O serviço público brasileiro tem um fetiche-mor: a reunião. Ela não é, como pode parecer a princípio, uma necessidade, convocada à vista da utilidade de haver mais de um servidor público reunido, para resolver o que só se resolve coletivamente. Claro, às vezes, ela desempenha precisamente tal papel, mas é raro.
Ela não é, na maioria imensa das vezes, uma abertura democrática ou uma assembléia deliberativa. Envergonhada de não ser a assembléia, ela também não se quer o palco de uma comunicação vertical de decisão, ou seja, não aceita ser uma oportunidade de exposição, pura e simplesmente.
Ela tem todos os ingredientes do amor das aparências, do nome consagrado, da exibição narcisística, do discurso tão longo como vazio, do falso escândalo. Ela é, enfim, uma encenação que, como teatro sai-se mal. As personagens, mais ou menos livres de roteiros minuciosamente estabelecidos, fazem o improviso previsível da competição na eloquência oca. Perde-se tempo…
Poucas coisas são menos aptas a desaguarem em alguma decisão coletivamente construída que uma reunião deste tipo. Ou bem a decisão já está tomada e a reunião é apenas um nome e a ocasião do convocador para expo-la, ou bem não há decisões a se tomarem e será o palco do desfile de pavões de parcas penas.
Essa ociosidade, falta de resultados, o câmbio oportunista de posições e o amor do discurso eloquente e oco foram retratadas magistralmente por Eça de Queiroz, a propósito do Parlamento Português no século XIX, acho que n´A Capital, mas não tenho certeza. Bem pode ter sido e foi que Eça distinguiu o assunto e seus atrozes ridículos mais de uma vez. Herdamos isso com uma avidez de herdeiros que superam o falecido.
Nada é mais proibido em uma reunião que a sinceridade, seja do silêncio, do comentário objetivo ou da afirmação da desimportância dela. Nada é mais bem-vindo que a competição das mesquinhezas que se afirmam, solenes, em discursos que se julgam merecedores de publicação. Tudo implica o recurso ao argumento do interesse público, embora só se trate de interesses individuais pequenos e rivais.
A reunião no serviço público atende, basicamente, a duas inclinações: primeiro, o hábito que as recomenda; segundo, a oportunidade de exposição da personagem afirmativa e participativa. Essa segunda inclinação merece algumas palavras. O serviço público joga no tabuleiro da pequena política corporativa, aquela que engrandece o mérito de não o ter, ou de te-lo pela reinvenção da roda, ou ainda de apenas afirma-lo em círculos.
O mérito é a abstração que mereceria quilos de papel profanado por tinta. Poucas coisas são menos percebidas e mais faladas que ele. A redenção estaria no seu reconhecimento, como se isso nunca houvesse ocorrido e como se não continuasse a não haver, em iguais proporções. Dele se fala como se nunca tivesse sido tomado como critério para algo, no serviço público.
Mas, esse critério mágico, ao tempo em que é incensado e cantado em maus versos, permanece esquivo e inatingível, porque assim tem que ser. A meritocracia é o Reino de Deus do serviço público; é a contradição em termos perfeita, porque pode ser atingida em vida!
O triunfante meritocrático é a figura perfeita do intrigante de longos discursos de reuniões e de pequenos pedidos individuais. Seu mérito é rotina de carreirismo de teto baixo, que se afirma intrépido e disposto a sacrifícios. Tudo estaria bem se o discurso casasse com a prática e o sacrifício pelo público não visasse a interesses privados.
O mérito, como a Graça, não se invoca; ou se tem, ou não se tem. O mérito pequenino que se proclama na reunião vem travestido de esforço, sacrifício e humildade. É instrumento de pequenas ambições, reconhecidas como válidas pela platéia de atores, que também valida os meios.
Olhar para o relógio de pulso é aceito. Pode ser um tanto descortês, se o espetáculo estiver no início, mas em geral é aceito.Objetar dentro da lógica dos sofistas em aparente conflito, também é válido. Que o espetáculo está mal encenado, vá lá, é ríspido mas não rompe as regras. Que o espetáculo não devia acontecer, é proibido, porque não se pode insinuar sua inutilidade.
A lógica a presidir essa encenação de mau gosto parece a tautologia que seria o desejo de protagonismo da prima-donna do teatro de fantoches! Em tal situação, todas as aspirantes combateriam o inexistente combate, guiadas todas pelas mesmas mãos. Pois é o que acontece na tal reunião no serviço público, um combate falso de vaidades expressas em discursos tão longos quanto pedantes, tudo guiado previamente e de desfecho previsível…
Caro Andrei, participo de muitas reuniões no serviço público e honestamente, nunca vi melhor descrição delas em toda minha vida. Seu texto está muito bom.
Obrigado, Davi.
Tenho a mesma má sorte de ter que participar dessas encenações e a última delas encheu-me o saco de uma forma diferente.
Não consigo mais esconder certo desprezo resignado e obediente das convenções. Não consigo nem mesmo sentir algum entusiasmo para uma e outra objeção.