Isso foi anistiado pelo STF.
No regime ditatorial que houve no Brasil, de 1964 a 1985, agentes do poder público sequestraram, mataram e torturaram cidadãos. Essas condutas eram ilegais até em face das leis então vigentes e foram praticadas em substituição a qualquer rito de investigação, processamento e julgamento aplicáveis.
Em 1979, o regime político ditatorial fez passar no Congresso Nacional a lei nº 6.683/79, chamada lei de anistia. Interessa transcrever o artigo 1º e os parágrafos 1º e 2º dessa norma:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
O sistema constitucional brasileiro desconhece a inconstitucionalidade de normas produzidas antes da constituição vigente. É uma questão de coerência lógica. Todavia, existe outra maneira de aferição de compatibilidade de uma norma pre-constitucional com a constituição superveniente. Então, as normas anteriores à constituição, ou são recepcionadas pela nova ordem, ou não são.
Para julgar a recepção – conferindo os mesmos efeitos práticos de uma ação declaratória de inconstitucionalidade – existe a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. Por meio dela, pode-se obter uma declaração do supremo tribunal federal sobre a compatibilidade de uma norma anterior com a constituição superveniente.
A OAB, por meio do excepcional trabalho de Fábio Konder Comparato, propôs uma ADPF para que o stf se pronunciasse sobre a compatibilidade, a recepção, em termos jurídicos, da lei de anistia com a atual constituição. Compatibilidade muito improvável, pois a Constituição veda a tortura e a considera crime imprescritível.
O supremo tribunal federal julgou a lei compatível com a atual Constituição, em atitude infamante e indigna de juízes que se supõem conhecedores da lei, da filosofia do direito e que, ademais, são os maiores magistrados do país. Foi preciso julgar contra a técnica e com amparo nas inúmeras variantes do discurso que, no fundo, nega a história e estimula a violação das regras. O stf agiu em desconformidade a qualquer coisa que se assemelhe a um poder judicial, porque alinhou-se à noção de que regras são desprezíveis.
A lei controvertida anistia os crimes políticos e aqueles conexos a eles. Aqui, deve-se ir ao ponto central, que é a conexão entre crimes. São conexos os crimes que têm a mesma motivação, que são praticados pelas mesmas pessoas e que são praticados nas mesmas circunstâncias temporais e geográficas, sendo as provas de uns dependentes das de outros.
Os crimes praticados pelos agentes do estado não são conexos àqueles praticados por quem resistiu ao regime ditatorial. Ora, crime político é aquele cuja motivação é atingir um regime político e não pode ser conexo aos crimes praticados com a motivação de defender esse mesmo regime. A diferença de motivação é de uma obviedade que leva a pensar que os defensores da conexão não agem por estupidez – que seria muita – mas pela histórica leniência conciliativa brasileira.
Os motivos de quem age contra ou a a favor de uma ordem política são tão diferentes quanto vinho e água. Uma interpretação correta leva à conclusão de que inexiste conexão entre tais delitos e que, consequentemente, a lei foi escrita por juristas incapazes que, embora querendo anistiar tudo, fizeram um texto que anistia apenas quem devia ser anistiado. Mas, nestas plagas, a pressa e a insuficiência intelectual são premiadas depois. As mesmas inclinações chancelam as intenções iniciais, a despeito do erro formal e material.
A mensagem – agora originada do maior tribunal do país – é que a história é desprezível, o direito é desprezível, tudo se resolve com algum dinheiro e quem quiser fazer de novo sinta-se à vontade, que somos um povo cordial que tudo resolve. Enquanto isso, locais que têm tribunais respeitáveis, como a Argentina e o Uruguai, proclamam a invalidade de leis desse tipo – de auto-anistia – e punem quem sequestrou, matou e torturou cidadãos em nome do Estado.
Triste e vergonhoso.
Sou aluno de Direito da UFPE e eu fico envergonhado em ver a repercussão inexistente desse julgamento na faculdade. O Direito continua sendo tratado apenas como meio para o enriquecimento, são poucos os que o transformam em um meio de melhora social.
Na faculdade, aprendesse o Estado Democrático de Direito junto com todos seus dogmas e fundamentos, no entanto quando o orgão máximo de aplicação do Direito nesse Estado se nega a observá-los, fica o sentimento de profunda desilusão, pois, por mais que seja clara a ineficácia desses princípios, sempre se espera que os profundos conhecedores, senhores de notável saber jurídico, sejam coerentes e não sejam levados por outros interesses que não a plena observância da lei.
O mito da igualdade perante a lei, caso fosse observado, seria talvez uma das poucas esperanças de rápida mudança social. Com essa votação, fica visível o longo caminho a percorrer.
Ouvi agora pela manhã a notícia deste julgamento no Bom Dia Brasil, jornal do PIG. Duas coisas e chamaram a atenção: a primeira foi quando o jornalista ao explicar o objeto do julgamento disse “o fim da lei da anistia pretendia julgar e punir os militares e os grupos civis que torturaram e mataram no período da ditadura”, ficou ridiculamente claro que o jornalista quis vincular a tortura aos grupos civis.
A segunda coisa que me chamou a atenção foi o fato de não ter o mínimo sinal desta notícia no site do jornal.
Conheço o PIG e tenho idéia do que é capaz de fazer, mas sempre me surpreendo com a forma escancarada com que defendem seus propósitos.
Realmente não temos mais a quem recorrer no nosso país. O STF corrobora com os absurdos da ditadura e muita gente faz questão de esquecer e tratar o assunto de forma banal. Faz vergonha.
Eu espero que Fábio Konder Comparato não morra brevemente e leve o caso à Corte Americana dos Direitos Humanos que, provavelmente condenará o Brasil.
O país é signatário de muita coisa que visa exatamente a tratar esse assunto seriamente, como fizerem a Argentina, o Uruguai, o Chile, o Peru…
Claro que a Corte de DH tem pouco ou nenhum poder de sancionar um Estado, mas deixa evidente a situação ridícula em que esse Estado mantém-se.
Aguardo por notícias…
A Corte é primorosa no que concerne à condenações de cunho moral e social. Geralmente são eficazes.
Perdemos a oportunidade de vivenciar um pouco de seriedade. Presenciamos a vergonha instituída e chancelada pelo judiciário faz de conta deste país.
Imagino os discípulos de Themis, notáveis saberes jurídicos personificados, ilibadas reputações transvestidas em impecáveis mantos com o dizer: “Quem quer direito?”, parodiando Senor Abravanel.
Uma beleza…
Nao foi surpresa para ninguem esta posição do STF, ele produziu o que ele é!!! Um Supremo de faz de conta…..na hora de avançar ELE da dois passos atrás.
Seria o mesmo SUPREMO que com uma responsabilidade nas mãos de declarar o fim da ESCRAVIDAO….decidiria que NAO, pois, iriamos ter uma grande convulsao social… A ECONOMIA iria entrar em calapso e, coisas assim.
Este mesmo SUPREMO que solta e protege banqueiro bandido…só “avança” para tras. vicheeee…….Vamos demorar, ainda uns anos, para termos um Supremo de verdade.
Tens toda razão, Monte. Não há com que se surpreender. E apontaste o que são os motivos que eles sempre declaram para acovardar-se nas grandes ocasiões. Pode haver reações, pode haver comoção social, pode haver riscos para a economia e por aí vai.
E sabe-se que nenhum desses riscos está realmente presente. Nos países mais sérios, Argentina e Uruguai para ficar em dois, fez-se coisa muito mais radical e não houve qualquer comoção social.
Aqui, é acordo mesmo e aposta no esquecimento.
Andrei,
O stf mostrou-se o ordenador da alma traumática nacional. Nosso espírito conciliatório sempre sendo conservado…
Este país é um vexame.
PS: Andrei, tomei a liberdade de reproduzir o texto no acerto de contas.
http://acertodecontas.blog.br/artigos/supremo-tribunal-federal-opta-pela-infamia-e-considera-lei-de-anistia-aplicavel-a-tortura-praticada-por-agentes-publicos/