A Poção de Panoramix

Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O assalto será rápido e feroz.

Os patrocinadores externos do golpe de Estado no Brasil querem receber sua parte primeiro e o mais rápido possível, afinal foram eles que proveram as condições materiais necessárias ao sucesso da empreitada. Os deuses têm pressa, além de sede, claro. O exemplo argentino não permite dúvidas ingênuas ou pseudo-ingênuas sobre a velocidade e a ferocidade destes processos atualmente.

A recolonização é fundamental para eles, pois suas situações econômicas e de poder geopolítico degradam-se rapidamente. Este golpe lhes trará um precioso reforço à tentativa de manutenção da situação assimétrica historicamente pouco variável.

Acontece que os agentes internos do golpe, tanto os diretamente atuantes, que são as corporações política, jurídica e mediática, quanto o público em geral, formam um grupo demasiado heterogêneo. Haverá, como é intuitivo, uma ordem de precedência no recebimento das recompensas pela missão e para alguns o pagamento não virá em dinheiro, pois é previsível que ele escasseie, tanto por efeito de contração econômica, quanto por concentração na apropriação.

Além de um grupo compacto que visa apenas a dinheiro e faz a interlocução direta com os patrocinadores externos, há outros grupos que dão necessário apoio à empreitada golpista e esperam receber suas partes. Aí que se começa a perceber o imenso problema que haverá com a desagregação política, econômica e social que se anuncia.

Uma parte significativa dos agentes golpistas da classe política e das corporações públicas privilegiadas não tem interesse que o país acabe-se de um dia para outro. Eles precisam que alguma inércia mantenha-se, porque o jogo político do controle do Estado dá-lhes vida e sustento material. Para esses, a guerra do fim do mundo não interessa; para esses, as eleições de 2018 ocorrerão e eles precisam de êxito nelas, para manter-se nas várias camadas do poder político institucional.

As propostas – escritas e faladas – do grupo próximo ao homem que assumirá a presidência da República brevemente, porém, não permitem ilusões. O programa deles é brutalmente regressivo e implicará rápido reempobrecimento de quem viu sua pobreza reduzir-se um pouco de doze anos para cá. Essa gente talvez não seja totalmente iludida pela imprensa mainstream à medida que vê, tangivelmente, as coisas piorarem.

Uma parte substancial do apoio ao golpe de Estado vem de grupos calcados no conservadorismo de costumes, em grande parte evangélicos. Esses grupos são majoritariamente de extração social pequeno médio classista e tiveram suas condições materiais sensivelmente melhoradas nos últimos anos, mesmo que a narrativa conservadora de costumes os conduza a crer na tese do patamar obtido não ser passível de regresso.

O regresso, todavia, ocorrerá, porque o projeto é concentrador de riquezas. Inicialmente, esses grupos conservadores estarão bem pagos e sentindo-se no exercício do poder com medidas de retrocesso em direitos de cidadania, civis e sociais. Dois anseios básicos dos conservadores serão atendidos: os que giram em torno às tolices da homofobia e da vontade de andar armado.

Porém, o prazer de poder discriminar impunemente, de insultar o diferente impunemente, de o agredir fisicamente, de dizer que o pobre o é porque quer e de andar com revólver na cintura, mesmo intenso e poderoso nas almas, não será hábil a comprar televisões de leds nem automóveis novos… Não bastará a sedução das pequenas almas com esses agrados por meio de regressos bárbaros.

Não será possível cooptar esses grupos por muito tempo apenas com a satisfação dos seus preconceitos de costumes, de nítida matriz religiosa. Ou seja, haverá a reivindicação da recompensa material, também, o que torna a equação difícil, porque esse grupo fortaleceu-se nas políticas redistributivas que agora ajuda a por abaixo. E, como já dito, o dinheiro tende a escassear e a vontade de aumentar a concentração na sua apropriação a aumentar.

O que se anuncia de política econômica, pelos golpistas, permite antever que se entrará numa brutal recessão, porque eles farão o clássico tratamento quimioterápico do moribundo, uma genialidade que tem resultado previsível. Reduzir o poder de compra dos que têm maior propensão marginal ao consumo aprofundará a recessão. Neste cenário, muitos apoiadores do golpe ficarão sem receber em algo mais tangível que abertura para suas inclinações mais fascistas, ou seja, em algo que não é dinheiro.

Os agentes políticos, principalmente os de níveis intermédios, não têm interesse nessa regressividade brutal, porque chega-se a um ponto em que as mentiras da imprensa não impedem o sujeito de perceber que está a piorar. E isso terá efeitos na forma em que votará, o que gera para o político riscos altos. O político de nível intermédio – que não conta com o financiamento amplíssimo dos reais donos do poder e a blindagem incondicional da imprensa – fica em situação delicada. Ele tem de cumprir a missão golpista e gostaria que a degradação não fosse tal a ponto de afastar os eleitores.

Será difícil encontrar soluções de compromisso nesse projeto golpista do corte rápido, da rapinagem rapidíssima e do subsequente caos. Será difícil evitar a desagregação das forças golpistas e quase impossível prever que rumo as coisas tomarão neste país riquíssimo tratado como se fosse uma micro república…

Nesse estado de coisas, tentar alguma conciliação será ocioso. Tentar a solução da enganação, a partir dos disponíveis serviços da imprensa mainstream poderá ser acreditar demais no poder da mentira. Haverá uma saída.

Os gestores do regime golpista a instalar-se usarão da eliminação de direitos fundamentais mais que o inicialmente necessário para divertir os anseios retrógrados de seus apoiadores pequeno burgueses. Mais que permitir a livre expansão da homofobia, a livre expansão do ódio por políticas públicas inclusivas de minorias, o regime terá de se servir instrumentalmente da eliminação de direitos essenciais.

O regime, para governar, terá de suprimir a livre comunicação, terá de suprimir direitos básicos de liberdade de expressão. No limite, terá de partir para a repressão física, por meios militarizados, com o judicial a dar roupagem jurídica à repressão.

Se isso pode ser exitoso a estas alturas, em um país de 200 milhões de pessoas, não sei.

O golpista envergonhado.

Urubu tá com raiva do boi
E eu já sei que ele tem razão
É que o urubu tá querendo comer
Mais o boi não quer morrer
Não tem alimentação

Não sei se Anauld Rodrigues e Chico Anysio, quando compuseram a letra cuja estrofe central está em epígrafe, tinham a percepção de quão genial ela é. Carregada de humor, ela aponta um aspecto central da nossa psicologia social, aquilo que mais fortemente nos caracteriza: a hipocrisia triunfalista.

A vitória sempre repetida das classes dominantes é algo de direito divino e portanto impassível de discussão. Não se admite que se aponte o golpe de mão, a ação ilegal, a chicana, o oportunismo que sempre há por trás dessas vitórias. Não basta ganhar, há de se ter o direito ao segredo da infâmia.

A deposição da Presidenta Dilma Rousseff no congresso nacional avança rapidamente e breve estará consumada. É um golpe de Estado evidente, porque não há crime de responsabilidade, algo que a lei exige para tal processo.

Os golpistas agem como se nosso governo tivesse forma parlamentar e tivéssemos o voto de desconfiança ou o recall. Agem como se a Presidenta fosse apenas chefe de governo e não chefe de Estado também. Desonestos até os píncaros, esquecem que a desconfiança no parlamentarismo derruba também o parlamento…

Mas, têm vergonha de serem chamados de golpistas! Os apoiadores do golpe nas camadas mádias e altas têm vergonha da palavra golpe. Essa gente age como se tivesse direito divino ao silêncio quanto às evidências. Pode-se engendrar um golpe de Estado, mas é proibido chamar-lhe por outro nome além daquele que escolherem os próprios golpistas.

É a reivindicação da exclusividade na construção da narrativa nacional. É um reflexo da suprema hipocrisia que nos acomete desde sempre, aquela hipocrisia em que tudo é permitido desde que não se descubra. Nossa roupa por excelência é o véu.

O triunfalismo é tão patético que mostra sua face canalha na vergonha frente ao estrangeiro. Os golpistas estão envergonhados de serem chamados pelo nome correto e sua obra pelo nome golpe de Estado por meios de imprensa de fora do Brasil. Sentem-se à vontade para externar seu desconforto com narrativas diferentes das suas próprias.

Isso não é algo novo, evidentemente. Há um paralelo interessante com os torturadores da mais recente ditadura havida no Brasil. Todos sabem quem são e o que fizeram; a coleção de atrocidades a que essa gente se entregou – por prazer, diga-se, porque era inútil estrategicamente – é conhecida; seus nomes são conhecidos.

A despeito das evidências, não aceitam serem chamados de torturadores, o que está em diametral oposição à grande valentia que ostentavam diante de vítimas fragilizadas. Nos atos de torturar, os torturadores afirmavam-se plenos, mostravam-se, falavam, riam, tudo ostensivamente. Isso é contrário à vergonha que sentem de serem chamados pelo que foram.

Outra coisa bastante sintomática é que essa gente – tanto os antigos, quanto os novos torturadores e golpistas – sente mais vergonha frente aos estrangeiros. Enquanto são chamados pelos nomes corretos no Brasil, o incômodo não é tanto e eles conseguem até lidar, porque estão certos do triunfo dos que dispõem da narrativa da imprensa mainstream.

 Mas, quando a imprensa estrangeira chama a deposição ilegal de golpe de Estado e seus executores e defensores de golpistas, o mal estar é generalizado. Beira o desespero, pela percepção imediata da impotência relativamente à construção de outras narrativas.

Essa vergonha do estrangeiro é sintomática de algumas coisas mais ou menos veladas. A primeira é o complexo de inferioridade, a face outra da covardia do valente. A desonra e a covardia são evidentes nesta vergonha do estrangeiro.

Fosse gente realmente valorosa afirmava o que faz a despeito de outras opiniões, ou apenas as desprezava. Mas os covardes não desprezam, eles reagem desesperados, perplexos e servis, a suplicarem que as narrativas os protejam, que acolham suas mentiras sobre si mesmos, pois sempre foram tão obedientes.

Eles sentem-se traídos pelos patrões a quem serviram bem e lealmente. Eis o segundo aspecto: a vergonha do estrangeiro revela quem são os patrões desta gente golpista. Funciona de baixo para cima, como a vergonha da criança diante dos pais, ou a do cão que urina no tapete da sala. A vergonha do golpistas é frente ao seu dono que não lhe deu proteção discursiva quando ele agia para seu serviço.

O proselitismo duelista.

Como herança cultural e paradigma sempre invocado, a farsa dualista platônica nos teria bastado. Mas, a ela acrescentaram-se camadas de preconceitos semíticos e rudimentos de um teísmo de lei e tribunal. É claro que essa mistura fermentou bem e deu ao mundo nossa celebrada cultura ocidental.

Tão evidente quanto o triunfo deste modelo são suas consequências na formação do homem médio. Sofistas metafísicos mal instruídos são a matéria humana mais disponível que há. Eles são disputadores a afirmarem uma crença sincera na dialética quase lógica que os guia. São sinceros, isso é bem verdade, quando estão a mentir.

Não é a incultura o que me move a escrever ou o que me causa repugnância neste tipo médio que pulula, como a infestar o mundo de um ser cujo modelo é o advogado. É sua crença no que chamam convencimento. Ao mesmo tempo em que instintivamente e inconscientemente visam a poder e a dinheiro, afirmam uma racionalidade que de tão impregnada de moralismos é mesmo racional, sob esta perspectiva.

O debate que visa ao convencimento é uma heresia, no fundo, além de prazer do vulgo. Convencer é o prazer de levar o outro a repetir o que o convencedor já está a repetir. A busca pelo mínimo divisor comum leva ao que ela se propõe: ao mínimo. Enquanto os disputadores procuram convencer-se mutuamente, esquecem de buscar perceber mais claramente quais são seus interesses e em que eles se contrapõem aos outros interesses.

O bom disputador deve, necessariamente, achar que o absurdo não existe, ou, no mínimo, achar que ele é um estado quimérico que pode ser afastado pela sofística. Acontece que a sofística não é uma técnica de remoção de brumas, mas um meio de socialização por autocelebração e crença na inexistência do conflito de interesses.

O convencimento entende-se como uma forma de sedução; uma conquista; a atração de alguém para um discurso; a obtenção da adesão a uma narrativa. Essa é uma lógica de tribunal, que emula uma lógica bem própria de solicitação ao deus que habitava a árida faixa entre o Morto Mar e o mar vivo. Estranha religiosidade que se inicia por pedir as coisas ao deus e se esforçar por o convencer de algo, sempre em detrimento de outrem.

Essa racionalidade irracional é a maior garantia da perenidade do sistema. Haverá pontos e contrapontos, mas nunca pontos fora do campo pre-estabelecido, exceto pelos fascismos enfurecidos, talvez. O sistema prevê a dualidade operante na lógica do convencimento e gera hordas de perplexos com a ineficácia fundamental daquilo em que continuarão a crer.

Esse modelo implica crer nas noções de limite e de impossibilidade, noções cujo transplante das ciências naturais para as humanas é um crime de lesa epistemologia. O humano não conhece limites, nem impossibilidades; sua única impossibilidade é a imortalidade e isto não é humano, é biológico.

O ser médio atual, cujo protótipo é o rábula destituído de conhecimentos históricos mínimos, tem vergonha em quase tudo que faz; e tem medo. Por isso surpreende-se, assusta-se, mas não deixa de ser o que é, porque não lhe foi ofertado qualquer outro modelo a seguir. Ora, a causa da surpresa, de qualquer uma, é a ignorância e isto não é dito aqui como insulto coletivo ou por anseio de escandalizar.

Surpreender-se decorre de ignorar e é muito significativo que um dos locais discursivos mais frequentes seja precisamente a surpresa. O mundo vive de surpresas, umas após outras, a se fazerem esquecer nesta sucessão vertiginosa. A surpresa suspende, conduz a um torpor da suspensão da realidade, ao torpor da aparência do tempo parado.

Essa figura do tempo parado – uma impossibilidade fundamental – é reveladora de quanto a história ausentou-se do ferramental de pensamento. A suspensão do temporal, por choques sucessivos de surpresas, acontece na cabeça do homem médio, tamanha sua aversão pela realidade, que nada mais é que história, ou seja, um processo que se autorealiza.

A surpresa que acontece no não convencimento é também uma forma infantilizada de estar na vida. É semelhante à surpresa da criança à resistência à sua pretensão de apossar-se das coisas das outras crianças. Mas o homem médio acredita-se irresistível sedutor e portador das melhores armas sofísticas, o que só pode decorrer de imensa falta de autocrítica.

As coisas mostram-se.

Venceréis, pero no convenceréis.

Em 12 de outubro de 1936 dava-se a Festa da Raça, na Universidade de Salamanca, com a presença, entre vários outros, do Reitor Miguel de Unamuno, do Bispo de Salamanca Plá y Daniel, da senhora Franco e do general Millán Astray.

Unamuno, convém aponta-lo, havia apoiado a invasão da República pelas tropas africanas do general Francisco Franco. E o novo regime nazista já se tinha consolidado por ocasião desta celebração da festa da raça na Universidade de Salamanca.

Astray ataca violentamente a Catalunha e o País Vasco nesta ocasião: “… cánceres en el cuerpo de la nación. El fascismo, que es el sanador de España, sabrá cómo exterminarlas, cortando en la carne viva, como un decidido cirujano libre de falsos sentimentalismos.” Depois do ataque racista vil, proclamou e deu vivas à morte, o que era seu característico.

Miguel de Unamuno era vasco; o Bispo Plá y Daniel era catalão. E ambos tinham sido favoráveis à derrubada da República pelas tropas nazistas de Franco, que era galego! Do ponto de vista estritamente racional, o ataque de Astray a catalães e vascos era, além de uma imensa e desnecessárias descortesia, uma estupidez.

Unamuno reagiu, mesmo a saber os riscos implicados. E reagiu tão elegantemente quanto firmemente: “Dejaré de lado la ofensa personal que supone su repentina explosión contra vascos y catalanes. Yo mismo, como sabéis, nací en Bilbao. El obispo, lo quiera o no, es catalán, nacido en Barcelona.”

Dejaré de lado la ofensa personal! É extraordinário. A seguir, disse o principal, que não ficaria calado depois de ouvir o necrófilo e insensato grito “Viva a Morte!” e disse que o general Astray era um inválido de guerra e que: “Me atormenta el pensar que el general Millán Astray pudiera dictar las normas de la psicología de la masa. Un mutilado que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, es de esperar que encuentre un terrible alivio viendo cómo se multiplican los mutilados a su alrededor.”

Unamuno morreu, provavelmente de desgosto, pouco após o incidente. Após sua refinada objeção a Astray, este proclamou o célebre abaixo a inteligência, viva a morte. Fez-se confusão, Unamuno ainda disse que venceriam porque tinham força bruta, mas não convencerão. Foi, ao final da cerimônia que se tinha tornado confusão, protegido pela senhora Franco, mas sofreu prisão domiciliar. O general Astray venceu, como se sabe, e venceu por décadas.

As últimas palavras de Unamuno nesta ocasião, referentes à não possuírem os nazistas razão e direito na luta – mas apenas força bruta – inserem-se na grande corrente do racionalismo de origem grega, cantado com beleza no teatro trágico. Unamuno diz a Astray o que Sófocles fez Antígona dizer ao tio dela a propósito da sepultura a ser dada a Polinices.

Este e outros episódios – os acontecidos e os ainda não consumados – provam que a razão e o direito não são condições necessárias ou mesmo eficazes para a vitória. Isto, com relação a vitórias bélicas, pode soar muito evidente; todavia, deveria passar a soar, senão evidente, bastante plausível, também para vitórias políticas.

A força bruta é mais intensa que as outras que contendem no palco político e social e ela não consiste somente na força física. A força bruta intelectual – aquela que provém das mentes mais vazias – é bastante apta a ditar as normas da psicologia das massas. Essa aptidão provém dela ser muito mais naturalizante que humanizadora, e propor coisas muito naturais: como matar, segregar, torturar…

A força bruta intelectual criou ambiente propício a um golpe de Estado no Brasil; ele está em curso. De tão urgente para os interesses saqueadores externos, abriu-se a estrebaria e soltaram-se dois cavalos a correrem paralelamente. O que chegar primeiro entrega o serviço e o único compromisso mútuo dos cavalos é não se atrapalharem um ao outro. O que for mais rápido atende aos interesses entreguistas: congresso ou judiciário.

Para obter apoio nas classes intermédias, a psicologia de massas à Millán Astray foi posta em difusão e estimulada pela imprensa. Este, a par com os destruidores efeitos econômicos e sociais do golpe, será o maior preço a ser pago depois. O fascismo histério e profundamente ignorante foi instilado nas camadas sociais que representam o terreno mais fértil para este tipo de pensamento rasteiro e conduzido de fora para dentro.

Mesmo que se impeça ou que se retome o poder político e se restabeleça o Estado de Direito após o golpe, será dificílimo desfazer os efeitos destruidores desta psicologia de massas fascista ditada pela imprensa para os estratos medianos e muito bem assimilada por eles.

A indiferença pode ser a pior tática oportunista.

É péssimo escrever com advertências precedentes, mas é necessário em muitos casos. A indiferença real – a que aceita todas as consequências e não investe contra elas nem com frustrações mal dissimuladas – existe, mesmo rara. Precisamente por sua raridade, chamam atenção as manifestações da indiferença não de todo indiferente.

Pode ser uma manifestação de cansaço reativa, e aí tem-se a contradição aparente da indiferença ativa, aquela que se afirma. Nesta há bastante autenticidade, no que ela tem de pedido de paz: é reativa, mas não provocativa. Enfim, seria tolo achar que é impossível alguém não gostar de política realmente.

Todavia, na maioria das vezes, nada há mais insincero que a indiferença política. E seus dois móveis mais evidentes são o oportunismo e o medo. Se esta indiferença reveste aspectos táticos, é certo que seu contrário não é o destemor caricato do que se dispõe ao conflito inútil e potencialmente danoso.

Sobre a aparente objeção acima mencionada convém dizer que sempre será lançada e assemelha-se àquela do privilegiado que a privilégios se opõe, o que seria contraditório; uma objeção que revela o mau caráter de quem a lança. Quanto a esta última, basta lembrar que não é reduzindo-se à escravidão que se luta eficazmente contra a servidão. Não é preciso ser pobre para opor-se a pobreza, enfim, nem é eficaz meio.

A pseudo-indiferença pode, entretanto, ser uma tática eficaz, como forma adjacente a uma linha de ação clara. Assim, ela também é bastante clara; é uma indiferença aparente que revela opções muito claras. Esta manifestação – de que o apolítico é exemplo hoje a ser lembrado – serve a propósitos específicos e será recompensada. Ela jogo no campo da narrativa do razoável que se oferece como conciliador: a proposta de parlamentarismo é, hoje, exemplo desta forma oportunista.

Porém, há uma variante que eu diria híbrida: a pseudo-indiferença que não funciona claramente como linha auxiliar de alguma posição, dando-lhe a válvula de escape da narrativa do razoável, mas que tem muito de ingenuidade como tática a serviço de um oportunismo difuso. Este oportunismo é animado por uma aspiração individual difícil de articular-se aos movimentos de grupo; é algo muito narcísico, enfim.

Esta variação tende a ser ineficaz em momentos pré e pós traumáticos em política, ou, pelo menos, a ser pouco eficaz em termos de recompensas, sejam elas pecuniárias, em proteção contra as violências advindas da loucura reinante, ou em efêmera glória. E a raiz desta ineficácia na obtenção de grandes recompensas encontra-se no que Maquiavel já dissera há muito sobre ficar-se declaradamente contra ninguém e a favor de ninguém.

O caráter narcísico da postura é fortíssimo e revela-se muito pelo que o indiferente oportunista quer-se de árbitro da realidade, segundo critérios que podem ser quaisquer, desde que sejam aparentemente originais. É a boa consciência da imparcialidade aparente, o bem estar psíquico da realização científica que seria o grau zero da axiologia.

O indiferente aparente não é estúpido; é autorreferente a um ponto elevadíssimo. Por não ser estúpido, sua indiferença é disfarçada em posição mediana, razoabilidade e imparcialidade, tudo que não existe e cuja inexistência é mais evidente em momentos de crises. Fosse estúpido e menos narcisista e menos ansioso pela originalidade, ofereceria algo mais apreciado por qualquer dos lados e teria a recompensa que a história prova serem merecedores os medíocres razoáveis.

Vivo sem viver em mim.

Santa Teresa de Ávila.

Vivo sem viver em mim,
E tão alta vida espero,
Que morro porque não morro.

(…)

Ai que longa é esta vida!
Que duros estes desterros!
Este cárcere, estes ferros
Onde a alma está metida.
Só de esperar a saída
Me causa dor tão sentida,
Que morro porque não morro.

Ai, que vida tão amarga
Por não gozar o Senhor!
Pois sendo doce o amor,
Não o é, a espera larga;
Tira-me, ó Deus, este fardo
Tão pesado e tão amargo,
Que morro porque não morro.

(…)

The Ecstasy of Saint Teresa by Gian Lorenzo Bernini

The Ecstasy of Saint Teresa by Gian Lorenzo Bernini

 

O golpe será no congresso; seu líder é José Serra.

Dos líderes de oposição aos governos nacionalistas recentes o mais capaz é José Serra. Não porque ele seja viável eleitoralmente em nível nacional, mas porque é muito laborioso, tem interlocução direta com os interesses externos e com os chefes da imprensa mainstream brasileira. Ele é o político mais maquiavélico que se viu nos últimos quarenta anos, o que é um elogio.

É óbvia a articulação mediática-judicial para dar as condições do golpe de Estado que deporá a Presidenta Dilma. Por cálculo, percebeu-se o risco da deposição puramente judicial num colegiado. Tanto pode haver minorias contrárias, quanto pode haver conflitos e constrangimentos decorrentes do expurgo baseado em nada.

Soma-se outro inconveniente à deposição por meio de tribunal: quem assume depois do golpe. Nessa modalidade, as hipóteses são muitas, a dependerem do momento e, o pior, a dependerem muitas vezes de nada suficientemente previsível. Hoje, a imprensa conseguiu conduzir as camadas médias a tal loucura, que eleições podem ser indesejáveis, na medida em que, por exemplo, ex-militar nazista do Rio de Janeiro é viável, ambientalista criacionista do Acre é viável.

No início do planejamento golpista, adotou-se uma estratégia muito sagaz, segundo a qual todas as linhas se tentariam e seriam auxiliares umas das outras. Aproximado o desfecho, a coisa seguiria a que se tivesse mostrado mais viável e menos custosa.

O conúbio judicial-mediático foi essencial, mas não como o algoz que empunhará o machado a decapitar a Presidenta. A famosa operação lava-jato, conduzida com tantas violações a garantias constitucionais quanto garantias há na constituição, serviu a muito mais inteligente propósito que envolver pessoas do PT ou mesmo sequestrar por um dia o ex-Presidente Lula.

A lava-jato envolveu quase todo o PMDB e adjacentes partidos de aluguel, bem como boa parte do grande capital nacional. Nisso ela foi uma manobra genial.

Essa gente domina o congresso nacional e vê-se na iminência da humilhação judicial instrumental. Só uma pessoal os pode oferecer socorro eficaz: José Serra. Porque ele pode mandar a imprensa parar de repercutir e alimentar o espetáculo de linchamento judicial tático.

Então, José Serra já está acordado com Michel Temer, que estará bem pago com a faixa presidencial e o título; nunca almejou mais, nem seria capaz de ir mais além, realmente. Para dar provas de seu real poder junto à imprensa, Serra providenciou sinais: uma revista da Globo já detalhou esquemas de Aécio neves; um portal de notícias da Folha de São Paulo fez o mesmo.

Ficou claro que, hoje, a opção é pelo golpe via impeachment e que, portanto, o espetáculo judicial de perseguição a Lula, incessantemente mostrado e reapresentado na imprensa, é jogo de cena e meio de desviar atenções e ganhar tempo para a consumação do golpe parlamentar.

Em um governo Temer, Serra seria o poder de fato e poderia consumar seu sempre acalentado projeto de entregar a maior riqueza do país aos interesses externos: o petróleo. Paralelamente a isto, que é o principal, Serra trabalharia com afinco para a aprovação do modelo sonhado pela classe dominante brasileira: o parlamentarismo.

Aprovado o parlamentarismo, ou seja, a democracia sem povo, os riscos da loucura generalizada estariam minimizados, pois o presidente seria figura meramente decorativa.

Dramático é esse iminente desfecho em que um governo foi sitiado e teve retirada qualquer capacidade de reação pelo assalto em várias frentes com a imprensa a fazer bombardeio diário. E patética é a situação de supostos líderes das hostes oposicionistas que se viram enredados no plano de Serra e sumariamente expurgados pela imprensa na reta final.

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