Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Quem tem pouco surpreende-se com pouco. Ou, o espelho é a arte, mas ela não é o espelho.

Aqui, há muito a ser visto

Acontece, até amanhã, o Festival de Inverno de Campina Grande. São sete dias de apresentações musicais, teatrais e de dança. Neste ano, coincidiu com a reabertura do Teatro Municipal Severino Cabral, que passou por extensa reforma e foi devolvido em excelentes condições. Falo do teatro com inegável entusiasmo, porque é um prédio muito bonito – em meio à feiúra – grande e bem equipado, com muito boa acústica.

Nessas plagas, vivemos imersos na grosseria e na indelicadeza. Não digo apenas que vivamos imersos na incultura, porque faço concessão aos que invocam – sem saberem de que se trata – o relativismo cultural.

Há quem não veja cultura elevada e baixa, mas somente diferenças que, todavia, não sabem dizer se são quantitativas ou qualitativas. Entre esses relativistas inconscientes, há deles simplesmente ávidos pela defesa do grosseiro e há deles a servirem-se da má-fé, de que dispõem à farta. Os últimos opõem popular e erudito, como se o corte fosse sócio-econômico, apenas.

A linha de corte não se encontra entre pobres e ricos. Encontra-se entre autenticidade e deformação, entre o que faz pensar e o que não faz. A prova-lo está o fato de que a feiúra é apreciada muito democraticamente, em todas as classes sociais.

De minha parte, proponho critérios distintivos, porque creio na diferença qualitativa. Percebo duas linhas de corte, uma propriamente artística e outra de postura social.

O artístico não é bom nem ruim, mas faz pensar, pouco importando se esse pensar leva a algo. Ele distingue-se do entretenimento, portanto. E, entretenimento é para pessoas aborrecidas, essencialmente aborrecidas, que precisam evadir-se e não ver, nunca, o espelho. O espelho é a arte e ela não é o espelho.

Outro ponto de dissociação encontra-se nas posturas sociais. Esse é um campo de muita dissimulação, porque há quem perceba como desejável a aparência do gosto da arte, como há quem ache bonito o gosto do aparentemente exótico e distintivo. Enfim, há o público de arte que está somente desempenhando o papel reputado socialmente refinado. Um desvio que não extingue os que gostam porque gostam.

Em geral, a aridez cultural associa-se às posturas sociais mais grosseiras e descorteses. A descortesia já não é algo perceptível por comparação, porque tornou-se em regra e a antítese dela não se vê, senão em alguns seres que devem estar simulando mansidão para obterem alguma vantagem. Assim, percebe o vulgo.

A delicadeza – para mudar de palavra – é coisa exótica que se opõe à risada rasgada com o ridículo, com a queda, com a desgraça. Opõe-se ao convívio sem barreiras e sem pudores, que se faz de abordagens e condutas agressivas, a bem de algo que se chama estar à vontade. À vontade, todas as agressões cometem-se, como todos os crimes são perdoados como se tudo estivesse em família. Não posso esquecer Ortega!

À vontade, o indivíduo que procura a confirmação de sua vulgaridade na vulgaridade generalizada do grupo encontra-a. Aqui, ele nem se justifica, ele apenas encontra-se entre iguais e julga o grupo de iguais equivalente ao todo. Mas, o todo tem uma parte diferente; pequena, mas diferente. Claro, isso é elitismo, mas de formato não econômico, o que o faz desconcertante e imprevisto.

Existe, para desespero de alguns, o mendigo aristocrata. Quem é a figura? É o sujeito livre, que não busca mais que os dois reais destinados a mais uma aguardente. Para obter os dois reais não fará piruetas nem macaquices, não contará uma estória já escutada, não dançará o ridículo que o aproximaria aos seres ridículos que dançam a mesma coisa e lhe dariam os dois reais por diversão.

A delicadeza perdeu-se, enfim. Foi-se para dar lugar à invasão bárbara, por demais previsível. Por que alguém deveria parar para ver uma dança, ou um espetáculo teatral, ou alguma música que não seja homogeneização deformante? Talvez porque se o fizesse pensasse mais em si e nos outros, ao invés de pensar só em nada julgando que pensa em sí e nos outros.

3 Comments

  1. Sidarta

    Muito bom texto !!!!!!

  2. Sidarta

    … ah, esqueci de dizer… “e o Velasquez é monumental “!

  3. Andrei Barros Correia

    Esse Velásquez, Sidarta estimado, é extraordinário, coisa que se pode dizer de poucas pinturas, se professamos o apego aos adjetivos justos, ou seja, não exagerados.

    Eu, que olho a tela, sou o rei e a rainha, ou sou o que é olhado por Velásquez que está na tela, sem ser o rei e a rainha?

    O ser mais interessante dessa dissociação entre observador e observado, sujeito e objeto, é o cachorro, que olha pra ninguém e é olhado pela menina que lhe pousa o pé no dorso.

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