A Poção de Panoramix

Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A corporação jurídica sequestrou o sistema de resolução de conflitos.

O primeiro sequestro – e talvez o mais grave – foi do termo justiça. A corporação jurídica, com suas origens nítidas nas castas sacerdotais levitas, apropriou-se de uma palavra que sempre remete a muito mais que as simples operações envolvidas na solução de conflitos entre partes.

Justiça, assim sem mais explicações ou considerações sobre significação construída historicamente, faz pensar em absolutos, em resultados emanados de alguma intermediação com o divino. O termo é dos mais equívocos disponíveis e a escolha foi inteligentíssima pela corporação: O que são operações de adequação de fatos a moldes legais e, outras vezes, manifestações de puro capricho e voluntarismo, tornou-se o dito final: justiça.

A reserva de atuação de certas corporações de ofícios gera problemas imensos quando o desempenho destes ofícios sai da esfera puramente privada e torna-se em serviço público. Sequestrado pela corporação, o que deveria ser um serviço passa a ser oportunidade da corporação fazê-lo sob medida para atender apenas a seus interesses, ou primariamente a estes e secundariamente a todo o restante.

No Brasil, como na maioria dos países, as funções de solicitar, defender, acusar e decidir são reservadas aos graduados em direito e algumas exigem também aprovação no exame de suficiência para a advocacia. Nada disso, vistas as coisas de longe, assegura o efeito mágico sempre invocado: qualidade.

Assim é porque o exame afere o que foi desenhado para ser aferido e isso, circunstância e histórico como é, nunca poderá ser um absoluto atemporal. Hoje, para ser mais específico, o famoso exame de ordem dos advogados, assim como os exames de suficiência técnica para cargos públicos, não passam de testes de sagacidade e conhecimento dos modismos mais recentes.

É recomendável que assuntos criminais e outros relacionados a penalização tenham defesas técnicas, tamanhas são as possibilidades de erros formais que dificilmente seriam percebidos pelo acusado. Semelhantemente, causas privadas entre partes de grande capacidade econômica tendem a demandar solicitadores e defensores com alguma técnica, até porque muito será explicado aos julgadores.

A exclusividade do solicitador autorizado pela corporação de ofício justifica-se e recomenda-se numa porção muito pequena dos casos, se virmos a coisa sob a ótica do interesse do solicitante, que raras vezes precisa mesmo de ajuda técnica. Conclui-se que em grande parte é nada mais que reserva de mercado.

Realmente, a enorme maioria das causas a entupirem os tribunais brasileiros envolve o Estado como réu e não apresentam grande complexidade. Quando o Estado é réu é impossível ignorar que o poder judicial entra em cena como instâncias superposta de revisão de decisões administrativas, por menos que isso soe simpático à corporação.

Alguém pede, por exemplo, aposentadoria ao instituto público e tem o pedido negado. Irá ao judicial, depois, repropor a mesma solicitação, talvez com os mesmos documentos. O primeiro pedido não implicou solicitação técnica, apenas preenchimento deste e daquele formulário e apresentação de um e outro documento.

O judicial decidira a partir das mesmas coisas que o postulante dissera nos formulários e a partir de algum documento mais que imporá ao instituto previdenciário que apresente no processo. O que se conclui, por escandaloso que possa parecer, é que se tem a superposição de duas estruturas e, pior, a geração de trabalho simples e de ganho quase certo para solicitadores. Tudo, convém não esquecer, custeado ao final pelo mesmíssimo Estado.

Ou seja, causas de pouca complexidade e enormes volumes deveriam ser propostas sem necessidade de solicitador técnico corporativo, porque o poder judicial, no final das contas, as decide independentemente do que tenham argumentado os solicitadores e os defensores do Estado. A decisão judicial, como quase toda opinião, já está pronta, à espera somente de algum ajuste aqui e acolá.

O que se chama defesa técnica, na enorme maioria dos casos, não passa de um texto pre-fabricado que não será lido. Importantes são informações que as partes podem trazer para o processo e o Estado sempre assume esse ônus quando as detém.

O que se percebe sem muito esforço é que o sistema funciona muito mais em função de seus interesses corporativos que como algo feito sob medida para que a resolução de conflitos possa acontecer de maneira adequada. Mais grave, considerando-se o absurdo número de ações judiciais que envolvem o Estado, é que esta entidade pagará tudo, tanto seus funcionários administrativos, como defensores, como julgadores e pessoal do poder judicial. E pagará os advogados cujo trabalho resume-se a encontrar os clientes.

Essa litigiosidade em bases deformadas e quantidades obscenas revela que ao sistema e à corporação interessam os conflitos, a ambiguidade normativa, a má técnica legislativa, o despreparo dos serviços administrativos e o protagonismo judiciário. Tudo isso junto e preferencialmente sempre crescente, interessa a todos, porque resolvedores de problemas só se justificam se houver sempre problemas.

Isso tende a chegar a certo ponto em que o custo altíssimo em desproporção à utilidade real fica claro. Já se passou, no Brasil, do ponto em que o sistema resolvedor de causas envolvendo o Estado é mais caro que os pagamentos a serem feitos. Isso, porque a história pode ser esquecida e até meio retardada mas nunca travada, cobrará o preço cedo ou tarde.

Protestos de médicos: a corporação contra os pacientes.

De algumas semanas para cá, tem havido protestos contra tudo e contra todos, no Brasil, principalmente nas capitais e cidades de porte médio e grande.

Na esteira da onda protestadora, a corporação médica brasileira resolveu manifestar-se contra a vinda de médicos estrangeiros – nomeadamente cubanos, portugueses e espanhóis – para suprirem a evidente carência destes profissionais no Brasil.

No Brasil, faltam médicos nos locais mais remotos e mesmo nos grandes centros, o atendimento dos serviços de saúde é deficiente. Os estrangeiros irão precisamente para os lugares que os brasileiros não querem ir, nem mesmo por salários em torno a R$ 25.000,00 (10.000 euros).

O que fica evidente é que a corporação defende somente seus interesses pecuniários e não o principal, que são os interesses dos pacientes que deles dependem.

É perfeitamente lícito defender os próprios interesses e a pretensão de ganhar mais e mais dinheiro. Todavia, é infame fazê-lo sob falsos e disfarçados argumentos, como está a fazer a corporação médica.

Eles querem manter o mercado sob reserva e captura das suas vontades, mas dizem agir em função do interesse coletivo e da qualidade dos profissionais. Ambos os argumentos são falsos, falaciosos mesmo.

O interesse coletivo atende-se exatamente com o aumento imediato no número de profissionais dispostos ao serviço público e não pela estagnação defendida pela corporação mediante a reserva de mercado.

A qualidade é argumento que me traz à mente o famoso dito dos norte-americanos, de que só se perde o que se tem.

Creio que a corporação está redobrando uma aposta muito perigosa na mentira, no disfarce e na estupidez coletiva. É perigoso, porque basta as pessoas perceberem que do ponto de vista delas é melhor que venha para o Brasil o maior número de médicos possível.

Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica.

Se está acabando el partido, vamos tres a cero, nos ganan los brasileños.

En el salón de mi casa veo la indignación de mis compañeros ante la derrota anunciada. Ya no hay remedio: perdemos. Me cuentan cómo se ha desarrollado el juego, hablan de suerte y desgracia, al parecer, las “canarinhas están en una buena racha. Los escucho por educación, sin inmutarme porque el fútbol no me importa nada. Después de todas las críticas y juramentos de mis compatriotas, enrabietados con la victoria del gran gigante del Sur, pronuncio la frase que da título a este texto:

“Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica”.

—¡No digas eso! —me imploran— pero ya es tarde, mi sentencia cae sobre el murmullo de una sala de estar que ya no quiere ser.

Poco después hago otro comentario mucho más desafortunado:

“Mañana empiezo los trámites para solicitar un pasaporte azul”.

Mis amigos me miran con una mezcla de euforia y decepción.

No me he unido al enemigo, hace tiempo que formo parte de otro equipo,

de otro esquema sociocultural, de otra orilla, que no es la misma que me vio nacer un día.

Yo ya soy del Sur, extranjera, adoptada, inmigrante retornada.

Hace más de un año que volví a España y, desde entonces, el desarraigo

de una “desubicación” exacerbada recorre mi sangre y aviva mis ganas de huir

a cualquier otra parte, lejos de aquí y dentro o cerca de las fronteras del verde Brasil.

Nos ganan, sí, pero no ahora, hace ya tiempo que perdemos todos los enfrentamientos con patrias americanas por goleada. Perdimos hoy, pero también ayer y tal vez mañana.

El deporte, que antes nos beneficiaba, llenando de medallas y gritos de triunfo

un país minado por las deudas, los impagos y los desahucios,

ahora nos expone ante nuestras carencias y temores.

Hoy nos acusa de una mala gestión en el campo de cualquier juego,

mientras Bárcenas se muere de miedo frente a un extraño compañero de celda y

el ciudadano de a pie revienta de rabia frente a sus iguales en el viciado ambiente de todos nuestros bares.

Nos vamos a pique en todas las riberas, el barco no se hunde: se entierra.

No nos ahogamos: nos sepultan.

No nos marchamos: nos expulsan.

No nos morimos: nos marchitan.

El fracaso no lo creemos: no los inculcan.

Um texto de M. E. M. C.

Os manifestantes, do MPL e de todos mais, votam.

Manifestações massivas houve em grande parte das maiores cidades brasileiras e continuam, com maior ou menor força, a depender de que vertente seja considerada. Iniciaram-se a partir do Movimento do Passe Live – MPL, na sigla que facilita tudo e revela o jornalitismo que impregna a escrita. O MPL voltou-se contra um absurdo imenso, que são os preços dos transportes públicos no Brasil, preços que drenam parcela significativa da renda dos usuários e custeiam serviços ruins.

Isso da haver manifestações massivas surpreende uns, desagrada outros e mete medo em alguns. É comum, da parte do governo, minimizar as coisas e da parte das oposições, propor repressão radial, por um lado, e tentar apropriar-se, por outro. As manifestações são movimentos políticos, o que é inescapável e ainda bem que assim é.

Na raiz do MPL está a ascensão de parcelas da pobreza e da classe média muito baixa a condições melhores. Isso ocorreu nos últimos dez anos e pode ser explicitado por números até para os impermeáveis que vivem a vida entre o apartamento de 150 m2, o Land Rover blindado e o shopping center com estacionamento caro e não servido por linhas de ônibus. Se esta gente perceberá mesmo a evidência dos números, é outra coisa.

Mudar ainda que timidamente a estrutura de apropriação de rendas de um país populoso é algo que insere no jogo variáveis com que os mesmos promotores da mudança não contavam. Eles, com as poucas exceções de sempre, pensam em termos organizadinhos demais e ficam pela estória do pessoal estar a comprar mais TVs e geladeiras.

Acontece que o maior consumo de TVs e geladeiras é a parte evidente do encontro dos interesses dos ascendentes e dos sempre estabelecidos. Haverá, sempre, espaços de não intercessão entre os interesses desses grupos. Os vendedores deslocar-se-ão em helicópteros, tratar-se-ão no Sírio ou no Einstein e contarão com uma benevolência inercial quando tiverem que recorrer a serviços públicos não essenciais.

Aí, os interesses desconectam-se. Para quem viu a situação melhorar timidamente no que se refere ao poder aquisitivo, breve será o intervalo para perceber que certas coisas, a despeito da melhora inicialmente mencionada, continuam estruturadas muito mais a favor de quem oferece serviços concedidos, principalmente.

É também muito natural que os governantes se acomodem e creiam que serão endeusados ou pelo menos reconhecidos perpetuamente pelo que já foi obtido. Mas, é sinal forte de vitalidade social pedir mais e isso houve com o MPL.

O desconcerto atingiu, tanto governo, quanto oposição e seu braço condutor, a imprensa. Uma semana intermediou a tomada de posições dessas duas partes envolvidas. Governos, em várias esferas, viram rápido a necessidade de reprimir a crescente violência e vandalismo dos movimentos, mas sem violar a proporcionalidade, como a tinham violado com violência brutal, no início.

Oposição e imprensa levaram aproximadamente uma semana até passar do convite reiterado à repressão brutal à percepção de que podiam apropriar-se dos movimento como se eles fossem à partida, específica e unicamente contra o governo federal. Nesse ponto, recuaram dos convites à repressão e passaram a criar pautas para os movimentos que não eram as deles movimentos.

Do ponto de vista da oposição, abria-se uma maravilhosa janela para inserir algo que nunca têm: povo. A partir daí, seria mais fácil dar a segunda volta do golpe sempre sonhado e trabalhado: tornar a coisa um caso judicial. Daí que inseriram os ovos da serpente: o anti-partidarismo – que nesses casos atende pelo incorreto termo apartidarismo – e a contrariedade a coisas que um movimento de massas não consideraria nem reputaria relevante, como se deu com a artificialíssima objeção à PEC 37.

Tão grande foi o descompasso entre o que os media diziam ser objetivos dos protestos e o que percebem as pessoas e vêem nas TVs, que a coisa revelou-se um tanto absurda. É complicado até para o mais rede globo dos seres negar que usaram de mão muito pesada no viés forçado que deram às coisas. As manifestações iniciadas pelo MPL não eram contra o governo, elas eram para além do governo.

O governo, este insistiu, inicialmente, na tolice de ver somente infiltrados a soldo para desvirtuarem os movimentos. Claro que infiltrados a soldo há muitos, porque Cabo Anselmo não é algo único, mas não é possível, tampouco que Cabo Anselmo seja 100%. Nesse ponto, a Presidente Dilma parece ter percebido com bastante acuidade de que se tratava, e disse haver boa-vontade em conversar com os proponentes reais, disposição de revidar o vandalismo puro e simples e vontade de aperfeiçoar o jogo político.

Sabiamente, o MPL denunciou a inautenticidade da virada à violência que se viu na maior parte dos protestos subsequentes aos momentos iniciais. Isso que se põe sob a sigla MPL quer tarifas de transportes adequadas e quer aprofundamento da democracia. Ora, isso convém aos integrantes deste governo que não tenham sido inteiramente capturados pela autoreferência ou pela inércia do salvador que se crê merecedor de sacrifícios diários no altar da celebração acrítica.

Seria inteligente que o núcleo a pensar o que foram melhoras evidentes nos últimos anos percebesse que seu projeto é deles e dos destinatários também, que são os manifestantes não voltados à porralouquice do contra todos e tudo e contra PEC 37 e outras irrelevâncias deste tipo. Os governantes não terão espaço para querer manter a autocracia. E não terão espaço para querer manter-se no governo se acharem que manifestações são nada, porque afinal eles seriam os depositários da verdade na condução de um povo incapaz de conduzir-se.

Haverá quem o perceba, espero eu. Porque, do contrário, a coisa toda volta a ser o substrato de apoio porralouca ao golpe que se dará contra a maioria, inclusive contra os que foram desempenhar patéticos atos de vandalismo. A parte vândala e pautada por uma lista de prioridade que parece advinda exatamente de onde estaria o alvo da manifestações, essa é massa de manobra clássica e sempre serve ao que se triunfante os porá em situação ainda pior.

Se a lógica formal fosse essa maneira divina de decifrar e expor a realidade, perceberiam todos que os movimentos não são, nem o pedido de derrubada de um governo, nem uma falsificação totalmente manipulada contra o governo. As manifestações – excluindo-se vândalos, infiltrados, neo-nazis e coisas do gênero – são vontade de participar na política, porque querem mais e não aceitam retrocessos, embora essa última negativa ninguém enfatize.

Para o governo hoje chefiado pela Presidente Dilma, o caminho mais sensato a trilhar passa por expurgar os elementos do governo que creem em simplismos e acham conveniente aliar-se à imprensa inimiga para tachar os manifestantes de alienados. E deixar de insistir em dizer -se aberto a conversas com movimentos organizados. Terá que falar com organizados e desorganizados, embora nunca tenha que conversar com criminosos, porraloucas ou nazistas a soldo.

Para a oposição, conviria que deixasse de achar sempre a melhor estratégia o quanto pior melhor. Além de ser facilmente identificável a patifaria, porque o comerciante em prejuízo não ouve conversa besta ideológica, a baderna não agrada a todos e nem sempre é eficaz pô-la na conta do governo, porque há contradições tão grandes que até a proverbial imbecilidade da classe média tem limites e é capaz de ver a farsa, quando evidente demais.

O que o povo quer, deve ser escutado. O mais difícil de tudo é que o médio classista ouve o que lhe diz quem não comunga com ele dos mesmos interesses. O médio classista é o sujeito que abomina o suicídio social, mas está sempre à beira dele por não pensar organizadamente com sua própria cabeça.

Hoje, manter tudo como está implica – a provar o dito proverbial do Príncipe de Salina, ou terá sido Tancredi, não lembro – mudar quase tudo. E, para desespero de quem tentou apropriar-se das manifestações e montar o cavalo selado, mudar tudo para manter tudo é dar mais uma volta nos parafusos da melhora de distribuição de rendas e principalmente no da democracia direta.

A hesitação da Veja e da Globo deixou a classe média sem opinião por uma semana.

Tem havido manifestações em grandes cidades brasileiras, que inicialmente voltavam-se contra os aumentos das passagens de ônibus urbanos. É fora de dúvidas que são preços altos e pesam significativamente nos orçamentos dos usuários. Essas manifestações tomaram dimensões muito grandes e persistem com a força inicial, agora voltadas contra quase tudo que envolva aspectos de interesses individuais e de grupos.

Não compreendo bem as movimentações – que são algo relevante – mas acho realmente difícil e até arrogante pretender compreender coisas assim amplas rapidamente. É preciso perceber, além do presente e dos interesses em jogo, os episódios históricos semelhantes que se podem por como termos de comparação.

Mas, não escrevo para tentar perceber as manifestações, que envolveram muita violência policial, inclusive. Escrevo para rir-me de algo realmente cômico.

Dois meios de comunicação hesitaram por uma semana antes de se posicionarem taxativamente sobre as manifestações, o que deixou a classe média sem ter o que pensar delas também, porque não pensa exceto pelo que pensam para ela.

É verdade que um e outro, isolada e apressadamente, expuseram opiniões advindas das profundezas duodenais. Foi o caso do tolo enfurecido Arnaldo Jabor, que desfiou lugares-comuns como baderna, arruaça e coisas do gênero, aptas a emocionarem seu público cativo de superficiais propensos ao linchamento e à defesa da atividade policial como prende e arrebenta.

Acontece que os patrões, após a hesitação inicial, perceberam que havia dividendos políticos a se obterem da coisa, dizendo, enfim, que era revolta popular contra o governo. Demoraram um pouco, mas perceberam que servia aos designios monômanos de atacar governo que cometeu o pecado de trabalhar mais pelo país que por patrões estrangeiros e promoveu discreta redução nas abissais desigualdades socias.

Não vejo Globo, mas creio que o patético Jabor já deve ter-se desdito, na mesma linguagem tão exasperada quanto cheia de verdades que adota. O patrão dele deve ter-lhe dito da imbecilidade em que incorrera, deixando-se levar pelas categorias poucas que o pautam. Devem ter-lhe dito que a coisa era boa para falar mal do governo e ele, tão gênio, não percebera, mais afeto ao pensamento duodenal que ao cerebral.

O caso é que comicamente, por uma semana, era impossível encontrar alguém com opinião sobre as manifestações, porque a Veja e a Globo ainda não lhas tinha fornecido.

Antes do nada era qualquer outra coisa…

Há vários interlocutores condicionados por sistemas axiomáticos de matriz judáico-cristã com que tenho algum contato. Vez e outra, convidam-me ou insinuam o entabulamento de alguma conversa que será conduzida inexoravelmente para alguma coisa do velho texto da bíblia hebráica.

Uns dominam a axiomática derivada desses textos e alguma coisa de Aristóteles, além de terem sinceros propósitos conversadores, mesmo que cheios do final, ou seja, cheios previamente de verdades. Eles gostam essencialmente da conversa e devem achar bom o feed-back de lógica formal que não me é muito difícil dar-lhes.

Com esse primeiro tipo, converso de bom grado, evito os axiomas em si e fico pela laterais a saborear uma e outra operaçãozinha silogística em que conclusões fecham bonitinhas porque as premissas foram bem colocadas. Não ponho em causa as premissas, nem digo que afinal outras dariam conclusões também perfeitas.

Essas pessoas percebem mal que giram na regressão infinita ou, melhor dizendo, que evitam a regressão infinita como se fosse possível parar o infinito em apenas um dos lados.

Dia desses, meu interlocutor queria conversar sobre criacionismo e dizer que era absurdo o modelo do big bang – e tenho certeza que ele e eu ignoramos o Big-Bang na mesma e profunda medida – porque esta criação retrocederia ao nada.

Ainda pensei dizer-lhe que esse nada inicial era a mesma coisa que a Deidade inicial, estaríamos sempre e ainda com o modelinho causual aristotélico. Fôssemos com criação divina, fôssemos com Big-Bang, iríamos sempre tentar travar a regressão infinita num termo ou causa inicial. No fundo, era o mesmo, mas dizê-lo, assim sem mais, era apostatar e escandalizar o interlocutor contra que nada tenho.

Meu conversador indagava o que haveria antes do Big-Bang e isso não era armadilha intelectual, nem triunfalismo prévio do sujeito a gozar o esmagamento do outro por uma verdade pesada; era o dizer sincero de um homem preocupado com isso e disposto a encontrar alguém disposto à conversa e munido de algumas habilidades para o joguinho de causas, efeitos, exclusões.

Assim, ele fixava a criação divina, algo que não me escandaliza, nem me parece mais nem menos plausível que qualquer outra coisa. Mas, não digo isso, pelo menos a quem acho merecedor de respeito. E também não o digo a quem não acho merecedor de respeito, mas por razões diferentes, é claro.

O problema da criação é tão complicado que para mim é melhor posto como um não problema. Qualquer que seja a fórmula, ela é objetável pela evidente insinuação da regressão infinita, porque uma linha – e tempo pode ser precariamente visto assim – infinita não o é apenas num sentido, senão não seria infinita.

Se o sujeito tem fixação fetichista com começo, pouco importa onde o situe, mas importa logicamente que aceite um fim também. Como o fim não é aceite – nem na axiomática que crê numa parusia, posto que ela é fim num plano mas não no todo – o início tampouco é concebível: não há infinito só para um lado.

É claro que pôr um Deus ou o Big-Bang no início permite, para ambos, que se pergunte o que havia antes. Não é um Deus inicial que inibe a regressão, porque virá inexoravelmente a questão do que ensejou este Deus. Assim, no fundo, as duas proposições serão quase as mesmas, com diferenças de graus poéticos e públicos visados. Dá no mesmo, porque Deus ou Big-Bang, ambos podem ter ou não antecedentes.

Há, porém, outro tipo de sujeito conduzido pela axiomática religiosa, assim como outros conduzidos pelas variantes da religiosidade científica. Interessa-me o tipo conduzido pela axiomática judaíco-cristã que, ao invés de diretamente querer falar da criação a partir dos velhos textos genéticos quer transbordar seus valores vulgares a partir de frases feitas, de lugares-comuns, enfim.

Esse segundo tipo tem especial predileção por frases de efeito e especial aversão pelo pensamento um grau mais livre que a média do vulgo. É, basicamente, para não ficar a teorizar nem a colecionar exemplos muitos, o sujeito que gosta de dizer que política e religião não se discutem, que gostos não se discutem, que todo sujeito com mais de trinta anos torna-se conservador se não for burro, que um revolucionário acaba-se aos trinta anos e outras vulgaridades, tão comuns e aceites quanto tolas.

O colecionador de frases é o sujeito crente que as pessoas tendem a tornar-se ele e seus modelos e cheio de júbilo ao perceber um e outro caso que seriam gloriosas conversões próximas à mediocridade reinante e indicadora da normalidade a ser atingida.

Realmente, daria quilômetros de texto o estudo da satisfação do vulgo com o que ele acha oportunidades próximas de converter mais gente à vulgaridade. É a satisfação de quem antevê a conversão do que não compreende para o vocabulário escasso que adota, para o manejo de quatro ou cinco categorias imutáveis de moralidade de escravo, para a tendência ao linchamento e ao julgamento sumário.

O segundo tipo dessa gente caracteriza-se pela falta de autenticidade. São prosélitos da mediocridade, do conservadorismo que se quer disfarçar, da tendência à homogeneização pelo mais baixo, da inutilidade da liberdade de pensamento, do vale-tudo quando se tratar de manter-se a situação social.

Esta falta de autenticidade será revestida de uma mansidão de voz baixa e pausada que não revela conhecimento, mas cálculo frio de dissimulação da coleção de perfídias e baixezas que lhe suportam.

A tolice da frase feita deste tipo é não apenas tolice, mas um deleite de vingança. Os medíocres de todos os tempos e lugares vingam-se, e seu meio preferencial é vaticinar a estupidificação do que não aceitam não ser totalmente vulgar. É a raiva de tudo e todos não serem espelhos de si mesmos.

O homem excelente não se sente atingido por haver o vulgo: ele, talvez, lamente a vulgaridade, mas não a crê contra ele, nem quer ser prosélito do que é, para converter o vulgo. O vulgo, este quer e precisa que vulgares sejam todos.

Voltei, neste escrever, a Ortega y Gasset, como muitas vezes, sem achar que prodigalizo nesse retorno. O homem, referido aos valores, será nobre ou vulgar. Referido a si mesmo, será autêntico ou não autêntico.  

O segundo tipo que desenhei, em traços rápidos, é vulgar e inautêntico. Ele fala de valores moralizantes, o que equivale a falar de nada ou, no máximo, do que acha serem valores, a confundir subjetividades moralizantes e vontade mal disfarçada de homogeneização com valores.

O tipo não tem valores, tem apenas balizas e preconceitos de sobrevivência, recebidos de fora e assimilados sem pensar. Valores são categorias ontológicas e não são axiomas de matriz religiosa e tampouco anti-históricos.

O tipo está em desconformidade consigo próprio, é essencialmente inautêntico, porque insincero ao propor frases feitas e lugares-comuns. Ele não quer que essas tolices sejam modelos do homem excelente, ele quer que todos sejam ele, sem o dizer claramente. Ele proclama a tolerância sem acreditar em milímetro de tolerância e sem nunca ter pensado no que consiste isto.

Ele proclama que não há parâmetros e que gosto não se discute, o que é perto da máxima imbecilidade proponível e ao mesmo tempo não acredita nisso.

O segundo tipo, o axiomático inautêntico, nada discute, não tem gostos, tem raiva profunda e desejo de vingança profundo e fala mansamente. Ele é o tipo apto a vencer…

Talharim com molho de salmão fumado e camarões.

Quando há tempo, gosto de gastá-lo da forma mais trivial possível: no mercado, a perambular e a pegar este e aquele produto, ler de que se compõe, de onde veio. Coisas de quem tem que perambular em uma grande cidade pequena desprovida de uma livraria…

Eis que me deparei com uma embalagem bem simpática de talharim, uma caixa em papel cartão, de bom gosto e simples. Vi que é feito em Recife, o que me surpreendeu um pouco pois não sabia dessa indústria de massas relativamente caras e supostamente de qualidade.

Vi, na lateral da caixinha, que o talharim era koscher, o que me interessou porque o rabino pode ser mais eficaz que a vigilância sanitária e porque revela que visam a clientela usualmente mais exigente. Peguei da caixa e segui a andar e a observá-la. Na outra lateral, havia uma receita, coisa que geralmente pouco me interessa. Mas, essa interessou-me, não para a reproduzir, mas para fazer algo parecido.

Era de um molho com salmão fumado, natas, mostarda em grãos e pimenta do reino moída. O salmão fumado é, ao mesmo tempo, delicado e profundamente saboroso, pelo que se pode usar pouco com grandes resultados. Pensei que esta riqueza de sabor acrescida de outros também muito marcantes, como os da mostarda em grãos e da pimenta podia resultar algo muito pesado. Mesmo que estejamos, hoje, com temperaturas agradabilíssimas à volta de 21º e sejua domingo, não convém uma avalanche de gostos pesados.

Resolvi trocar as natas por creme de leite leve, suprimir a pimenta do reino, trocar a mostarda em grãos por mostarda cremosa de Dijon e colocar o sumo de meia lima da Pérsia, profundamente aromático e enaltecedor do sabor fumado do salmão. E resolvi, ainda, acrescentar um pouco de camarões médios previamente cozidos na água e pouquíssimo sal. Os camarões assim cozidos ficam delicadíssimos em termos gustativos e conseguem impor seu sabor ao molho mesmo com pouca cocção.

Tomei uma caçarola e pus um pouco de azeite e sobre ele quatro dentes de alho e um pouco de cebolinha picadinhos. Fechei a panela e deixei em fogo baixo por quase um minuto. A idéia é cozinhar o alho e a cebolinha, mais que os refogar. Depois, o conteúdo de uma lata de creme de leite magro – 300 gramas – e uma colher de chá bem cheia de mostrada de Dijon. Isso fica a tomar fogo por mais alguns minutos, até levantar fervura e sempre mechendo até engrossar.

Usei duzentos gramas de salmão fumado, que são suficientes para três pessoas, ainda bem porque eis um ingrediente caríssimo por estas plagas. Cortei as lâminas de salmão em quadradinhos pequenos, de menos de um centímetro de lado. Cortei também os camarões em três partes, cada um, já sem cabeças e rabos e descascados.

Foram para a panela os pedacinhos de salmão, de camarão e o sumo de meia lima da Pérsia. Meche-se sempre, sem parar e por pouco tempo, já que tanto peixe, quanto crustáceo já estão cozidos, um em fumaça, outro em água, e precisam de pouco tempo para contaminar tudo com seus sabores.

Tudo pronto, põe-se o talharim no prato, espalha-se o molho por cima e polvilha-se com pouco queijo parmesão ralado, que não chegará a derreter, o que somente ocorre se o quijo for muito ordinário. Por cima de tudo, pedacinhos bem pequenos de tomates secos. Acompanhamos com um chileno de uvas Merlot, pouco mais que razoável, mas resultou fantástico.

O crime no criminoso. Ou como o vulgo aprendeu a julgar.

Das piores experiências que há é esperar horas em consultório médico. Se o consultório for de ginecologista ou obstetra e tiver a sala de espera pequena, é pior. Não é apenas que haja muitas mulheres reunidas em pouco espaço e entregues à monomania da gestação, há mais.

Circunstancialmente, nestas plagas, as pessoas, todas elas quase, são dadas a falarem muito alto, o que me incomoda profundamente, mesmo sendo parcialmente surdo. Ao telefone, berram como se falassem a quilômetros de distância; a qualquer pretexto, falam como a convidarem os presentes, avidamente, para entabular conversa. Para quem está geralmente bem consigo em silêncio, é desafiador.

Mas, o pior constrói-se em camadas – como a personalidade do criminoso – e temos então a televisão, presente em todas as salas de espera, assim como as revistas de fotografias de atores de novelas e membros de realezas supranacionais. A televisão, esta sim é pior que a monomania que une os presentes numa sala de espera.

Há poucos dias, vi-me numa tal situação. Havia duas senhoras que gritavam no seu tom normal de comunicar-se e havia televisão, claro. Era já pelo meio-dia e começava o jornal televisivo das bobagens diárias, que se resumem a crimes, os mais aberrantes possíveis.

A TV noticiava com o escândalo de praxe mais um crime. Uma mulher namorava com seu amante, enquanto o esposo estava fora de casa. Eis que o filho de oito ou dez anos chega em casa e surpreende a traição da mãe. O erro do menino foi ter idade para compreender o fato e isso fechou sua sorte. Para evitar que o menino contasse ao pai, a melhor idéia que a mãe teve foi pedir ao amante que matasse o filho e assim o fulano fez.

Matou o menino e escondeu o corpo, não me lembro mais se enterrou ou pôs num saco, mas isso não importa. Eis o previsível escândalo, pois estava presente o pesar desproporcional de valores e objetivos que leva à comoção. Realmente, no elenco de crimes aptos a comoverem, o infanticídio encontra-se em posição privilegiada, quanto mais se por motivos fúteis.

A mãe e o amante, autores intelectual e material do crime, foram presos, expostos à habitual degradação pública, colocados em pé, lado a lado, enquanto um delegado com pendores artísticos dava entrevista com tudo que não importa ao deslinde de um crime, a expor tudo quanto juridicamente não é relevante. Mas, sabemos que os julgamentos são muito pouco jurídicos…

Nesse ponto, a senhora que falava aos gritos exaltou-se e, aos gritos, claro, começou a verbalizar o que o vulgo foi ensinado a pensar. Dizia, repetindo-se sempre, que o pior de tudo era a frieza da mulher, a secura dela, que não tinha vertido uma mísera lágrima enquanto confessava o crime. E repetia, e repetia, insistindo nisso de frieza e da ausência de lágrimas.

Primeiro, algo deve ser reposto ao seu lugar. Não me interesso por essas coisas como dramas, que são muito comuns. Sob este prisma, não me interessam, por falta de originalidade, por falta de apelo estético. Acontece que me detive a ver a TV e a fazer esforço para compreender o que a TV dizia. Primeiro, a mãe não confessava o crime, absolutamente, antes o negava. Segundo, ela sim chorava.

Isso pouco importa, sabemos, mas foi só um parêntesis. Também pouco importa, felizmente, o que se confessa na polícia, no Brasil, porque depois de uma surra o sujeito diz até ter roubado peças da Apollo 13.

O caso é que a senhora dos berros era todos em forma potenciada. Todos – ou quase todos, para sermos precisos, não indulgentes – criam o criminoso a partir de camadas de comportamentos, o que faz dele o crime. Paradoxalmente, a figura do criminoso, composta a partir de lugares-comuns moralizantes que em rigor nada significam, torna-se autônoma e ao mesmo tempo superposta e identificada ao crime em si.

Havendo uma figura criminosa não poderia ter deixado de haver crime, portanto. Eis a petição de príncipio que funda tudo nos julgamentos a partir de comoção moralizante do vulgo.

Quem olhe a coisa com mais calma sabe que o criminoso falar de um crime com frieza e sem lágrimas muda nada no resultado do crime. Na verdade, do ponto de vista estritamente jurídico, muda nada, tanto no crime, quanto na forma de apreciá-lo para o punir. O que o vulgo começa a colecionar em desimportâncias que o emocionam não constitui agravante nem atenuante do crime e não define absolutamente o tipo e a pena.

Aqui convém dizer que o vulgo a que me refiro não exclui os especialistas que tratarão do crime, aí incluídos polícias, promotores, juízes e advogados. Todos cabem muito confortavelmente no amplo e nunca bem entendido conceito de massa. Ela está sempre em busca de criminosos e quase sempre muito à vontade para deixar o crime em posição secundária.

A construção do criminoso, do sujeito anormal, é algo que lembra Foucault e é dele mesmo que me lembro agora e digo que não se trata de Vigiar e Punir, mas de outra obra, cujo nome não me vem à cabeça agora. O criminoso, nestes casos mais escandalosos a envolverem principalmente parentesco e motivos fúteis, é construído à parte do crime em si, por sucessivas deposições de aspectos de comportamento que isoladamente e até então nada significavam.

Depois de reunidos eles continuam a dizer nada, mas a obra que é a reunião desses comportamentos ganha vida própria, é a forma a tornar-se matéria. Um libelo clássico – seja ele dito em tribunal, na imprensa ou em conversas comuns – compõe-se da memória de que o criminosos maltratava animais na meninice; na juventude era retraído e calado e faltava às missas; nas primícias da idade adulta apresentava sexualidade desviante do número maior; já adulto comia só à mesa e gastava dinheiro demais. Assim, a coleção pode seguir com inúmeras circunstâncias desprovidas de significação para o que se quer dizer.

Essa construção sedimentar pode apontar para a psicopatia, realmente, mas não conduzirá a ela como se se fizesse ciência. Levará à montagem do criminoso, a figura que antecede necessariamente o crime. Com o criminoso pronto e acabado, é certo que há crime, tanto quanto é certo que do crime não se cuida, na verdade.

O crime, previsto em lei a partir de moldes bem estritos, é uma sofisticação descompassada com a sociedade. Ela não quer crimes e punições, ela quer criminosos e linchamentos e entrevistas e comoções e gritos e indignações fugazes à espera das próximas.

A mulher que não chorou ao confessar o assassinato do filho e que o fez friamente, mesmo que assim não tenha sido, é a mesma espectadora que gritou a frieza e ausência de prantos húmidos. Só se constrói o que se sabe, o que se é capaz de fazer a partir dos modelos detidos; assim, o criminoso é ao mesmo tempo um desenho do proscrito anormal e um espelho dos desenhadores.

Ainda pensei em dizer à gritadora: minha senhora, a falta de lágrimas e a frieza na confissão nada mudam no crime, já vi criminosos terríveis chorarem a quase se desidratarem. Mas, seria inútil como mandar soltar um leão enjaulado para enfrentá-lo, e sem a poesia de Cervantes.

No fim das contas, lembro-me de Mersault, que percebeu estar a ser julgado não por ter matado um árabe, mas por não ter chorado no enterro da mãe.

A classe média paga caro.

É moda a classe média brasileira reclamar dos preços de serviços e produtos que adquire e eles são obscenos mesmo. O Brasil ficou caro antes de ficar bom de viver, o que é terrível de perceber para alguém como eu, que verá este país rico, mas provavelmente nunca o verá em padrões adequados de vida e de convívio.

Esses preços altíssimos de que reclama a classe média e que ensejam apropriação política oportunista como discurso oposicionista decorrem da postura dela classe média e das que lhe são superiores em termos de apropriação das rendas. Os estratos médios e altos fizeram tudo à medida para que houvesse o elevadíssimo custo que se vê.

A apropriação política dos altos preços brasileiros é algo que não merece abordagem superficial, como a que fazem meios de comunicação dominantes e imbecilizantes, tão bem aceites nas camadas que mais reclamam. Os media limitam-se à cantilena contra a carga tributária, que é alta, mas é alta para os mais pobres, não propriamente para as classes médias e altas.

A tributação brasileira é profundamente regressiva e violadora do princípio da capacidade contributiva, porque incide maioritariamente sobre o consumo. Sobre rendas e propriedade é muito baixa em termos comparativos. O que se encarece muito por tributos encarece-se igualmente para todos: quando eu, o acionista maior do Banco Itaú e alguém que vive com um salário mínimo compramos um quilo de carne, pagamos todos a mesma coisa em impostos, o que é suma injustiça e não demanda explicações do porque.

Uma parte dos altos preços no Brasil advem de aumento recente da procura, num mercado ávido por consumir, sem conhecimentos e sem parâmetros de comparação. Neste ambiente de elevação dos níveis de renda, é fácil praticar altas margens de lucros; é fácil cobrar caro por produtos e serviços medianos ou ruins.

Outra parte disso advem de custos de logística, o que é deficiência inegável num país que passou trinta anos sem gastar nisso e oito desses trinta a escutar que a milagrosa iniciativa privada gastaria no que o governo inibiu-se em gastar. A iniciativa privada nada mais fez que cobrar pelo uso daquilo que recebeu em concessão sem fazer qualquer investimento adicional.

Outro aspecto – o que os reclamantes não podem ver nem aceitar caso vejam – é a resultante inevitável da armadilha da predação, feita pelos que hoje reclamam e que os aprisionou.

Aqui, convém apontar os três pontos fundamentais do custo elevado de vida da classe média: habitação, educação e saúde.

Os preços de imóveis no Brasil não se explicam a partir da ortodoxia doutrinária. É claro que houve aumento grande da demanda das classes médias baixas ascendentes, forçando um aumento de preços dos imóveis visados por esta camada, mas isso não se aproxima minimamente da absurda valorização dos imóveis destinados às camadas mais altas.

O jogo da elevação de preços de imóveis para classes médias e altas seguiu altivo até níveis impudicos porque gerou ganhos especulativos para os adquirentes. Funciona – ainda – como esquemas de pirâmide, em que fica cada vez mais arriscado para os que entram tardiamente. Qualquer crise de desconfiança pora o esquema abaixo e implicará desvalorização profunda desses imóveis.

Se alguém me diz que, como investimento especulativo, vale à pena comprar imóveis pequenos destinados à classe média baixa porque ela apresenta demanda reprimida, eu acredito, faz sentido. Se, por outro lado, alguém me diz que a valsa de famílias de classes altas a comparem apartamentos imensos por preços superiores aos de Paris continuará até ao infinito, eu começo a desconfiar.

Estes últimos, são imóveis que se pretendem semelhantes àlguma moeda fiduciária que paga juros – como o dólar norte-americano – e isso tende a perder sentido à medida em que alguns se recusam a comprar as promissórias. Não há mesmo muito sentido em famílias terem dois ou três aparatamentos de luxo a acreditarem que outras famílias que também têm dois ou três dos mesmos quererão comprar o quarto.

Ou seja, o problema dos preços obscenos dos imóveis de classe média deve-se muito à atitude predatória da própria classe média e às margens de lucro também obscenas dos construtores. Um castelo de cartas que cairá e será bom que caia.

Com relação aos preços de educação e de saúde, as classes média e alta experimentam o que elas mesmas produziram, porque elas detém o poder político. Deixaram os serviços de educação e de saúde públicos tornarem-se ruins porque puderam fugir deles e fazer o Estado pagar para elas por serviços privados.

Ao mesmo tempo em que relegavam educação e saúde públicas ao sucateamento, porque eram para pobres, criavam formas refinadas de assalto ao Estado para que este lhes financiasse educação e saúde privadas, por meio de subsídios em descontos ficais, em subvenções a entidades privadas supostamente de interesse público, em planos de saúde coparticipados e outras variantes do engenho saqueador nacional.

Daí que o aumento dos preços de escolas particulares e de planos de saúde privada são coisas interiores ao modelo das classes média e alta, em que algumas corporações perceberam que tinham campo para ofertarem limitadamente e com mercado certo os serviços e assim cobrarem o que quisessem. Isso resolve-se muito simplesmente com o recurso ao setor público e quando as classes médias demandarem o Estado ele oferecerá educação e saúde adequadamente.

Há, claro, os pontos de reclamação que são difíceis – para quem honre os lóbulos frontais – de abordar excepto pela mais simples lógica capitalista. Restaurantes caríssimos com refeições medíocres, cafezinhos em aeroportos mais caros que em Heathrow, cerveja ruim a oito reais, tudo isso se arranja com o tempo ou com uma improvável recusa ao absurdo.

Agora, é desonesto não perceber que muito disso deve-se ao jogo criado pelos próprios reclamadores e às margens de lucro obscenas permitidas por um mercado imaturo, deslumbrado, que gasta como se gasta dinheiro roubado, que não tem mesmo qualquer gosto.

É patife por a conta em tributos ou em renda do trabalho, onde os manufaturados ainda são muito mais caros que os serviços, ou seja, onde o capital apropria muito mais que o trabalho.

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