Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Seu Otávio, o Duque de Caxias e o forno de microondas.

Um texto de Sidarta.


Seu Otávio, já idoso e aposentado como coletor de impostos de Finismundi, dava sempre uma passada no bar Flor de Liz nos fins da tarde de volta da padaria onde diariamente ia comprar o pão do jantar.

No bar, passava os olhos nos jornais que já tinham chegado das grandes cidades do Nordeste, tomava uma cerveja “mais para natural do que para gelada” e comia uma ou duas empadas ou umas coxinhas de galinha feitas pela mulher do dono do bar (sempre teve a curiosidade de conhecer a cozinha do bar, mas, educado como era, sentia-se constrangido em fazer o pedido, coisa que poderia lhe ter evitado uma boa encrenca digestiva algum tempo depois).

Como um grande apreciador de livros de história, tinha recebido do seu filho mais velho, que viajara aos Estados Unidos recentemente, um livro em inglês com o resumo biográfico da história do que o autor americano considerava os 100 maiores generais ou líderes militares da história.

O seu filho tinha trazido também dos Estados Unidos a mais nova maravilha da cozinha americana nos fim dos anos 1960’s, um forno de microondas, um equipamento fabricado pela GE, grande e pesado e que exigia um potente transformador de 220V para 110V, a sua voltagem original de trabalho nos Estados Unidos, transformador esse projetado e feito por Manuel do Carburador (durante o dia), ou Tenente Manual (durante a noite – era o chefe da guarda noturna de Finismundi) e que cabia em uma caixa de madeira de garrafas grandes de cerveja e zumbia alto quando era ligado.

Leu o livro avidamente mais de uma vez e descobriu que eram citados na antiguidade 18 notáveis líderes militares, dentre outros, Alexandre, o Grande, Júlio César e Átila, o Huno.

Admirador inconteste de Napoleão Bonaparte, buscou a biografia do seu ídolo na parte dos generais da Era Napoleônica e foi aí que começaram as suas frustrações: a biografia de Napoleão Bonaparte escrita pelo autor americano só tinha míseras duas folhas descrevendo fatos menores das conquistas do grande imperador francês: só podia ser ignorância ou inveja desse escritor americano em não colocar Napoleão como o maior líder militar da história do mundo.

Para completar ainda mais o insulto aos realmente notáveis, o autor do livro louvava como líderes militares mundiais três indígenas americanos, dentre eles, Nuvem Vermelha e Cavalo Doido.

Continuou tentando entender o contexto e a idéia do escritor ao selecionar os seus generais, e se deu conta de que o livro não falava nem na Guerra do Paraguay, onde se destacou o Duque de Caxias como comandante das tropas brasileiras.

Isso era demais; há alguns anos já vinha desconfiando de que os americanos tinham minimizado a participação dos combatentes brasileiros na segunda guerra mundial e iria exigir que quando esse livro fosse eventualmente traduzido para o português fosse acrescentada uma resenha biográfica decente do Duque de Caxias e um ou dois parágrafos sobre a guerra do Paraguay.

Carregava sempre no bolso, ao lado de um monte de cédulas para pagar as suas despesas em dinheiro, uma cédula mais antiga que continha a efígie do Duque de Caxias, já fora de circulação, para mostrar de vez em quando aos amigos que o Brasil tinha herói militar.

Ao terminar de ler várias vezes o livro americano sobre os 100 maiores generais ou líderes militares da história, e de formar uma opinião sobre o critério de escolha e sobre a parcialidade evidente do autor, convidou alguns amigos mais próximos para se reunirem no Flor de Liz, na sexta-feira um pouco mais cedo para que ele, Seu Otávio, pudesse relatar sobre o que tinha lido mais recentemente e sobre como pensava que os americanos estavam distorcendo a história do Brasil.

Um evento desses puxava mais cerveja, empadas e coxinhas do que o habitual e, como Seu Otávio foi quem convidou os amigos, a bebida e a comida correram soltas por conta do conferencista.

Lá pelas 9 da noite, alguns já mais alegres do que o conveniente, saíram os primeiros protestos verbais de “isso é mesmo coisa do imperialismo americano”, tendo um ouvinte também criativo escrito em uma tira de papel higiênico a frase “Yankees GO Home !!!” e pregado a faixa na entrada do bar.

Perto das 10 da noite todos foram embora para as suas casas e Seu Otávio começou a sentir a barriga “ferver” ainda no caminho de casa.

Conseguiu segurar a barriga até sair da vista dos amigos, mas aí as empadas e as coxinhas de galinha da mulher do dono do bar mostraram o seu poder desvastador: Seu Otávio já chegou em casa com a cueca e a calça branca do terno completamente sujas e correu para o banheiro chamando a sua esposa para ajudá-lo na situação constrangedora em que estava.

Lembrou-se de avisar à esposa do dinheiro para as despesas que tinha em um dos bolsos da calça, mas se esqueceu da cédula com a efígie do Duque de Caxias em outro bolso.

A calça foi logo lavada no tanque de lavar roupas e o dinheiro das despesas cuidadosamente limpo na pia do banheiro.

Terminada a operação da vigorosa lavagem da calça de Seu Otávio no tanque de lavar roupas, a esposa dele teve a genial idéia de secar logo a calça dentro do forno de microondas: em teoria a água evaporaria logo, mas o tecido não se inflamaria.

O esperado foi mais ou menos o que aconteceu; a calça secou logo e a cédula com a efígie do Duque de Caxias, que estava em um dos bolsos, secou também… desaparecendo completamente a imagem do Duque de Caxias do papel moeda impresso há anos.

Ao se lembrar do descaso do autor americano do livro sobre os 100 maiores generais ou líderes militares da história, da completa omissão do Duque de Caxias e da Guerra do Paraguay, e olhando de soslaio para a marca GE impressa no forno de microondas, concluiu que os americanos estavam mesmo por trás da iniciativa de acabar com a memória dos heróis brasileiros e de nos vender produtos programados para destruir o patrimônio e para sabotar a cultura dos brasileiros.


E pensou: “eu devia já ter ido dar uma olhada na cozinha do bar Flor de Liz; vai ver que os americanos estão também sabotando a higiene das comidas no intuito de alguma multinacional deles comprar o bar e logo subir o preço da cerveja, das empadas, das coxinhas, cobrar para se ler os jornais e ainda botar uma bandeira americana em cima de cada mesa do bar… e dar desconto para quem souber recitar as biografias de Cavalo Doido e de Nuvem Vermelha.”


3 Comments

  1. Andrei Barros Correia

    Vou sucumbir à má abordagem, que é a identificação. Se eu lesse um livro que exalta Touro Sentado e Montgomery ao tempo em que dedica duas folhas ao Corso e nenhuma a Zukhov e Ghiap, teria a mesma reação.

    É um complô norte-americano, evidentemente!

    Belo texto, Sidarta, parabéns.

  2. Sidarta

    Obrigado pelos parabens!

    Lembro-me de que ouvi dizer que junto ao tal forno de microondas (imenso e muito reverenciado) vieram dos USA para a casa de Seu Otávio, de navio, uma radiola estéreo, uma geladeira também muito grande e alguma mobilia em boa madeira.

    Os móveis eu acredito que eram inocentes, mas a geladeira e a radiola provocavam frequentes resfriados (ficavam abrindo o dia todo no inverno de Finismundi para ver o que tinha dentro e tomavam um jato de ar frio) e também invasão de cultura americana pelos ouvidos, pois os únicos discos estéreo que vieram com a radiola eram de rock and roll e, de tanto ouví-los, a família passou a ter deficiência auditiva e a falar muito alto.

    Quanto a Touro Sentado… já está no livro americano dos grandes generais e não há como tirá-lo. Quero ver o que vão inventar para colocarem lá também o general Patraeus, que está perdendo a guerra do Afganistão da mesma maneira que antecessores seus perderam a do Vietnam para Ghiap e Hitler perdeu Berlim para Zukov.

    Abração.

  3. andrei barros correia

    É aquela estória de drink coke and eat fries. Dito rapidinho…

    Tenho até dúvidas, Sidarta, da inocência dos móveis norte-americanos. Antes deles, havia uns austríacos, tão bons de se acomodar…

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