A Poção de Panoramix

Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Terra arrasada, implosão e caos.

Para liquidar um grupo político que se definia basicamente como nacionalista e afastá-lo do governo, deu-se um golpe de Estado judicial, no Brasil. A origem mais remota do movimento golpista é externa, assim como a tecnologia usada, que foi inovadora na nossa história.

A fermentação de grupos burocráticos estatais compostos de fariseus a bradarem méritos, superioridade intelectual e insuscetibilidade de controle social é a técnica da gulenização, que encontra terreno propício nas classes médias altas que infestam as corporações estatais de topo.

Eles fizeram o papel que o parlamento não poderia fazer: demonizaram a política a partir de um moralismo rasteiro e assassino da legalidade. A imprensa ofereceu a ajuda necessária e atuou num conúbio explícito com os gulenistas locais. Esse trabalho serviu e serve aos desígnios de entregar as riquezas nacionais aos grandes interesses externos, cessar as políticas de equalização de distribuição de rendimentos e interditar tentativas de retomada do poder pelos grupos nacionalistas.

O golpe foi resultado de um longo e insistente trabalho de intoxicação das massas pela imprensa mainstream, balizada por um maniqueísmo profundo e indisfarçado. Próximo ao desfecho, o consórcio golpista apostou na estratégia de terra arrasada, que, obviamente, cobrará seu preço.

Um país que ia relativamente bem economicamente – em tempos de crise mundial – foi levado ao caos econômico, tanto por cavalos de Tróia – como o ministro Levy – quanto por um pessimismo mediático diário, parcial e infundado e pela destruição judicial de grandes empresas brasileiras. O parlamento fez sua parte ao instalar a ingovernabilidade, ao trancar as ações governamentais, ao lançar uma chantagem por dia.

As classes médias – já por demais ignorantes e lastimosas da evolução dos mais pobres – foram estimuladas ao exacerbamento das suas piores inclinações originais. O que poderia parecer remoto e absurdo houve afinal: a imprensa levou parte de um grupo geralmente apenas tolo e autorreferente a adentrar o fascismo explícito. Hoje, o ódio cego caracteriza-lhe tanto quanto a tolice e o medo dos pobres.

Sob domínio da narrativa moralizante mediática, as camadas médias vivem o grau zero do pensamento autônomo. Não se sentem privilegiados, porque se acham merecedores. Mas, contraditoriamente, sentem-se quase ricos, porque identificam-se por cima, postura necessária para que temam e repilam fortemente os de baixo. O médio classista assimilou a luta de classes ao contrário, essa é sua tolice fundamental.

O consórcio golpista usou estratégia de terra arrasada: parou o país, fez tudo para uma crise econômica mediana ser uma grande crise, estimulou violações judiciais a garantias fundamentais, cantou a exceção jurídica como algo admirável, estimulou a demonização e criminalização da política, nomeadamente de um partido.

Isso teve consequências: a institucionalidade implodiu. Tratado como uma republiqueta bananeira, o Brasil respondeu à altura, ou seja, como uma republiqueta bananeira. Todo o esforço de propaganda da imprensa para destruir exclusivamente o PT foi parcialmente exitoso, pois não foi apenas este partido o atingido. A histeria moralizante, como estratégia, é algo tão estúpido quanto o quimioterápico, pois a seletividade não passa de aparência, já que tudo e todos morrem.

A democracia representativa está deslegitimizada. Nas eleições municipais no Rio de Janeiro, por exemplo, as abstenções, os votos nulos e brancos somaram 38% do total de aptos a votar, algo sem precedentes e mais que o atingido por algum candidato, em termos absolutos. Ora, em um sistema de voto obrigatório, isso não reflete a raiva contra o partido a, b ou c, isso espelha a raiva contra todos.

Todavia, exceto se rumarmos para um regime abertamente corporativo – um neo fascismo – esse resultado é dramático para quase todos os agentes intermediários que habitam o território da política. Eles não conseguirão movimentar-se em meio à incerteza total gerada pelos plenos poderes de chantagem da imprensa e da inquisição.

Por outro lado, o grupo inquisitorial não quer exercer o poder senão da forma mais cômoda possível, ou seja, sem assumir riscos próprios da atividade política e aqui não falo apenas na indisposição a submeter-se a eleições. É algo mais profundo, algo que se assemelha ao capricho das crianças mimadas, imunes a críticas, imunes ao contraditório pouco mais que formal. Para exercer o mando desde posição tão distante, esse grupo precisaria de uma blindagem mediática ainda maior que a conferida a certo grupo puro sangue de São Paulo.

A imprensa não empenhará tamanha solidariedade a este pessoal, pois é mais arriscado que tratar com os tradicionais políticos, mais habilidosos e mais confiáveis. Além disso, entre os interlocutores privilegiados dos grandes interesses capitalistas externos há muitos que cultivam sincero desprezo por burocratas estatais profissionais, quaisquer que sejam eles, em qualquer nível que estejam. E essas figuras serão ouvidas.

O que se anuncia, em resultado das estratégias usadas para depor um governo legítimo e impedir que ele retorne, é o estado de terra arrasada, o caos, a implosão da institucionalidade, a guerra de todos contra todos pelo butim, a lógica do saque a Constantinopla. Isso em um país com mais de duzentos milhões de habitantes não é repetição de nada, não é farsa, não é tragédia.

São quarenta anos de regresso, numa perspectiva mais ou menos conservadora a partir de quantos anos mais serão necessários para recompormos alguma estabilidade. Isso não é algo que se perceba por balizas ortodoxas, sejam históricas ou ideológicas. É do âmbito do matar para roubar, atitude sempre problemática na economia do roubo, porque um dia faltam aqueles a serem roubados.

Entrega total e democracia seletiva.

O golpe de Estado acontecido no Brasil, agora que consolidada a fase da deposição da Presidente legítima, visa a dois objetivos primordiais: 1) a liquidação dos serviços privados e públicos nacionais, a liquidação das grandes empresas de infraestrutura nacionais, a liquidação de direitos sociais e a venda das jazidas de petróleo; e 2) a inviabilidade de eleições posteriores de quantos forem contra os objetivos descritos no item 1.

Como alguns perceberam e apontaram, o grupo golpista joga na emergência e na conhecida janela de oportunidade de mais ou menos seis meses para a adoção das medidas mais drásticas e nocivas. Há muita pressa para fazer a entrega e o desmonte do Estado enquanto ainda se vive a confusão pós-golpe e o público está inebriado com o discurso histérico de que o mundo está a acabar-se.

Há, todavia, complicadores internos ao grupo que assumiu o poder, posto que não é homogêneo. A interlocução direta com os interesses externos é exclusiva de uma parte da nova sociedade instalada no poder governamental e esta parte, precisamente, quer as privatizações de riquezas e serviços, a quebra das grandes companhias nacionais e a liquidação dos direitos sociais o mais rápido possível.

Este grupo que tem entrada franca em Washington e nas diretorias do grande capital externo não tem a maioria parlamentar, nem consegue seduzir a maioria do povo votante, embora disponha do aparelho mediático e de parte das corporações judiciárias. Os outros sócios do novo poder conseguem fazer maiorias parlamentares e dispõem-se a jogar no tabuleiro da democracia formal.

Em suma, o desmonte do Estado, a entrega das riquezas minerais e o desmonte do sistema de garantias sociais mínimas não interessa na mesma proporção aos dois grandes grupos sócios da tomada do poder governamental. Mas, por um dos grupos deter a imprensa tradicional e o suporte do capital estrangeiro, o balanço de forças mostra-se assimétrico. Assim, o grupo provindo do maior partido político do país vê-se compelido a seguir os ditames dos outros sócios, sob pena de ataques mediáticos  e judiciais insuportáveis.

Ao contrário do que alguns supuseram, a máquina de inabilitação política judicial não estancou, nem estancará agora que se consumou o golpe, pois ela não perdeu a serventia. Essas ameaças continuarão a pesar sobre os integrantes do maior partido, a lembrar-lhes que devem conduzir e implantar as medidas mais duras, impopulares e de lesa-pátria, porque há o risco de serem também expurgados política e criminalmente.

Essa situação leva a concluir que a recolonização do Brasil será, sim, rápida e devastadora, porque o grupo que a queria mais suave não terá como resistir às chantagens dos interlocutores preferenciais dos interesses entreguistas. Nesta perspectiva, apenas reações populares intensas e insistentes poderão travar ou retardar esse processo destrutivo do país minimamente soberano, se houver quem confira coesão à reação.

A par com a chantagem de contenção, feita por um grupo golpista a outro, continua a caça ao ex-Presidente Lula, para inabilitá-lo politicamente e afastá-lo de eleições em 2018, pois teria chances boas, mesmo tendo sido alvo da maior campanha mediática de difamação da história do Brasil. Assim, qualquer candidato que se ofereça para as eleições contra o modelo entreguista que se instalou, deve fazê-lo cautelosamente e a pouco tempo do certame eleitoral, para dificultar a tentativa de destruição de sua imagem ou inabilitação judicial.

 Também é plausível que o novo modelo instalado após o golpe reduza a democracia apenas ao nível formal mais puro. Ou seja, ante o risco de perda eleitoral – porque as propostas são impopulares demais até para quem detém a imprensa – pode-se instalar um sistema seletivo, em que as candidaturas sejam ceifadas judicialmente conforme o risco que apresentem à manutenção do sistema recolonizador.

Assim, a aparência de democracia poderia ser mantida, ou seja, mantidas eleições periódicas em que só concorreriam os previamente autorizados. Seria uma forma clássica de oligarquia de aparência democrática, como nos EUA, por exemplo, em que as restrições de acesso ao poder fazem-se por filtros prévios ao acesso à disputa.

Narcisismo é a neurose do tempo espetacular.

Não disponho de conhecimentos em psicanálise freudiana e lacaniana que me permitam, nem me sugiram, falar de narcisismo sob esta perspectiva pura. Narcisismo, embora impreciso e ambíguo conceitualmente, será usado sem pretensões de rigor teórico, portanto.

Identifico muito essa subjetividade narcísica com puerilidade, com desenvolvimento incompleto das pessoas mental e corporal. Pode ter algo a ver com substituição de pulsões e parece-me razoável supor que o narcísico tem muito a ver com a ausência de uma erótica, por ele substituída.

Em perspectiva psico-social, o espelho não é sua melhor metáfora, embora pictoricamente não haja outra mais bela e sugestiva. A parede é sua melhor metáfora, porque é o que faz a reflexão do som, veículo físico do discurso. No discurso, mais que na gestualística ou na indumentária, manifesta-se evidentemente o narcisismo como motor da ação. Esse discurso, na verdade, não é comunicação, ele não tem nem precisa de dialeticidade alguma.

O narcísico não precisa de aprovação ou desaprovação, ele precisa discursar, deitar fora uma narrativa que ele escuta atentamente, para ajustá-la mais e mais à sua satisfação, ao seu gozo de impor um discurso que não demanda feed back. Ao prazer narcísico basta obrigar o outro a escutar o discurso, via de regra uma narrativa dentro do acervo de taras normalizadas do emissor.

Nisso, faço um pequeno parêntesis para dizer que precisamente no aspecto antes apontado o narcisismo é muito cansativo nas relações cotidianas, pois leva pessoas a falarem longamente e frequentemente suas invariáveis taras.

Confunde-se com oportunismo, se pensarmos em móveis da ação humana que visa a prestígio e protagonismo, principalmente em momentos de confusão que, na dinâmica espetacular, tendem a ser todos. O discurso narcisista destaca-se, nesses dias atuais de golpe de Estado no Brasil.

A forma que assume é de análise arguta das sutilezas dos movimentos táticos acontecidos no processo. E esta análise é sempre conduzida no âmbito jurídico, segundo a lógica de tribunal, numa dialética previsível em que antecipações de movimentos pequenos são anunciadas como o caminho para as Índias.

 É interessante notar que essas análises descritivas são muito sagazes e corretas, no que são descritivas de um aspecto marginal do processo, geralmente bastante previsível, o jurídico. É o prazer do jogador de tabuleiro, enfim, de que o enxadrista é o protótipo. Jogo chato e tendente à autocelebração, foi alçado a grande metáfora da inteligência…

Esse despejar de analises descritivas argutas, precisas, que apontam o que houve e porque e dizem o que haverá em seguida no microssistema jurídico, é muito narcísico e o não comportar objeções evidencia-o. Não são coisas objetáveis porque geralmente exatas, factuais e não teóricas ou argumentativas. Claro que o analista não aceitará que sua análise descritiva não é uma proposição teórica ou mesmo que não é mais que constatação pontual, mesmo que inteligentemente construída.

Na situação política atual do Brasil, o predomínio deste jogo circular que toma o jurídico como âmbito exclusivo será danoso para a compreensão do processo político e histórico e retardará, senão impedirá, alguma reação ao projeto entreguista do país. Por outro lado, é receita quase certa de sucesso fugaz para seus praticantes, que brilham no ambiente espetacular que adora os narcisismos difusos.

Moralismo, a condição da pendularidade.

A regra do jogo está dada há mais de dois mil anos; o neo-platonismo do cristianismo nascente consolidou-a com o matrimônio de helenismo tardio mistificante e judaísmo. Essa é nossa condicionante mais ampla e, dentro dela, o moralismo a mais presente.

A perplexidade de muitos com o golpe de Estado acontecido no Brasil, a vitimar a democracia, a antecipar o perecimento da soberania, do patrimônio nacional e dos direitos sociais tem ensejado análises variadas. Claro que análises a partir da perplexidade ou surpresa provém do que se pode chamar campo esquerdista.

Algo é comum à maioria destas análises: a afirmação de erros do PT – partido alvo do golpismo de inspiração externa – e da consequente necessidade de realizar mea culpa. Ora, a presença constante destes dois elementos revela que as análises não percebem o modelo maior em que tudo está inserido e são impregnadas de moralismo.

A questão do cometimento de erros é de uma banalidade imensa e os analistas parecem esquecer-se que o erro, além de sempre presente nos processos históricos e políticos, é algo que individualmente dilui-se a ponto de apagar-se. O erro, como opção equivocada, é algo muito micro no contexto geral. O processo, visto de longe, já trás os erros, na medida em que traz suas condições prévias.

A conquista do poder e a tentativa de sua manutenção operando-se dentro das balizas discursivas da normalidade aceite traz o risco da pendularidade. Cedo ou tarde, a mesma base discursiva usada para alcançar o poder será usada para a derrubada do primeiro grupo. Ora, no caso específico, o PT serviu-se de discurso moralizante, acusando a cleptocracia que ele veio a apear temporariamente.

Foi deposto o governo a partir de uma situação de histeria generalizada criada pela mesma matriz discursiva moralizante. Pouco importam as diferenças qualitativas e quantitativas entre os dois grupos, ou seja, que um deles não tenha praticado desvios ou os tenha praticado em menores níveis. Um dos grupos dispõe da imprensa e, portanto, a verdade dele constrói-se como se quiser.

Mas, a política como campeonato de moral é um sistema que traz ínsitas as condições da pendularidade e assim os golpes nada têm de estranhos, mesmo quando vestem poucos disfarces. Eles ocorrerão sempre que a conquista e a manutenção do poder fundar-se na lógica do campeonato de ladroagem. A política assim baseada fragiliza-se e dá as condições para as ruturas periódicas.

Há uma diferença de oportunidades, porém. Aquilo que se chamam esquerdas – nacionalistas acho melhor – leva muito tempo a fermentar o caldo da narrativa acusatória moralista contra os grupos políticos que servem majoritariamente aos interesses do grande capital interno e externo. Ela não dispõe da grande imprensa, como é óbvio, e por isso seus períodos no poder são fugazes.

Depois de depostos governos nacionalistas, viceja o discurso do mea culpa e a piedosa assunção de erros. Isso, como é feito dentro do modelo moralizante, sem muita inteligência e sem nenhuma sinceridade, portanto, é uma inutilidade, tanto tática, como estratégica.

Mas, as personagens sentem-se reduzidas sem erros e sem pedidos de desculpas, porque o homem prefere dizer-se pecador a reconhecer-se mera engrenagem histórica; prefere o protagonismo, mesmo que seja na afirmação do cometimento de erros que nem compreende bem, a dizer que os erros são nada mais que consequências necessárias de causas previsíveis. É óbvio que pautar tudo pelo moralismo é andar numa linha de sucessivas quedas.

Os poderes longamente mantidos nunca se apoiaram no moralismo. Apoiaram-se na conquista, nas forças armadas, no domínio das corporações burocráticas estatais e no domínio da imprensa. A política consiste em escolhas que devem ser impostas por um grupo a outro e na exposição de quais benefícios resultarão destas escolhas e para quem; ela não é, enfim, uma disputa de probidade ou de moralismo.

A probidade dos gestores públicos é, de forma geral, em perspectiva histórica, um problema menor. Sempre houve e sempre haverá que se corrompa e quem desvie dinheiros públicos e isso obedece a um padrão relativamente estável. No caso de gestores públicos, a raiz do problema está no financiamento de campanhas eleitorais e na promiscuidade público privada: onde houver dinheiro e contratos, haverá subornos.

É previsível que os nacionalistas – esquerda, se se preferir – tentarão reerguer-se atuando no mesmo modelo, o que significa que, sem dispor dos construtores de narrativas – imprensa e corporações judiciais – isso demorará muito.

Empobreçam, pelo bem do mundo!

Uma idéia inteligente pode ser enunciada como pérola de hipocrisia, se forem relativizadas as condicionantes históricas que gravitam em torno a ela. Os tempos presentes fornecem um exemplo: o esgotamento de recursos naturais do planeta e a degradação de qualidade de vida e o que seriam causas e soluções.

A degeneração das proposições encontra-se com alguma facilidade se se puserem as coisas em perspectiva cronológica, se se indagar quem deu causas e de quem é razoável pedir que dê soluções ou aja para minimizar efeitos. A estas ponderações matizantes opõe-se a propositura da idéia e das soluções como absolutos atemporais.

De tempos em tempos repete-se a obviedade – pouco percebida pelo grande número, é verdade – de que o modelo consumista esgota as possibilidade naturais do planeta e degrada a qualidade de vida das pessoas, sobretudo no plano psicológico. Em sequência a esta enunciação, vem a conclusão: a única saída para estancar estes processos é consumir menos. Isso é evidente.

Ocorre, inicialmente, que esses discursos não distinguem, na maioria das variações disponíveis, consumismo como fetiche inercial da sociedade de massas de consumo dos que recentemente passaram a poder consumir. Esta última ocorrência dá-se nos grupos dos que ascenderam economicamente em dado lugar e época e puseram-se a suprir necessidades que, para os grupos superiores, já haviam sido supridas e incorporadas ao normal da vida.

Contingentes enormes, na Ásia, na África e na América do Sul foram apresentados à possibilidade de terem coisas em suas casas, daquelas consideradas básicas nas classes médias de seus países e básicas em quase todas as classes nos países europeus e norte-americanos, exceptuando-se o México, claro. Esses contingentes tinham e têm uma imensa propensão marginal ao consumo, na medida em que partem de patamares muito baixos.

Assim, o discurso contrário ao consumismo – sem fazer a distinção para consumo, porque esta sutileza esclareceria o alcance da idéia – é profundamente desonesto, porque é uma proposta de moratória geral excludente. O geral aplicado a situações díspares e assimétricas é nada mais que desonestidade e hipocrisia.

Não haverá como exigir da China e da Índia, para ficar em dois exemplos, que travem o processo de melhora de condições materiais de centenas de milhões de pessoas que, há muito pouco, viviam deveras precariamente. Nem se lançando mão da chantagem ecológica será possível convencê-los a estancar este processo. Digo chantagem ecológica porque este argumento, usado nestas condições e com estas finalidades, é chantagem mesmo.

Os lugares que primeiramente viram o desenvolvimento industrial e que proveram as massas com máquinas de utilidade rapidamente integradas ao normal de subsistência são os responsáveis pelas maiores agressões ao meio ambiente, o que é uma obviedade. E, a agravar, observa-se que as degradações provenientes de exploração direta de recursos naturais foram mais intensas fora desses países.

Nesse panorama, é muito hipócrita até pelos elásticos parâmetros da nossa cultura judaico-cristã, que tem a hipocrisia como um dos pilares, exigir de todos sacrifícios iguais, como se todos se tivessem beneficiado igualmente da extração de recursos naturais do planeta.

O empobrecimento – forma alternativa de dizer travagem ao consumismo e ao consumo – é a única resposta eficaz para o problema do esgotamento do planeta e da qualidade de vida inclusivamente psíquica. Todavia, sua proposta, assim muito simplesmente, como um absoluto, sem exceções ditadas por condicionantes histórico econômicas, é mais do mesmo banditismo imperialista de sempre.

Terror espetacular e presente contínuo.

O tempo cotidiano tornou-se algo confuso, desde o final da primeira grande guerra mundial. À sua aparente aceleração, percebida na sucessão vertiginosa de acontecimentos, corresponde, vistas as coisas mais ao de longe, o estabelecimento de uma espécie de presente contínuo.

Esta aceleração de acontecimentos foi tamanha que eles perderam significação na mesma progressão e perderam realidade. Foram oferecidos pelo sistema de comunicações do poder real e passaram a ser demandados pelos receptores da avalancha de informações. Resultou que, na percepção geral, esses acontecimentos não se ligam uns a outros, embora a narrativa de sua conexão também seja fornecida.

Várias coisas expostas juntas, da mesma maneira, tendem a parecer-se, por mais díspares que sejam. Assim, fatos da natureza, fatos políticos, fatos criminosos, fatos bélicos, fatos banais, tudo isso mostrado em constante e turbulenta sucessão, serão, ao mesmo tempo, conectados e desconectados. A conexão encontra-se no fornecedor, que faz a escolha deste modo operante de dar informações.

A desconexão é própria da falta de identidade de coisas por si díspares. Ela é real e, talvez, a única realidade nisso que se mostra. A narrativa oficial – não há termo mais adequado – proveniente dos media é também real, por assim ter-se tornado, construindo-se a si mesma. Porém, como discurso descritivo, nada tem de realidade.

O poder real e seus meios de comunicações divertem-se, creio eu, a seguir roteiros claramente enunciados e descritos por autores que foram lidos por poucos. Eles disseram, poucos os leram, pouquíssimos os compreenderam. Assim, é muito seguro fazer o mesmo de sempre, o que já foi descrito como estratégia de confusão e alienação.

Por conta de meia dúzia de tolos ou loucos que criam e reproduzem estórias de autópsias em seres extraterrestres, segredos ocultos em edificações e mundos submersos, todo um conjunto de escritos onde se entreveem aspectos da realidade da ação do poder real são postos na mesma bandeja e estigmatizados como teorias da conspiração.

As melhores aproximações da verdade, as maiores percepções de pedaços das tramas porque age o poder real, recebem rótulos de teorias conspiratórias e o consequente descrédito. Algumas, que não se conseguem ridicularizar facilmente, sofrem a objeção da falta de conclusões. Objeção pueril, posto que as teorias de conspiração nada tem de teorias, pois consistem em narrações descritivas; elas não visam ao fornecimento de conclusões.

Os chamados atentados terroristas, por exemplo, e especificamente os mais recentes em França, têm algo em comum: serviram aos interesses do governo francês, mais que a qualquer outro. Esses acontecimentos são sempre reivindicados por alguma organização, invariavelmente chamada de islamita radical, embora isso seja um significante sem significado. Ora, os atentados não revertem em qualquer benefício para essas tais organizações!

Ou seja, é preciso acreditar que provém das tais organizações islamitas radicais e, ao mesmo tempo, não, porque atenderiam apenas aos interesses pontuais de um sujeito rapidamente descrito como louco. Neste último caso ocorrido em Nice, essa desconexão é deveras evidente. Afirma-se que uma organização – essa gente do poder real tem o fetiche da organização – reivindicou o tal atentado, praticado de maneira muito criativa e incomum.

Ocorre que a personalidade criminosa e desviante do suposto autor individual é criada da forma clássica descrita por Foucault. Inicia-se a deposição de camadas descritivas de aspectos e fatos passados do fulano, de forma a tecer-lhe um perfil psicológico que se aceita como próprio do criminoso. Chega-se a isso mesmo relacionando coisas absolutamente sem relação, como são, por exemplo, as inclinações sexuais do fulano.

O jogo das contradições está presente, como sempre. E elas servem, paradoxalmente, para conferir coerência, algo extraordinário e possível neste ambiente de confusão espetacular. O sujeito é autor do atentado porque sua personalidade – criada a partir da enumeração de fatos desconexos a que se confere aparente conexão apenas por efeito da enumeração sequencial – era já criminosa.

Ocorre que, ao mesmo tempo, o sujeito é autor do atentado porque trabalha ou serve a uma organização cujas finalidades nada têm com a personalidade anteriormente e a priori criminosa do seu agente! Afinal, ele serve a si mesmo e a suas inclinações criminosas apriorísticas – reveladas por sua ambiguidade sexual – ou serve a uma organização que, como tal, deve-se supor movida por desígnios organizados?

Evidentemente que se objetará a perfeita coerência que há em uma organização servir-se de um maluco ou desviante em geral para seus fins terroristas. Faria sentido se sempre ocorresse assim e se as recompensas houvesse para ambos, no mesmo sentido. Ora, se o móvel da ação é basicamente subjetivo, psicológico, não há porque por-se a serviço de outro móvel, uma vez que o primeiro basta-se.

Mais relevante a se considerar são os efeitos destas ações. A França sairia do estado de emergência decretado pelo governo, em 26 de julho próximo. Agora, continuará em estado de emergência por mais seis meses, o que é ótimo para a celebração de contratos relativos a defesa e segurança sem que se oponham maiores questionamentos sobre utilidade e custos, para ficarmos em dois aspectos mais evidentes.

O poder real gosta de regimes autocráticos – evidentes ou disfarçados de democracias em momentânea suspensão – e o estado de emergência tendente à continuação é perfeito para que os objetivos do poder real sigam a serem atingidos com nenhuma objeção e com uma boa desculpa aparente: não se metam nisso, estamos cuidando da sua segurança!

Por mais que haja conflitos de interesses entre grupos definidos por matriz religiosa, como na objeção entre cristão e islamitas, não é razoável supor que estes grupos acreditem na utilidade de escaramuças que matam poucas pessoas. Isso, principalmente se se diz tratar-se de grupos organizados, com sofisticados meios de infiltração, de comunicações, de estocagem de armamentos, de explosivos e que tais. A ineficácia do ato terrorista contradiz o nível de sofisticação e organização que teriam.

Matar cem ou oitenta ou duzentas pessoas na França é dramático, mas o que isso traz de benefícios a qualquer grupo islâmico organizado que queira impor derrotas ao mundo europeu de matriz cultural cristã? Alguém dirá que esta assimetria em relação aos modos civilizados europeus – que consistem em despejar bombas de 500 Kgs guiadas a laser ou GPS – deve-se aos meios que cada parte possui.

Ora, mas anteriormente aceitou-se que os tais grupos islâmicos organizados têm enormes meios, pois são capazes de proezas fantásticas. Eles já sequestraram quatro aviões simultaneamente, nos EUA, com sequestradores que aprenderam a pilotar aviões em quinze dias; meteram um avião na sede do poder militar norte-americano, que tem defesas anti-aéreas, infiltraram agentes munidos de fuzis de assalto com sete quilos de aço em boate com detetores de metais e por aí vai…

O pior de tudo é ter de supor que esse pessoal, tão capaz para certas coisas e tão munido de audácia, é extremamente burro no que tange a calcular resultados, mesmo dispondo de toda a história para fornecer-lhes balizas seguras para tais análises.

Todos contra todos.

A contradição aparente permeia os processos desenvolvidos na dinâmica do espetáculo. No seu aspecto funcional, mostra-se muito óbvia: acrescenta camadas de confusão e, principalmente, de confusão cambiante. Cumpre, pois, a importante função de impedir ou, no mínimo, dificultar a percepção clara dos acontecimentos.

Porém, essas contradições são reais também, mesmo não deixando de ser aparentes. Conforme se as observe de perspectiva dinâmica ou estática, elas mostram-se aparentes ou reais, pois têm essas duas faces. Advirto que aparente não é o contrário de real, ou seja, não estou propondo uma oposição entre existência e inexistência, até porque à inexistência nada se opõe.

No processo em que se desenvolve o golpe de Estado no Brasil, parece ter-se chegado à fase da guerra interna total, do todos contra todos. Como supõe-se que os grupos envolvidos estão unidos para a consecução do fim, surge perplexidade quando suas comunhões de interesses mostram-se relativamente frágeis.

Na verdade, há três grandes grupos, ou linhas de atuação, que agem paralelamente e ajudam-se mutuamente em várias ocasiões. Porém, embora em última análise todos sirvam a um mesmo comando central, não é verdadeiro que suas relações sejam isentas de conflitos.

A finalidade primária do golpe de Estado é entregar aos estrangeiros as reservas de petróleo brasileiras e, subsidiariamente, desmontar outras articulações da soberania nacional, como as pesquisas nucleares e o reequipamento das forças armadas. Isso, em suma, é o que importa ao comando central do golpe, que não está no Brasil.

De certa forma, é possível afirmar a preponderância, entre os grupos operadores internos, da imprensa tradicional. Ela é que desencadeia os processos de destruição seletiva de pessoas ou grupos e ela é que protege também seletivamente pessoas e grupos. Ou seja, é o grupo agente mais ativamente definidor de estratégias e, por isso mesmo, o que mantém ligações mais estreitas com o comando externo.

A imprensa tradicional articula-se muito intimamente ao setor financeiro internacionalizado, ao mesmo tempo em que suga avidamente recursos públicos para suprir suas necessidades de fluxos de caixa. Sem publicidade estatal, estariam todos os principais meios golpistas impressos ou televisivos à beira da quebra.

Os grupos judicial e político, em condições ideais, conduziriam uma operação de destruição controlada dos representantes de interesses nacionalistas. Isto, porém, não foi possível. Dois fatores subjazem a esta impossibilidade: a enorme permeabilidade dos interesses políticos e o farisaísmo profundo de muitos agentes do grupo jurídico. Estas condições complicaram o processo.

A complicação do processo golpista, que em muito transmudou-se em algo pior que os célebres processos históricos de expurgos – inquisição católica, terror diretoriano e expurgos de Estaline são exemplos recentes – apresenta um sério problema para os grupos político e judicial, que podem ser inteiramente tragados na esquizofrenia que eles mesmos geraram. Para os interesses externos, contudo, isso não representa problemas; bem ao contrário, o caos serve-lhes bem.

Os grupos que vivem da institucionalidade, seja ela legal ou em fraude à lei, dependem de um mínimo de previsibilidade, algo que foi sumariamente afastado e deu lugar à lógica da espiral persecutória, em que se vive o hoje puro, como prévia de um amanhã inconcebível e incognoscível. É, de fato, estranho e contraditório que grupos dependentes do Estado trabalhem com afinco para a destruição deste Estado.

A única forma de superação das contradições é por meio da política, que não é atividade de santos nem de bandidos.

Declaração de hipossuficiência intelectual.

DECLARAÇÃO

Eu, Fulano de Tal, brasileiro, casado, funcionário público, residente no município de Qualquer Canto, venho, expressamente, para finalidade de explicar e legitimar minha perplexidade ante o óbvio e previsível que adviria com o golpe de Estado que desejei ardentemente, declarar-me obtuso, ignorante de história antiga e recente e incapaz de pensamento autônomo.

Declaro, outrossim, que sou inteiramente guiado pela narrativa da imprensa, que me faz pensar como se comungasse dos interesses dos super ricos, a ignorar que cada classe tem seus próprios interesses, que são conflitantes com aqueles das demais e principalmente com as de cima.

Declaro-me, ainda, um tolo que é guiado pelo ódio e pelo fugaz e disfarçado anseio de ver os de baixo piores que eu e sempre mais distantes. Que a perspectiva de vê-los mais distantes fez-me esquecer que me distanciaria ainda mais dos mais de cima.

Sigo a declarar que minha memória praticamente inexiste, assim como as percepções que meus órgão sensoriais captam de nada me servem. Olho e não vejo; repito o que me disseram. Não converso com amigos ou próximos; nós todos despejamos uns sobre outros repetições das mesmas fontes. Fazemos ruído, enfim.

Declaro-me a prova acabada de que a figura do mocinho satisfeito, enunciado por José Ortega y Gasset – de quem ouvi falar, porque não leio – é o tipo social dominante. Disseram-me que este tipo é o menino mimado crescido, sujeito de todos os direitos e de nenhuma obrigação; menino mimado que pode invocar o direito à própria ignorância.

Declaro mais que, embora tenha tido educação formal, estudado primário e secundário em escolas de classe média alta, privadas, e tendo estudado curso superior gratuito em faculdade pública, isso de nada me serviu. Não vi o óbvio, ainda que óbvio fosse para quantos pensaram com suas próprias cabeças, mesmo para aqueles que não tiveram educação formal, como eu tive.

Declaro-me um assassino enrustido e envergonhado. Declaro que me move o moralismo, que é coisa próxima à vontade de burlar sem ser descoberto e de celebrar os que burlam sem se deixarem apanhar.

Afirmo que julguei mal o saque aos mais pobres que eu, algo que eu desejava às vezes até abertamente. Não que tenha deixado de o desejar, mas cria que seu resultado seria revertido para mim e não para os que estão acima de mim, o que afinal aconteceu. Declaro-me ignorante, enfim.

Fulano de Tal

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