tomado na conta de estabelecimento de relação de causa e efeito e a advertência não é inútil, porque é fácil interpretar o que segue erroneamente. Trata-se da facilidade de perceber-se a extração social da autora. Ela é nobre e culta.

Ser-se de origens nobres ou plebéias não está na origem do bom escritor, nem do escritor excepcional, bastando lembrar de Saramago. Ter cultura formal ampla já é quase um presuposto, mas também não depende necessariamente das origens sociais. O caso é que se podem perceber as origens do escritor bom.

Não é uma questão da elegância do texto – insisto que isso não depende de origens – mas de um estar-se à vontade com certas descrições e abordagens. De ser natural e sem afetação na utilização de personagens de todos os tipos e origens sociais, geográficas e históricas. De manejar sem cerimônias mitos e referências verdadeiramente eruditas e estórias de memórias pessoais a envolverem, inclusive, diferenças sociais profundas.

Enfim, ela, Agustina, é uma autora a ser vivamente sugerida. Eu, de minha parte, aguardo também sugestões de outras obras dela, que são muitas e não sei qual escolher.