Às vezes, significantes e significados parecem divorciados absolutamente. Quando se chega a tal ponto de dissociação, pode-se estar certo que o divórcio realmente deu-se. Ora, níveis variáveis de dissociação entre significantes e significados são comuns nos discursos, mas a percepção de ruptura total é, sim, indicativa segura de seu acontecimento.
Claro que a questão passa pela autenticidade dos significados, posto que eles não se postulam como variáveis com margens alargadas. Os que assim são, por sua natureza, são os significantes, que são cambiáveis em ambiguidades resultantes da própria dificuldade em representar coisas.
Posso ser impreciso ao chamar cadeira a um banquinho de três pernas, mas a imprecisão não apontará necessariamente desonestidade minha, na medida em que duas coisas são verificáveis: 1 – que a cadeira existe, como objeto; e 2 – que o banquinho assemelha-se à cadeira. Além desses fatores, lembremos que posso estar diante de um problema como são as traduções.
Outra situação é aquela do discurso meramente teórico. Posso chamar cadeira a um banquinho, e cadeira ser um significante duplamente representativo, ou seja, de um significado conceitual, não factual.
Há um núcleo discursivo utilizado por governos centro-europeus e norte-americano – e por satélites oriundos da desagregação do Império dos Ingleses – que gira em torno à democracia e aos direitos internacional e humanos. Discurso que justifica, a posteriori, ações tomadas contra Estados soberanos.
Para que esse discurso faça sentido, é necessário que democracia e direitos humanos e internacional existam, em qualquer lugar. Eles somente existem se foram praticados, porque não são objetos materiais, são construção diária resultante de ações várias coordenadas.
O paradigma de existência deles é uma excentricidade: um modelo teórico. Pois bem, se assim é, ou quer-se que seja, temos que uma base conceitual é o molde em que práticas podem caber. Se as práticas couberem no molde, diz-se que existem democracia e direitos internacional e humanos. É um modelo jurídico, evidentemente.
Por outro lado, se práticas não configuram o que o modelo apresenta como receptáculo teórico, pode-se dizer que democracia de direitos internacional e humanos não existem, porque a realidade não se amoldou ao que se conceitua por essas coisas. A teoria prende a prática, na sua configuração formal, mas quiseram que assim fosse…
É claro, por ainda outro lado, que as práticas não se prendem pelas teorias, o que não apresentaria qualquer problema em um sistema dinâmico e aberto. Mas, embora o sistema geral da vida seja exatamente dinâmico e aberto, gostamos de fazê-lo de adequação póstuma, ou seja, de verificação de verdade da coisa pelo que se disse que ela era. Tudo bem, é válido.
O problema é que é uma prisão e desnuda hipocrisias profundas. O significado, em alguns momentos, deixa de existir absolutamente, enquanto o significante permanece disponível para os brados vais agressivos. Mas, a representação do nada é, ou o poder absoluto, ou a deificação, coisas, advirto, que não são iguais.
Hoje, para deixar a divagação teórica, tudo quanto são agressões de países a outros visam à dominação, notadamente o saque de recursos naturais. Sempre foi assim, desde que o mundo é mundo, mas há coisa nova. Hoje, ou há duzentos e cinquenta anos, as agressões fazem-se em defesa dos tais direitos humanos, internacionais e da democracia, e isso tampouco é o novo.
O novo é os defensores dos tais direitos e da democracia bradarem-nos em defesa do saque, sem ao menos cuidarem minimamente de aparentar cultivarem essas mesmas coisas. E, mais novo ainda é indignarem-se de alguém perceber que perderam esse cuidado, como se a inércia da agressão afastasse a necessidade da aparência.
Atualmente, os maiores agressores do mundo são, para ficarmos em número pequeno, os EUA, a Inglaterra e a França. Nunca esses países cuidaram de democracia e direitos senão superficialmente. Sabiamente, em outros tempos, protegiam esses valores internamente e esforçavam-se para esconderem a maioria das ocasiões em que o agir guia-se sem limites quaisquer além da força dos outros agentes.
O divórcio atual é completo e claro. É certo que apostam, inteligentemente, na burrice e desinformação generalizadas, mas até essa aposta revela-se demasiada, ante a flagrância da dissociação. Eles seguem falando o que não fazem nem aparentemente.
É muito engraçado que os governos francês e alemão insistam em serem democráticos e que, ao mesmo tempo, tenham deposto um governo grego que aventou a possibilidade de convocar um plebiscito sobre um assunto que interessa aos gregos. Contradição? Evidente.
É engraçadíssimo que intervenções nas políticas internas de vários países ocorram a bem de suprimir a falta de democracia neles, quando os interventores protegem outros países em que não há o menor, mínimo, traço de democracia.
É notável que os direitos humanos – seja lá o que for isso – sejam invocados por um país onde se pode ser preso sem acusação formal, onde investigações sigilosas são possíveis, onde um cidadão pode perder a nacionalidade por ato discricionário, em um país que mantém um campo de concentração. Notável também que os parceiros a leste desse país discursem mais baixo, mas com mais pretensão a sofisticação, no mesmo sentido e sejam cúmplices de uma rede de prisões ilegais. Mas, falam de leis.
Algo de bom nessa aproximação da ruptura há: é que se aproxima o vale-tudo não intermediado pelo entulho discursivo.
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