Minha mãe esteve por trinta e cinco dias em Montpellier, na casa de uma grande amiga dela. Esta amiga tem cidadania francesa e, recentemente, teve diagnosticado um câncer de mama. Sorte imensa dela que se encontra em França e não nesta selva mal disfarçada que é o Brasil.
À amiga foi assegurado por um médico – ou uma médica, sei lá – que nada tinha, há um ano, por ocasião da realização de uma mamografia, em uma clínica bem conceituada do Recife, daquelas cujos donos frequentam colunas sociais e que, estranhamente, também frequentaram os bancos da faculdade de medicina e fizeram um juramento hipocrático.
O Dr. Pierre Bertrand – cancérologue et chirurgien général – não é o protótipo do sábio monoglota de província, aquele ser cuja única preocupação é o dinheiro que ganha e que ganharia ainda que não se preocupasse. O Dr. Bertrand, cuja frequência em colunas sociais desconheço, embora qualquer um possa conhecer o seu currículo no Google, é daqueles que olham uma imagem radiográfica antes de lerem o laudo do exame.
O médico diagnosticou a doença da amiga da minha mãe imediatamente, na imagem da época em que o profissional estrelado brasileiro disse-lhe que não havia com que se preocupar. E iniciaram-se os tratamentos, em um centro médico de referência, totalmente à custa do Estado Francês, incluindo-se auxílio psicológico e deslocações de casa ao hospital.
O Dr. Bertrand, além de gostar da poesia musicada de Vinicius de Moraes, fez o juramento hipocrático e esteve presente a todas as aulas do curso médico. Um certo dia, às 20:30, depois de muitas horas de cirurgia, ele teve a paciência e o interesse de ver uma mamografia da minha mãe, que acompanhava a amiga a uma das consultas.
Monsieur Pierre não tem qualquer obrigação legal de olhar exames de uma cidadã brasileira sem residência permanente na França, mas fê-lo! E pacientemente, com um cuidado que o cansaço não afastou; com o cuidado de um médico. E, até então, não se sabia que Monsieur Pierre gostava de Vinicius, nem se lhe tinha oferecido um disco do poeta, o que afasta a hipótese de que se tenha corrompido pela música brasileira. Afirmou que está tudo bem.
O nosso Pierre Bertrand – e não foi ele que me autorizou essa intimidade – conversa com os pacientes independentemente de serem eles pobres, ricos, franceses, estrangeiros, pretos, brancos, amarelos. Não lhes cobra qualquer coisa no serviço público, porque recebe do Estado Francês.
Conversa e trata deles, porque não se cuida aqui de fazer elogios da tagarelice, mas do profissionalismo de um médico competente que não pensa somente em dinheiro, algo que ele tem independentemente de ser presunçoso ou de chantagear o governo francês.
O que há de melhor no sistema francês, além das diferenças entre Bertrands e brazucas, são séculos de história e milhões de euros a mais. Dos séculos de história não vou ocupar-me, para não me estender demasiado. Basta lembrar que algumas sociedades separaram a cabeça do corpo do rei, um dia.
Dos milhões de euros convém falar um pouco, porque muita gente reproduz o discurso de que não falta dinheiro para a saúde pública no Brasil. Falta dinheiro, sim, como diz repetidamente o grande médico Adib Jatene. Só não falta para uma saúde pública ruim e de pouca abrangência, como querem as pessoas mais bem aquinhoadas que podem pagar por planos de saúde privada. Essas, vivem a repercutir o discurso de que o problema é de gestão e de salários dos médicos, discursos pueris, ambos.
O dinheiro que falta impede a universalização do atendimento de saúde com qualidade. Impede a expansão da rede, a pesquisa, a utilização de equipamentos adequados e atualizados.
O dinheiro que falta, por outro lado, permite os ganhos imensos de empresas financeiras que vendem seguros de saúde, de cooperativas de médicos que vendem esses mesmos serviços ruins, permite que os serviços privados sejam um grande negócio e permite que os médicos pensem segundo uma lógica de um serviço mercantil.
A sociedade, mantida em profunda ignorância e refém da urgência de viver e acreditar que a vida é a urgência de ter uma TV, não percebe que a solidariedade por meio de impostos e dispêndios públicos é forma muito mais barata de ter acesso a um serviço essencial que, de resto, é constitucionalmente assegurado a todos.
Muito oportuna essa sua postagem.
A pressa de alguns médicos em atender a mais pacientes no menor tempo possível os tem levado a que procurem cifrões nas imagens radiológicas em vez de se aterem aos sinais de doenças mais sérias.
Fico satisfeito com a informação do médico francês de que a sua mãe está saudável.