Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Razão, lógica e o crime continuado de Descartes.

O homem propôs que pensa, logo existe. A proposição inspira genialidade – e não é mesmo alguma tolice – mas deve-se vê-la ao contrário, ou em suas outras formas possíveis. Ela implica não apenas um só sujeito cognoscente, mas apenas o sujeito cognoscente. Ela é uma ontologia sem objeto.

Assim, só o sujeito existe, o que torna o problema da existência um não-problema. Essa maravilhosa ontologia racional é a negação pura e simples do ser, portanto, uma vez que confunde pensar – sem dizer o que seria – com ser. Desta forma, o objeto, que é o objeto a que se reporta o pensar e que, por sua vez, define o ser, não existe!

Se eu existo porque penso, o que não pensa não existe e, portanto, meu pensamento, ou é sobre nada, ou é sobre mim mesmo. Como seria estranho que meu pensamento – que define meu ser – dirigisse-se a nada, tenho que admitir que só pode dirigir-se a mim mesmo. Então, sou sujeito e objeto e o resto é nada.

Todavia, se o resto é nada, porque não pensa e consequentemente não existe, meus problemas são pouquíssimos. Não preciso, em tal modelo, pensar o tempo, por exemplo, pois ele não existe, já que não pensa. Penso eu e só posso pensar sobre mim, já que todo o resto é não existência.

Isso, que vai enunciado brevemente, não é lógica, é racionalidade. Por isso, é dramático, mas não é trágico! A razão é dramática, é aprisionadora, a lógica não no é. A racionalidade aprisiona, mas não é inescapável, ao passo que a lógica, sim, o é.

Descartes trabalhou, quisera-o ou não, para o jesuitismo. Sua existência a partir do pensar não é humanismo, senão homenagem a uma existência recebida na forma de participação mais ou menos deformada no pensar criador, esse sim o pensar absoluto, que não precisa de objetos cognoscíveis, porque os teria criado.

O transplante do pensar absoluto para as criaturas é concepção que oferece obstáculos intransponíveis. O pensar dos seres que o receberam incompleto do pensador-criador não pode ser o mesmo do dador, senão estariam todos divinizados e seriam criadores. Para tentar evitar parte do paradoxo, aceitou-se divinizar os homens, parcialmente, mas não se aceitou fazê-los criadores.

Ficou-se pela metade. O homem pensa porque recebeu a faculdade do pensador-criador; existe porque pensa, já que existe pelo que tem de comum com o criador, e fica impossibilitado de pensar qualquer coisa, porque nada existe, já que nada além dele pensa. Claro, pode pensar no criador, mas tampouco o pode conhecer integralmente, porque ele é, ao final e ao cabo, insondável.

Um homem assim concebido vai buscar saída para seu pensar sem objeto possível. Vai tentar tornar-se ele também criador, mas de criaturas não pensantes, o que não resolve o problema, já que as suas criações não pensantes não existem, porque… não pensam! Ele está condenado ao círculo, à prisão sucedida por nova prisão.

10 Comments

  1. Sidarta

    Andrei, muito bom o seu texto!!!

    Em 1200 – 1212 DC um japones chamado DOGEN foi para a China estudar budismo e entendeu mais ou menos o que voce está falando sobre a inexistencia das pessoas , dos pensamentos e das coisas. Deduziu que as coisas existem somente até cada pessoa morrer e, em sendo assim, não se pode pensar que as coisas existem.

    Dogen escreveu um livro chamado de SHOBOGENZO (algo como “evangelhos”) e estruturou a linha do budismo ZEN SOTO, uma linha de pensamento de origem budista, mas extremamente pragmática e despojada de todos os rituais, divindades, promessas, tributos etc de religioes de massa.

    O NIRVANA é a extinção do SAMSARA, o ansiar sem fim ou o pensar sem fim. Pode ser conseguido em vida, e aproveitado para ser ensinado aos outros (o que faz o Bodhisattva), ou deixado para ser conseguido na morte.

    Para os iniciados, o Zen Soto não preconiza a reencarnação nem lhe assegura que sua alma é eterna; também não diz nada sobre a alma.

    Penso que a racionalidade de Spinoza chegou perto de algumas visões de Dogen e até da negação da criação e da divindade suprema; só que Spinoza, judeu, não estava interessado em uma morte precoce nas mãos dos protestantes de Amsterdam e também era amigo de uns jesuítas…. e optou, como um Bodhisattva, por terminar a sua ‘A Ética” e retardar a entrada no Nirvana.

    Tenho aqui em casa um compacto do SHOBOGENZO em francês. Está às suas ordens.

    Grande abraço.

  2. andrei barros correia

    Prezado Sidarta,

    Primeiro, agradeço-te imenso a oferta do compacto do budismo chinês decifrado pelo japonês e afinal vertido em francês. Talvez, sem maiores conhecimentos prévios, me levasse a mais confusão que percepção.

    O que me parece muito inteligente nesta concepção, segundo o que disseste, é que afasta a herança ou, melhor dizendo, o caráter hereditário do pensar.

    Ou seja, não preciso estabelecer que meu pensar é algo recebido de um criador, como marca de participação nele.

    Posto isso, não preciso ter o pensar como critério definidor de existência, senão de possibilidade de conhecimento. Veja bem, possibilidade, não certeza.

    Existindo, assim, o que não pensa, poso pensar no tempo e posso, sem culpas, pensar que existem os gatos, que miam, embora não pensem exatamente como eu.

    Por outro lado, acho que Espinosa, deixando aparentemente de ser judeu, foi-se tornando jesuíta à sua própria maneira.

    Algumas regressões lógicas espinosianas, de onde ele extrai corolários e proposições, atendem a premissas arbitrárias. E, visto de longe, desvelam uma vontade constante de apontar um criador.

    Ele é um original e sagaz afirmador da herança, mas ainda é isso. Alguns trechos sobre a finitude chegam quase a afirma-lo claramente, embora evite a palavra Deus.

    Não há ex-judeu, meu caro!

  3. Sidarta

    Caro Andrei,

    Penso que uma “espiada” no compacto do SHOBOGENZO não lhe fará mal nem confundirá a sua cabeça. Continua à sua disposição o meu exemplar em francês … já bastante riscado de lápis.

    Para quem foi criado beato e filiado na infância à Irmandade do Coração de Jesus, o processo de desprogramação da dependencia autoritária e negocial com o criador é complicado no inicio.

    O Zen Soto questiona a existencia da “graça” , ou seja não adianta pedir. Se não me engano, um dos motivos pelos quais Espinoza foi banido pelo rabinato de Amsterdam foi por também argumentar contra a graça, mesmo aceitando o criador.

    Por outro lado, o Zen Soto e o budismo, dizendo e mostrando que as causas do sofrimento são a “impermanência e a frustração”, dá caminhos para se entender como se tentar superar o sofrimento seguindo o “caminho do meio”, uma trilha de atitudes um tanto quanto estóicas e também combativas de não se entregar.

    Abração,

    Sidarta

  4. Andrei Barros Correia

    Caríssimo Sidarta,

    O questionamento da graça é algo interessante. Outra coisa interessante – e não estou a falar bem ou mal dela – é que a graça é daquelas coisas que foram mal entendidas pelos cristãos. Acho que, primeiro, não leram as tais escrituras de que falam e que, segundo, confundiram-na com concessão.

    Nesse sentido, tudo aproximou-se da noção de favor e recompensa, ou seja, de comércio divino. Isso, hoje, está muito claro nos neo-pentecostais, que agradam ao deus para receber dele alguma coisa.

    O livro de Jó, que é boa leitura, desenha a coisa de forma diversa. A vontade de deus não depende dele ser agradado e não é sondável pelos relativos (os homens).

    Sempre percebi que a graça tem sido entendida como recompensa e atendimento de um pedido, o que significa humanizar o deus a que se pede. Ou seja, a prática é herética, mas vá falar de lógica com cristãos…

    Os nossos esquemas mentais, acho que são inescapáveis. Vamos a uma e outra sutileza, entrevemos alguma luz entre sombras, mas andamos em caminho pre-conhecido.

    Vivemos no esquema das autoridades, que podem ser os intermediários do divino, ou os intermediários da ciência, ou os intermediários da filologia. Mas, vivemos presos a tais esquemas de autoridade.

    Há uma coisa interessante no budismo, que é falar do sofrimento e apontar uma e outra causa, mas não dizer que ele é evitável.

    Ao falar em impermanência, está-se a dizer simplesmente viver. E viver é mais ruim que bom, tanto qualitativa, quanto quantitativamente, embora seja drástica e terrível a assertiva.

    Então, concordo contigo quanto a essa estória do budismo e do sofrimento. Ele existe, não deixa de existir, mas é possível saber-se que ele existe.

    Isso é estoicismo, não resignação.

    Como a arte é muito melhor que as teorias, devo lembrar Camus, o homem inteligente. Ele dizia que o absurdo existe, que vai continuar a existir, que é preciso sabê-lo e que é preciso ser um rebelde inútil e sabendo dessa inutilidade!

  5. Daniel

    Mas aí eu não vejo muito motivo pra se chegar ao Nirvana em vida. O tempo vai passar de todo jeito, não vai? Por pior que seja a experiência de viver, se você sabe que vai acabar, tanto faz. Sem falar que suicídio seria um belo de um atalho pra acabar com o samsara.

  6. Andrei Barros Correia

    Daniel, prezado.

    Imagino que talvez tenhas dito motivo a significar finalidade, não? Costumo diferenciar motivo de finalidade, como antecedente, o primeiro, e consequente, o segundo.

    Se o tempo passa de todo jeito, eis uma boa pergunta a de saber-se para quê o Nirvana.

    Talvez, ele seja desejável exatamente porque o tempo passa e por outra razão, menos trivial.

    O depois, a sobrevida, é concebida de maneira muito diversa, nesse modelo indiano.

    O retorno não tem a significação moral humana do retorno dos cristãos espiritistas, nem tem a significação da sobrevida da alma.

    No budismo, alguém pode retornar pedra, ou besouro, ou planta, ou água, ou gato ou até gente.

    Daí que o Nirvana, quanto a ser desejável, acho que pouco tem com a finitude ou não finitude.

    Quanto ao suicídio, meu caro, só consigo lembrar-me mais de Camus, que dizia ser o único assunto sério que existe.

    Já leste O mito de Sísifo, de Albert Camus? Caso não, permite-me sugerir-te. Acho que gostarias.

  7. Andrei Barros Correia

    Sim, ia-me esquecendo: queres escrever algo para publicarmos aqui?

    As portas estão mais que abertas.

    Abraços.

  8. Daniel

    Andrei,

    Frase famosa, hehe. Nunca li O Mito de Sísifo, mas minha edição da peste fazia resumo das obras maiores dele, sei como é. Mas ainda quero ler (tava na dúvida entre ele ou Calígula, Camus é um dos autores que eu mais gosto), só tenho que terminar os três e meio que tão na fila e um vestibular nesse meio tempo, daí sim.

    Ah, tenho umas besteiras num caderno, posso passar pra cá e você escolhe algo que gostar.

    Abraços.

    (Esse comentários em forma de carta são estranhos pra mim, nunca escrevi uma carta de verdade!)

  9. Andrei Barros Correia

    Rapaz,

    Esse tipo de correspondência é algo que me agrada. Já pensaste que, por escrito, pode-se conversar mais propriamente que por falado?

    Sim, porque há menos ruídos, menos interrupções. Talvez haja mais cuidado ao dizer as coisas. Digo cuidado, não no sentido de perder-se a espontaneidade, mas de buscar mais precisão.

    Camus é muito bom, muito bom mesmo. Tive ocasião, há uns vinte anos, de ver Calígula, encenada no Teatro do Centro de Convenções, em Recife.

    Manda os textos, se quiseres. Todavia, preferiria que escolheste tu mesmo o que queres publicar. Bem você que sabe.

    Abraços.

  10. Daniel

    (Mandei pela mensagem do facebook)

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