Pessoas e grupos tendem a achar-se o centro em torno de que as coisas giram e isso é manifestação de auto-referência com muita inércia. Parece mesmo uma tendência de psicologia social, tão amplos são os efeitos.
Alguns lugares-comuns refletem a atitude de projetar o todo como símile da situação pessoal e de grupo restrito. Aqui, em Campina Grande, é comum as pessoas dizerem que a cidade está deserta e que todos estão em João Pessoa, para o veraneio na praia, nas férias de verão, em janeiro. Semelhantemente, é comum dizer-se que Brasília torna-se cidade deserta no carnaval, porque todos se vão para destinos festivos momescos.
Claro que esses lugares-comuns têm raízes em algo de realidade, mas é um tanto de realidade para poucos, que se projeta como percepção válida para tudo. Ora, muitas pessoas das classes média e alta vão mesmo, todos os anos, como a cumprirem obrigação inadiável, passar o veraneio na praia, no mês de janeiro. Claro que muita gente sai de Brasília e vai passar o carnaval em destinos turísticos ou nas suas cidades de origem.
Mas, basta um pouco de percepção para observar que essas viagens de pessoas de classes mais favorecidas atingem parcela pequena ou muito pequena das populações das cidades que usei como exemplo. É bem reduzido o número dos que podem ter duas casas, uma na cidade de moradia, outra na praia, assim como é reduzido o número dos que podem simplesmente dar-se férias em janeiro, independentemente de quaisquer fatores além da própria vontade.
Quem cria o discurso, que por sua vez cria a realidade aceita, é sempre um grupo reduzido. Ele parte de sua imensa auto-referência e faz da realidade geral a sua realidade própria e o discurso resultante espalha-se e reproduz-se acriticamente por quantos não se inserem nas condições dos criadores do lugar-comum. Trata-se de afirmação de si que toma ares de axioma social amplo e irrestrito, enfim.
O lugar-comum, essa projeção do particular no geral, não é somente deficiência de percepção, mas falsidade numérica observável facilmente. Nestes tempos quentes de janeiro, quem se dispuser a ir ao centro de Campina Grande caminhando, em manhã de sábado, verá tanta gente como nos outros meses do ano. Verá menos automóveis, por estreita margem, mas pessoas no mesmo número.
O mais interessante é que o lugar-comum não é somente um dito descasado da realidade para a imensa maioria das pessoas, ele carrega também um juízo de valor. Quem diz que a cidade está deserta porque todo mundo está na praia, diz que é ruim estar numa tal cidade. Este juízo negativo de ficar numa cidade supostamente deserta, por sua vez, carrega nítida afirmação de pertencimento social.
Ou seja, fica quem não cumpre o ritual – independe que se goste ou não – de passar o veraneio na praia, o que leva a concluir que o juízo negativo é de distinção de classe.
Interessantes consequências da estreiteza de visão que o lugar-comum dissemina são que algumas pessoas vêem-se obrigadas a cumprirem ritual que não lhes agrada, no fundo; que muitas pessoas vêem-se sonhando com a possibilidade de cumprir o ritual, mesmo que não o percebam intimamente com algum sentido.
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