Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Perguntas que não passam de pedidos de confirmação.

Faltam-me ânimo e tempo para algo que me agradaria bastante: escrever sobre as limitações impostas às pessoas por elas mesmas a viverem socialmente. Ou seja, para fazer aquilo que chamo psicologia social de mesa de café, um deleite para mim, mas que implica algum método, para não sair a falar muitas bobagens supostamente organizadas.

Na falta dessas coisas que o trabalho cotidiano impede, uma e outra divagação ainda é possível, ainda que dispersa, pouco profunda, feita meio às pressas, quando um fato chama a atenção. Realmente, a escravidão, ou o trabalho, por outra palavra, aprisiona e limita e ainda tem a faculdade de raramente produzir alguma utilidade real.

O caso é que pensava em como a enorme maioria das perguntas que se fazem não são perguntas. São pedidos de confirmação, feitos ao interlocutor, daquilo que o indagador afirma. Apenas a forma é de pergunta, a substância é de ordem, rejeição ou confirmação do compartilhamento de alguma opinião.

Claro que muito dessa real natureza das perguntas tem a ver com as maneiras habituais de se conduzir um diálogo. Ou seja, são formatos utilizados para tornar a conversação menos áspera e entrecortada, da mesma forma que atuam os lubrificantes nas engrenagens de algum mecanismo.

Todavia, o caráter lubrificante de algumas formas habituais não afasta a percepção de que a conversação praticamente não existe como diálogo em que as informações transitam entre pessoas e em que perguntas são exatamente isso. Não se esperam respostas, o que evidencia que não se fazem perguntas.

Isso porque acontece mais uma busca de identidade – por padrões variados – que uma busca de conhecimento ou de informação, se se preferir o segundo termo, menos abrangente.

Tive a infelicidade – sim, porque essas coisas são boas e ruins – de ter lido e gostado e prestado atenção em Nietzsche e em Ortega y Gasset. Assim, não consigo deixar de lembrar-me de passagens deles, embora não consiga cita-las de memória, nem me anime a ir agora aos livros para fazer transcrições.

O que se leu não é verdade alguma, assim isoladamente. É um ponto inicial para perceber as coisas que se vêem e que podem não ser assimiladas de maneira orgânica, sem uma modelagem, sem um desenho teórico e geral. E agora lembro-me de um dos lugares-comuns mais tolos e repetidos que existem, aquele de que não se deve generalizar. Ora, deve-se generalizar, é impositivo generalizar; não se devem esquecer as excepções, isso sim.

Uma generalização a não ser esquecida é que as pessoas são em ato muito menos do que são em potência. São limitadas por travas que somente fazem sentido ao se as considerarem coletivamente, porque individualmente e isoladamente elas são inqualificáveis nestes termos. Explico-me melhor: uma pessoa completamente isolada é só ela, sem termos de comparação e, portanto, sua realidade é sua potencialidade.

A vida social – coletiva talvez seja menos ambiguo e gerador de confusões – é o limitador mais intenso. Ela pede a homogeneização dos comportamentos e das idéias e o pedido só pode ser atendido com a padronização pelo mínimo. Essa demanda será atendida, necessariamente, a bem da coesão social e ao preço evidente da perda das potencialidades individuais.

Não se trata aqui de afirmar o individualismo, no sentido habitual em que este se entende. Trata-se de dizer que a vida social produz a limitação dos indivíduos, que se tornam cada vez mais individualistas por serem presas das limitações convencionais. O aparente paradoxo está no coletivo a produzir individualismo e indivíduos cada vez mais limitados.

Esses indivíduos não têm dúvidas, não pararam para pensar suficientemente em algo para saberem se têm dúvidas. Suas dúvidas são se suas certezas encontram-se nas cabeças dos outros da mesma forma que nas suas. A ausência de perguntas fica evidente na impossibilidade de resposta que não seja uma: a afirmação que faz o suposto perguntador.

Chega-se ao outro lado da coisa, as respostas. Ora, não há resposta válida excepto  a confirmação da afirmação que se fez com o nome de pergunta. A única coisa que o perguntador queria – e não era por ter alguma dúvida – era a confirmação do interlocutor de que participava das mesmas escassas idéias.

Portanto, o que se chama diálogo é, na imensa maioria das vezes, um jogo de confirmações e identificações. Uma questão de segurança social, ou seja, de saber quem compartilha das mesmas vulgaridades e dos mesmos preconceitos, mas disfarçada em diálogo.

É preciso identificar o diferente, para o poder rejeitar e, se necessário, combater. Isso é preciso, não o buscar saber a opinião alheia independentemente de qual ela seja. Porque a opinião alheia, como informação ou indicativo de algo a verificar, não importa minimamente. Só importa como elemento revelador de semelhança ou diferença.

As perguntas não visam a obter alguma informação que venha a subsidiar um pensamento ou mesmo a confirma-lo, mas a verificar o pertencimento a um grupo, delimitado pela aceitação de um acervo de preconceitos e pela inserção em um estrato social.

Claro que há excepções e uma delas explica-se pela má-fé, motivação tão forte quanto a ignorância ou a inércia social. A excepção  mais notável é aquela do interesse nas respostas como colheita de provas de acusação contra alguém. Nesse casos, o perguntador não quer confirmações, quer dados.

Esse desejo de obter dados tem raiz na necessidade de ter meios de chantagem, não no interesse de ampliar o campo de pensamento. Os mesmos que fazem perguntas que não o são, fazem-nas, às vezes, somente para ganhar meios de chantagem. Enfim, são duas formas a que recorrem os mesmos tipos de pessoas, aquelas cujo ser é menor que o poder ser, aquelas que se ocupam dos detalhes, os decoradores da vida que não se vive.

Sim, porque o mesmo sujeito que te pergunta, discretamente ou não, quanto tu tens e ganhas, também pergunta-te mentirosamente o que achas de uma idéia. O dado objetivo, ele quer saber para alimentar a criminosa suposição de que és criminoso, a opinião ele não quer absolutamente saber, quer apenas saber se corresponde à dele.

Quando escutas a pergunta por que não fazes assim ou assado, na verdade és indagado se fazes precisamente o que o perguntador faz. Quando escutas essa pergunta, és instado a fazer uma coisa, recebes uma ordem e um pedido de confirmação. Então, se respondes sinceramente desagradas o perguntador, mesmo que não o tenhas querido desagradar. Pronto, és maldito.

6 Comments

  1. Davi

    Andrei, seu raciocínio é bem concatenado. Em linhas gerais, entendo que você tem razão, as pessoas costumam buscar a identificação com o interlocutor e na maioria das vezes a opinião requerida não importa mesmo, pois não fará diferença no mundo do questionador, a não ser como forma de comparação ou de chantagens, como você bem disse. Entretanto, eventualmente há situações onde a informação requerida, principalmente se direcionada a um interlocutor mais experiente ou sapiente, teria a função de estabelecer para o que perguntou uma perspectiva diferente sobre o assunto abordado, estimulando suas potencialidades. E, ainda assim, isto não poderia ser considerado um diálogo, uma vez que para ele acontecer, seria necessário haver também o interesse do questionado sobre a opinão do questionador, o que nem sempre acontece (quando acontece é extremamente gratificante, mas, é coisa rara por esses dias).

  2. Andrei Barros Correia

    Davi,

    Devo concordar contigo sobre a ultima objeção. Realmente, como disseste – e eu não disse – mesmo quando o perguntador quer uma informação, isso não significa necessariamente que se estabeleça um diálogo.

    O que me tem despertado muito interesse são as assertividades em formato aparente de questionamentos. O exemplo eloquente é a fórmula por que você não faz isso? Na verdade, ela significa, na enorme maioria das vezes, faça isso, assim.

  3. Davi

    É, Andrei, as pessoas costumam se assustar com outras que não adotam os mesmos parâmetros comportamentais e acaba sendo natural que questionem em forma de cobrança por causa das diferenças. Quando acontece comigo, procuro não encarar como uma ofensa direta, apenas como uma limitação do interlocutor.

  4. Andrei Barros Correia

    Novamente, acho que tens razão. Na maioria das vezes, não é uma ofensa ou agressão deliberada. É limitação profunda e vontade de mandar, acrescentaria.

  5. Rodrigo Tenório

    Eu diria que o ser humano, no alto de seu egoísmo, não consegue entender por qual motivo uma outra pessoa tem condutas diversas da sua. Ele imagina que suas ideias e ações são mais corretas do que a de qualquer outra pessoa. Assim, se alguém age diferentemente dela, ela precisa entender aquilo (ou não). Entendendo (ou não), ela procura transpor aquela pessoa para o seu mundo de verdades ou, senão, ela mesma faz essa transposição para o mundo da outra. Ou não acontece nada e todo mundo preserva suas “verdades”. Nesse não entendimento (falha de comunicação) é que, ao meu ver, costumam ser criados todos os tipos de diferenciações, com as ignorâncias que lhe são peculiares. Quanto a um ponto específico, acho que não concordo muito com você. Refiro-me ao “não se deve generalizar”. Tudo bem que generalizando você pode simplificar determinadas ideias um tanto quanto complexas, mas o problema é exatamente as complexidades que ficam ocultas pela generalização. Aí você diz que as exceções é que não devem ser esquecidas. Concordo, mas a questão é que, em regra (olha eu generalizando), quando as pessoas generalizam elas esquecem da exceção. O ideal seria que isso não acontecesse. O que é raro, mas ainda bem que existe. Mas talvez o maior problema seja o discurso, muitas vezes hipócrita, que diz que não generaliza, porém nunca se lembra das exceções.

  6. Andrei Barros Correia

    Rodrigo,

    As generalizações parecem-me inadequadas quando se trata de acusar e punir. Aí, é uma tremenda violência.

    Todavia, tratando-se de teorizar, acho que é o meio válido. Realmente, se se parte das particularidas, indutivamente, finda-se por fazer o mesmo, generalizar, pelo cotejo dos vários particulares que compartem uma característica.

    Claro que as generalização implicam em saber que há execepções. Do contrário, não era uma generalização e sim uma absolutização. Talvez aqui tenha chegado ao ponto: há uma diferença entre generalizar e propor um absoluto e ela está exatamente em que a primeira pressupõe as excepções.

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