A Poção de Panoramix

Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O pequeno-burguês, a justificação, o exemplo e a tara.

As interdições morais não reduziram a sedução dos interditos, nem visaram a isto. Talvez tenha-se dado precisamente o contrário, o que é muito conforme à percepção do senso comum de que o proibido é mais saboroso. As interdições, em verdade, são impostas exatamente pelo exagerado gosto pelo interdito.

O gosto pequeno-burguês não é temperado pela liberdade, nem pela estética. Ele é curado numa vinha d´alhos de proibição moral, morbidez, sexualidade confusa e, principalmente, necessidade de justificação. O vulgo gosta de sangue, vísceras expostas, cabeças partidas, feridas purulentas, acidentes automobilísticos; gosta de todo tipo de sexo, pois é feito da mesma matéria humana; aprecia o grotesco, o humilhante, as quedas, o ridículo.

Esse acervo de preferências não é exclusivo do pequeno-burguês, porque o feio é parte da realidade e principalmente do que ela tem de natural. Ou seja, o feio é basicamente inumano, não criado, ele é natural como a putrefação. Todas as classes inclinam-se ou pelo menos têm seu número de integrantes que se inclinam ao feio.

Particular da pequena-burguesia é a vergonha e a necessidade de encontrar justificações para sua inclinação para a descomposição, o sangue, as carnes, as fezes, os vermes, o feio natural e fisiológico, enfim. 

As maneiras de justificar a busca e a envergonhada apreciação do feio são sua interdição moral e uma suposta aproximação por busca de conhecimento e fornecimento de exemplos. Ora, é claro que se abordam muito mais à vontade as coisas proibidas que as permitidas e que é livre o uso de qualquer coisa para dar exemplos moralmente edificantes.

Vem-me à memória algo exemplar: nas escolas de direito, é usual haver uma ou duas disciplinas de medicina legal. Há dois pólos centrais de interesse na medicina legal e são as psicopatias e os exames cadavéricos. Por isso, são usuais visitas dos acadêmicos, guiados pelo professor, aos institutos de medicina legal, onde se examinam cadáveres.

Poucas coisas são tão concorridas no curso de direito quanto estas visitas às morgues, onde há cadáveres abertos do externo à virilha, de ombro a ombro, escalpelados, onde há órgão internos a serem pesados, sangue por toda parte.

Embora concorridas estas visitas ao santuário dos corpos mortos e abertos, ninguém diz ter prazer nelas, o que é de uma mendacidade grande até para acadêmicos de direito. Convém dizer que estas visitas aos institutos médicos legais não são obrigatórias e não há sanções para os alunos que não quiserem ir. Quase todos vão, todavia…

Esse gosto tem de justificar-se por um discurso científico, ou seja, os apreciadores de cadáveres abertos dirão que recolheram muitas e preciosas informações naquele espetáculo de corta e costura, dirão que foi muito proveitoso cientificamente e coisas do gênero. Ora, ninguém aprendeu coisa alguma nessas duas horas de contato com a morte talhada, nem poderia, que não há como recolher conhecimentos de anatomia em duas horas.

Nesse ponto, é interessante notar que a única coisa a chegar perto de rivalizar, em volume, com a pornografia, na internet, são as imagens de acidentes com corpos destroçados, sangue, vísceras e coisas do gênero.

Semelhante a esta apreciação da morte justificada por aquisição de conhecimentos científicos, acontece com a interdição moral da homossexualidade. É precisamente esta proibição que permite a abordagem constante do assunto, o eterno retorno ao assunto com uma justificação moralizante.

Na verdade, o mergulho na proibição moral da homossexualidade, interdição nitidamente religiosa, deve-se ao gosto pelo assunto. É interessantíssimo observar uma aberração conceitual muito em moda recentemente, uma coisa que atende pelo nome de cura gay e é divulgada e praticada por pastores reformados neo-pentecostais.

A idéia é absurda, na medida em que não se curam coisas normais, mas isto não é o que interessa aqui. Interessa é que os ferrenhos praticantes da cura gay frequentemente são flagrados na prática de atos homossexuais! Muito frequentemente, na verdade, o que indica, além de sentimento de culpa, o interesse em estar em contato com o assunto com uma justificação, uma desculpa.

Erigiram a justificação moralizante e exemplar em muro a esconder os gostos e desejos reais, inconfessáveis porque o vulgo sente muita vergonha de ser humano.

Vôo MH17 da Malaysian Airlines: mais do mesmo.

O vôo MH17, da Malaysian Airlines cobria a rota Amsterdam – Kuala Lumpur, na quarta-feira passada, quando caiu perto de Donetsk, no sudeste da Ucrânia. Havia a bordo 298 pessoas, somando-se tripulantes e passageiros e todos morreram. Especula-se que foi abatido quando estava em altitude de cruzeiro, algo à volta de 10.500 metros acima do nível do mar.

A região da queda é território de populações maioritariamente russas, que se querem separar da Ucrânia. A vista desta aspiração à separação, as forças armadas ucranianas têm promovido dura repressão na região. Há grupos armados que oferecem resistência às forças ucranianas, embora em franca desproporção. Houve incidente de derrubada um avião militar ucraniano em vôo baixo por separatistas munidos de mísseis anti-aéreos pequenos, guiados por emissões de infravermelho, disparados do ombro.

No mesmo dia em que se soube da queda do avião, órgãos governamentais norte-americanos e europeus, a OTAN e veículos de imprensa norte-americanos e europeus disseram em uníssono que o avião havia sido abatido por mísseis disparados pelos russos.

Os russos em questão, se forem os habitantes da região ucraniana, não têm condições de abater aviões a 10.500m, simplesmente porque os mísseis Igla, de que dispõem, não tem alcance vertical superior a 3.800m. São misseis pequenos e leves, disparados por um homem, do ombro, que servem para alvos a baixa altitude e a curta distância. Os russos de Donetsk não têm baterias de mísseis terra-as – SAM – guiados a radar ativo e com médios e grandes alcances.

Como era absurdo demais até para quem tem a imprensa a favor incondicionalmente, os russos que abateram o avião passaram a ser os propriamente ditos, que o teriam feito desde o território russo. A tese, avançada rapidamente e sem fundamento em qualquer coisa concreta, é tão absurda quanto a primeira. Disseram os governos e repetiram os media, que a coisa tinha sido obra de mísseis Buk, russos, de médio alcance.

O local da queda do avião fica a aproximadamente 60 Km da fronteira com a Rússia. Os mísseis das baterias Buk têm alcance total de 42 Km para aviões e podem atingir alvos voando até a 25.000m. Mesmo que houvesse uma bateria exatamente na fronteira, seria dificílimo um míssil destes conseguir abater o avião. Basta considerarmos o afastamento horizontal de 50 a 60 Km, mais a altitude de 10 Km para percebermos que estava fora do alcance.

Aquela região tem sido evitada por vôos comerciais há algum tempo. Curiosamente, ou estranhamente, dois vôos anteriores da mesma Malaysian, com as mesmas origem e destino, nos dois dias imediatamente anteriores, descreveram rotas ao sul da Ucrânia, por sobre o Mar Negro. O MH17, contrariamente ao que ocorrera dias antes, descreveu uma rota a passar exatamente sobre Donetsk…

As forças armadas ucranianas têm várias baterias de mísseis Buk, como as têm quase todas as ex-repúblicas soviéticas. Especula-se, a partir de comunicado do governo russo, que baterias destas foram deslocadas precisamente para os arredores de Donetsk no princípio desta semana. O ministro da defesa da Rússia afirmou taxativamente que foi detectada atividade de radar de bateria Buk na região.

Baterias de SAM guiados por radar têm algo em comum. Ao contrário de mísseis guiados por buscadores de calor, passivos, os SAM guiados por radar implicam a busca e iluminação do alvo. Ou seja, é preciso ligar o radar de busca, que é bastante potente e tem um padrão de emissões bem conhecido. Esse ativamento do radar de busca da bateria é impossível de ser escondido e os russos certamente o captaram.

Há um boato interessante a dar conta que o avião Boeing 777 da Malaysian foi escoltado por dois caças ucranianos. Pode ser algo a induzir a crer no perigo de voar ali, ou seja a reforçar a tese de que foram as forças armadas russas que abateram o avião. Mas, a ser verdade, já teriam revelado as informações de vídeo e radar dos calças de escolta. Especulando dentro deste boato, se houve mesmo escolta, pode ter sido ela mesma a abater o avião com mísseis IR.

Ao fim e ao cabo, bastaria uma simples pergunta para constatar a absurdidade da atribuição do abate à Rússia: o que ganharia a Rússia abatendo um avião comercial sem finalidades de espionagem e fora de seu espaço aéreo? Nada, evidentemente.

Ou seja, é preciso supor que os russos são absolutamente imbecis para fazerem algo que nenhuma vantagem lhes traz. Ao contrário, os obriga a esforço imenso para dar combate à máquina de desinformação e calúnia que é a imprensa mainstream norte-americana e europeia.

No sentido inverso, é interessante perguntar-se quais vantagens adviriam para os EUA e seus asseclas europeus deste abate: vantagem, no sentido mais imediato, nenhuma, mas dentro de sua habitual lógica, sim. Dá-lhes, como sempre ocorre, um pretexto para escalar a tensão, a instabilidade e, no limite começar uma guerra.

Assim agiram no Iraque, em busca de armas de destruição em massa que não havia. Para justificar a brutal invasão, deixaram ou ajudaram a derrubar edifícios nos EUA, por exemplo. Sempre precisam de um pretexto, porque os mais canalhas andam sempre à espreita de algum argumento moral.

Genocídio de palestinos: hipóteses de cessação.

Que a minha mão direita definhe, ó Jerusalém, se eu me esquecer de ti!
Que a língua se me grude ao céu da boca, se eu não me lembrar de ti, e não considerar Jerusalém a minha maior alegria!
Lembra-te, Senhor, dos edomitas e do que fizeram quando Jerusalém foi destruída, pois gritavam: “Arrasem-na! Arrasem-na até aos alicerces! ”
Ó cidade de Babilônia, destinada à destruição, feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez!
Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha!

(Parte do Salmo 137)

É permitido tirar o corpo e a vida de um gentio.

(Talmude – Sepher ikkarim III c 25)

Há uma gente a viver entre o mediterrâneo e o deserto que antecede ao Levante fértil e que muito honra o profeta Josué, homem profundamente distinguido pelo Deus dele, que parou o curso do sol para que matasse sem impiedade, pois ainda havia inimigos a liquidar. Essa mesma gente prefere perder a mão direita e ter a língua pregada ao céu da boca se porventura esquecer-se de Jerusalém.

Piedosíssimos, tiveram ofertada uma coleção de interpretações rabínicas que os governam, atualmente, em que várias passagens aconselham a morte dos goyim e os comparam a cães, em algumas ocasiões, e a nada, noutras.

Ademais de tão sábios e mansos ensinamentos a serem seguidos, receberam a titularidade de algumas terras diretamente de um zeloso Deus, o mesmo, não convém esquecer, que deteve o curso do sol, porque não deixaria seus escolhidos matarem à noite, porque seria impiedade.

Hoje, constituem um Estado pseudo-moderno: Israel. O exército de Israel, noutra coisa muito simbólica, jura por Masada, a fortaleza onde todos morreram a resistir aos romanos, que reprimiam mais uma confusão feita no seio do Império.

Honraram a promessa e a exortação contidas no Salmo 137. Vingaram-se dos de Babilônio, impondo a esta florescente zona califados maníacos e, por fim, impondo-lhe o caos, a desagregação e a pobreza. Vingaram-se de Tito Flavio Vespasiano e de Roma por meio de um preconceito emanado do judaísmo, que entranhou-se no Império, impôs-lhe a massificação, destruiu o pensamento, introduziu a moralidade do escravo e desmembrou-o.

Nenhum outro grupo invoca a propriedade de terra por outorga divina; pelo menos ninguém o faz sem corar de vergonha se for instado a falar a sério desta invocação. Os grupos humanos detém terras porque nelas estão há tempo, porque as conquistaram pondo a correr os anteriores detentores, porque as acharam vazias e etc. Por mandato divino é realmente tão atrevido quanto ridículo.

Pois bem, hoje o sionismo que dirige a política de Israel promove nova etapa do contínuo genocídio dos palestinos, que ocuparam aquelas terras por mil anos antes do estabelecimento do Estado de Israel. O sionismo é engraçado, pois ao mesmo tempo que se serve da parvoíce do mandato divino, serve-se da desfaçatez total no afã matador.

São profundamente eficazes, pois matam palestinos na razão de 10:1, o que é um êxito sob qualquer critério. E este êxito objetivo é tornado em êxito moral na chamada opinião pública, porque eles detém a comunicação de massas, não apenas por meio da imprensa, mas principalmente por meio da indústria do entretenimento, o que significa a produção cinematográfica e televisiva norte-americanas.

Em termos vulgares, os assassinos que matam dez dos seus inimigos enquanto morre um dos seus são os coitados do mundo. Isso deve-se a ter a indústria de comunicações, como acima dito, deve-se a terem o Holocausto – o fato que mais ajudou o sionismo – e deve-se a terem mais ou menos 50% do sistema bancário mundial. Com tais condições, é possível matar a dez para um e ser vítima para o homem vulgar que se alimenta de jornais e séries televisivas e filmes de Holywood.

Mas, além do objetivo seriamente perseguido de tanger ou eliminar todos os não judeus de Israel, há quem veja nisso a oportunidade de divertir-se de maneira um pouco mais sutil. Eles levam o mundo a discutir seriamente formas de cessar o morticínio e a pensar em todas as maneiras inúteis de estancá-lo.

Só há, em condições limites, uma maneira de cessar alguma belicosidade profunda: a liquidação total de um dos lados. É precisamente o que busca Israel e quando o atingir o problema terá acabado, assim como se terão acabado os palestinos. Claro que a solução, em termos abstratos, poderia dar-se também no sentido inverso, mas isso, em termos práticos, é impossível, porque Israel tem 250 bombas atômicas e os palestinos nem exército têm.

Ou seja, Israel eliminará ou expulsará do território que Deus lhe deu todos os não judeus; isso é questão de tempo. E pouco importa que seja uma matança crudelíssima, a vitimar inicialmente crianças pequenas com bombas de fósforo branca. Os que saberão disso serão tão poucos quanto os que lerão este texto. O vulgo verá foguetes caseiros caindo na periferia de Tel-Aviv e não verá gente a banhar-se tranquilamente nas praias perto de Haifa, nas águas quentes do Mediterrâneo.

Já me permiti cogitar se a detenção da bomba atômica pelos persas não estancaria o afã matador de Israel e cheguei à conclusão que não. Na hipótese de vizinhos tão capazes belicamente, eles não atenderiam ao convite da sensatez, prefeririam levar à destruição do mundo inteiro. Israel, como se sabe, tem mísseis nucleares apontados para Moscou, Berlim, Teheram, Roma, Nova Iorque.

A perder Jerusalém, eles preferem que percamos o mundo

Manipulação mediática.

Primeiramente, deve-se dizer que a imprensa mainstream tem lado, trabalha para os interesses plutocráticos e não leva a sério a tolice da imparcialidade. Não é indústria de divulgação de fatos, mas de construção de discursos de suporte político dos grupos que defende.

A imprensa mainstream não conhece realidade e não trabalha com qualquer aspecto de empirismo. Ela constrói discursos com finalidades precisas, à revelia de qualquer coisa que se aproxime do que se chama realidade. Na verdade, ela desconstrói a realidade nessa sua indústria de construí-la segundo conveniências propagandísticas.

A imprensa nem educa, nem informa, embora esta segunda finalidade ela a declare a primordial. Não é. Ela ensina a pensar de uma certa forma e liquida as possibilidades de qualquer outra forma de pensamento. Fornece os pontos e contrapontos pré-estabelecidos, extremos que delimitam o vai-e-vem esquizofrênico dos seus dominados.

Afirma-se liberal, mas não é. Nem é indiferente ao Estado, nem contra ele. Ela depende do Estado ser leniente com a concentração e com a fraude e depende dos recursos do Estado, usurpados imperialmente da maior parte da população. Ela, mesmo quando opera no espaço da concessão pública, como dá-se no uso do espectro de rádio difusão, preda os recurso públicos em troca de publicidade.

É necessário, para a imprensa, que avance a imbecilização sem recuos. Isso não é somente o estabelecimento de baixos níveis de cultura formal, mas a incapacitação para qualquer pensamento autônomo. Este último é o mais destacado meio da imprensa mainstream e sua finalidade precípua é defender a plutocracia.

A manipulação das massas tem de ser bem feita, porque a missão de capturar a democracia implica levar as maiorias a votarem contra seus próprios interesses. Em condições ideais, ou seja, abstraindo-se de fatores externos, seria missão dificílima, daí que a primeira coisa a ser feita é inserir muitas coisas na vida do sujeito comum, todas elas estranhas a ele e às suas circunstâncias, e fazê-lo crer que são todas muito pertinentes à sua vida.

Isso é técnica de dissolução de identidade, tanto pessoal, quanto de classe. Ampara-se no fornecimento de uma moralidade que supostamente é invariável e permeia todas as classes. Nisso há fraude porque a plutocracia, o 01%, não tem moralidade nem honra, as pessoas de exceção tem honra e não moralidade e o restante, da burguesia para baixo, tem moralidade, mas ela é fortemente cambiante.

A par com o fornecimento de uma moralidade supostamente estável e universal – que fará o papel de critério de julgamento de tudo – despejam-se quantidades imensas de informações dispersas, incompreensíveis e, principalmente, inúteis como pontos soltos. O manipulado saberá que houve um abalo sísmico em Sumatra e logo depois que o exército de Israel matou palestinos com munições de fósforo.

Incapaz de relacionar as notícias com qualquer conceito ou abstração, pois não sabe o que são acomodações tectônicas, nem o que é sionismo, terá recebido dois fatos desconexos, atemporais, sem relações com quaisquer outras coisas. Apenas entulho informativo a baralhar as idéias, ocupar espaço nas poucas prateleiras cerebrais e conduzir à desintegração da identidade.

Daí advém a incapacidade de distinguir o relevante do irrelevante, porque tudo é lançado sucessivamente, coisas depois de outras, em desconexão evidente. As diferenças estarão somente na maior ou menor ênfase moralista dada a uma ou outra notícia. Assim, se as coisas apenas se diferenciam a partir da ênfase moralista, tudo é igualmente relevante ou irrelevante, ou seja, a relevância é dada pelo emissor, pois o recetor é já incapaz de perceber diferenças.

Outros característicos da imprensa mainstream no campo tático – porque os acima referidos são mesmo estratégicos – são oportunismo e mesquinheza dignas de um bom funcionário público. Não há pudores em cambiar sentenças taxativas da noite para o dia, assim como não há limites mínimos para desfaçatez e ataques pessoais baseados em baixezas.

Qualquer análise da imprensa mainstream que não esteja comprometida com ela própria, ou seja, com o objeto da análise, concluirá que lhe falta absolutamente algo: coerência. Não haveria nisso problema algum se não insistisse a imprensa nessa estória de coerência, como a criar um novo e universal valor a ser cultivado. Coerência é uma mistificação que parte da suposição absurda da existência da liberdade sempre e incondicionada e, portanto, algo sem muito sentido.

Ocorre que a imprensa cultua e repete o termo continuamente, ao mesmo tempo em que professa uma incoerência profunda. Guiada por oportunismo de fazer inveja a funcionário público, ela é capaz de esgueirar-se por todos os lados e apropriar-se de coisas que atacava um dia antes. E o público recetor, anestesiado, vê a banda passar… O caso que me vem à mente é precisamente o do Mundial de Futebol do Brasil.

A imprensa mainstream brasileira, o que significa dizer basicamente Rede Globo, TV Bandeirantes, SBT, Rede Record, Grupo Abril, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Diários Associados atacou a realização do mundial de futebol energicamente, como forma de atacar a Presidente Dilma. Eles são contra o governo e isso não é segredo para quase ninguém, até para quem não pensa com a própria cabeça.

Associaram fraudulentamente toda a realização do Mundial ao governo, desde a construção de estádios até a mentirosa isenção tributária dada à FIFA. Disseram que haveria o caos, que os aeroportos seriam ante-salas do inferno, que os transportes não funcionariam, que seria a vergonha nacional frente a um mundo abismado com nossa incompetência total.

Previram que haveria manifestações generalizadas contra o mundial e mentiram muito sobre a construção dos estádios – muito até pelos padrões elásticos da imprensa brasileira – tanto quanto à origem dos dinheiro, como quanto aos preços e possibilidades de atraso nas conclusões. Não houve tempo nem meios de desfazer as mentiras puras e simples, mas o discurso do caos e do fracasso mostrou-se totalmente suicida e informado pela realidade.

Eis então que o mundial é um sucesso, os aeroportos funcionam muito bem, os estádios estão prontos e são muito bons, estão sempre repletos, assim como hotéis, bares e restaurantes. Ou seja, o caos não houve, a vergonha não houve, protestos houve meia dúzia de pequenos burgueses menininhos satisfeitos. O que faz a imprensa? Cambia o discurso imediatamente e só fala do mundial, agora totalmente dissociado do governo.

Se houvesse fracasso e caos, seriam imputados ao governo; se há êxito, foi por conta de qualquer coisa sobrenatural ou mesmo uma novidade de efeito sem causa. Seria ingenuidade demasiada esperar qualquer pudor desta gente, mas esses câmbios são muito súbitos e embutem algum risco de se perceber o oportunismo que abre a porta a tamanha incoerência.

Evidentemente que se a seleção brasileira afinal não for campeã, retornara o estabelecimento de fantasiosas relações de causa e efeito, a por no caldeirão da frustração o governo. Isso é previsível como o escurecer após por-se o sol. Assim como previsível será a volta dos ataques aos estádios e a acusação de não conclusão de obras.

Eles nunca se preocuparam com mundial de coisa nenhuma, exceto pelo que ganham a vender espaços publicitários, nem nunca se preocuparam se foi ou não gasto dinheiro público em estádios, se haverá ganhos em infraestrutura depois, se muita gente ganhou dinheiro com serviços, nada disso. Eles estão preocupados em servir aos desígnios da plutocracia e evitar a qualquer custo a reeleição de Dilma, porque representa um pouco de redistribuição na apropriação das rendas.

E qualquer meio serve, por mais vil, mais incoerente, que seja.

Suárez, a FIFA, o fetichismo e a construção da anomalia.

Todas as entidades, sejam públicas ou privadas, com origens culturais no mundo greco-romano-judáico recorrem ao discurso jurídico para afirmar-se. O que caracteriza a cultura ocidental, mais que qualquer outra coisa, é a lógica de tribunal e a hipocrisia.

Justiça, no sentido de equidade, nada tem a ver com lógica de tribunal. Na verdade, esta última é a grande avalizadora da injustiça, o que não representa problema algum para nós, que afastamos esta contradição com boas doses de hipocrisia.

A FIFA é aquela entidade a cuidar do futebol no mundo todo, servindo-se de seus tentáculos em cada país. É um negócio multi milionário mesmo se não se contabilizarem os dinheiros sujos que por ela passam.

Recentemente, a inclinação da FIFA para a delinquência financeira, notadamente o pagamento de subornos e o branqueamento de capitais, vem merecendo mais destaque. Aqui e acolá sabe-se de algum caso e não é de todo impossível que algum funcionário menor tenha que haver-se com a justiça na Suíça.

Suárez é um brilhante atacante uruguaio que atua no Liverpool, atualmente. É o atual artilheiro do campeonato inglês, tendo marcado apenas trinta e um gols…

Eis que Suárez, num lance típico de área, em que atacantes e defensores se agarram numa cachorrada imensa, mordeu o ombro do defensor italiano. Começou um movimento estranhíssimo para tornar esta imensa banalidade num ilícito gravíssimo.

Pois bem, a FIFA puniu Suárez com suspensão de nove jogos, multa de U$ 247.000,00 e banimento por quatro meses, por este nada acontecido no jogo entre Uruguai e Itália. Um dia depois de anunciada esta punição redentora, de caráter preventivo, como tem que ser alardeado para seduzir as massas, a própria vítima da mordida disse que era um despropósito.

Coisas muitíssimo mais graves ou nunca foram punidas, ou mereceram punições muito mais suaves. Basta lembrar a cotovelada de Leonardo em Tab Ramos, que caiu desacordado imediatamente, no jogo entre Brasil e EUA, em 1994. Por esta ação violentíssima, Leonardo foi punido com suspensão de quatro partidas.

O mais significativo desta encenação de vaudeville no caso Suárez é como é fácil tornar uma banalidade, um nada, em algo a espelhar a seriedade da entidade, que pune exemplarmente as ações violentas. A construção dessa fraude discursiva faz lembrar o pensamento de Foucault.

O discurso baseia-se fortemente na premissa de que é necessário punir para evitar que ocorra novamente. E todos dizem, a todo momento, que esta já foi a terceira mordida dada por Suárez, como se isso tivesse alguma importância. Há futebolistas que dão dez ou mais pancadas violentas por partida, enquanto o sacrificado Suárez deu três mordidas em toda a carreira.

Aqui, novamente, algo que Foucault sempre chamou atenção relativamente à construção discursiva da figura do infrator: há que se fazer um arrolamento de condutas, uma listagem pregressa que constitua um fio delitivo contínuo a indicar que se trata de uma personalidade anormal.

É curiosíssimo perceber como a enumeração de três condutas iguais leva a frêmitos e acusações de reincidência, como se não houvesse dezenas de casos muito mais graves e mais constantes, que não merecem qualquer punição.

A coisa tem ares de fetichismo, por outro lado. Das mordidas de Suárez não resultaram quaisquer danos aos outros jogadores. Muito diferente das cabeçadas, cotoveladas, soladas na canela, carrinhos por trás a prender o pé de apoio da vítima, pontapés e até socos, que não são incomuns. Muito ao contrário, o futebol, hoje, é bastante violento e duro.

O que mais escutei falar disso, depois de opinar que se trata de uma palhaçada, foi: porra, mas foi uma mordida! Sim, foi uma mordida, e daí? Acaso é pior que uma cotovelada? O caso é que poucos param para um momento e daí, em que se pensa com calma e se vê a bobagem erigida em delito grave.

Qual o problema que foi uma mordida? Nenhum. O caso é que mordida é como se fosse algo impróprio ao futebol, como se houvesse algum tipo de violência própria a este esporte. Este é o campo da interdição simbólica, do medo e do fetichismo.

Não pode morder, embora possa dar pontapés, por em risco tíbias, perônios, tendões e outras coisas mais cujas lesões são graves e de difícil recuperação. A mordida foi erigida em quase tabu e um mal em si mesma, independentemente de considerações sobre sua lesividade potencial e real no caso concreto.

As interdições de matriz no tabu são assim, elas não são por parâmetros objetivos e racionais dirigidas a condutas mais graves que quaisquer outras. Elas são graves porque subjaz algo de sexual nessas condutas, algo de fetichista e algo de religioso.

A gravidade da mordida que não machuca é semelhante à interdição católica da masturbação, algo cuja lesividade é zero e cuja reprovação é puramente baseada em simbolismo.

Fato é que esta comédia em que se sacrificou Suárez no altar da delituosidade criada a partir de fetichismo serviu à FIFA, que pode pôr em prática o discurso de tribunal, invocar a sedução das punições exemplares e preventivas e distrair a atenção do público das coisas reais que são seus casos de profunda corrupção.

Segregação por aparência.

Toda lógica de atuação social tende a tornar-se inercial e, portanto, autoreplicar-se sem que os agentes percebam claramente o que fazem e porque o fazem de tal ou qual maneira.

O domínio de poucos sobre muitos depende bastante deste tipo de inércia percebida como um estado natural de coisas. Claro que isso tudo, de tempos em tempos, é temperado com pequenas pitadas de razoabilidade e de aparência de igualdade formal.

Em junho, acontece algo extraordinário nestas bandas do nordeste do Brasil: festas de São João que levam quase o mês inteiro. Em Campina Grande, precisamente, há um espaço dedicado à realização desta farra de trinta dias, que hoje pouco tem de tradicional, na verdade.

Como é intuitivo, o espaço fica cheio de gente, e nos finais de semana fica tão repleto que é quase intransitável. Esse tipo de aglomeração é ideal para a prática de pequenos furtos e alguns roubos. Assim, são tomados certos cuidados com a segurança.

Todo o amplo espaço é fechado no seu perímetro, a partir das cinco horas da tarde, e há quatro ou cinco locais de entrada e saída. Nestes pontos, há dois corredores de entrada, um para mulheres e outro para homens.

Neles, fiscais passam rapidamente aqueles detectores portáteis de metais, em busca de armas brancas ou de fogo. Caso os detectores acusem metais, o que quase sempre ocorre, por causa de moedas e chaves, faz-se uma rápida revista com as mãos. Realmente, não é nada constrangedor, nem invasivo.

Não gosto de multidões concentradas, nem gosto dessa música ruim que o atrevimento sem fim da indústria de entretenimento achou de chamar de forró, nem gosto de pagar caro por coisas ordinárias. Assim, só vou lá bem cedinho, pelas seis, sete horas, para uma brevíssima volta, pois nesta altura há pouquíssima gente e apenas trios de forró de verdade.

Eis que entrava e o detector de metais apitou. Claro, tinha um bolso cheio de moedas e no outro as chaves de casa. Parei e fiz menção de meter as mãos nos bolsos e retirar o que lá se encontrava, para provar ao sujeito da segurança. Ele balançou a cabeça e disse: nada, pode entrar, vocês são gente de bem… 

O maluco concluiu que éramos gente de bem – o que quer que isso signifique – e não fez em mim a revista com as mãos, que é de praxe quando o detector apita. Tudo bem, segui em frente. Mas, detive-me brevemente, apenas o suficiente para entrever uma cena que daria uma tese de doutoramento.

Atrás, entravam pai e filho, sendo este último uma criança à volta de quatro anos de idade. O detector de metais apitou quando o pai entrou e ele foi rapidamente apalpado nas pernas. Em seguida, entrava o menino, que devia ter qualquer coisa metálica no bolso e foi revistado manualmente.

A revista não teve nada de agressiva, intrusiva, humilhante, nada disso. Foi rapidíssima e superficial. Acontece que um menino de quatro anos foi revistado e eu não fui, mesmo que o detector de metais tenha apitado nos dois casos.

O menino de quatro anos e o pai eram pretos, assim como o sujeito da segurança…

Mais médicos: o porquê da histeria e do ódio da classe dominante.

Indicador muito seguro de algo favorável à maioria dos brasileiros e ser alvo do ódio e da histeria da classe dominante, materializados nos discursos da imprensa, repercutidos incansavelmente pela pequena-burguesia.

Tudo que se fez a beneficiar o maior número foi atacado violentamente e o programa mais médicos evidentemente não seria exceção a esta regra de ouro. Foi bombardeado diariamente na imprensa majoritária e estes ataques mereceram amplificação constante pela classe média alta, que além de repetiu o que lhe foi ensinado, acrescentou mais tolices por sua própria conta.

Ontem tive a preciosa ocasião de almoçar com doze médicos cubanos que estão por aqui, no âmbito do programa mais médicos. Um bom almoço e aprazível tarde de convívio com os cubanos. Percebi à perfeição porque a classe dominante vota tanto ódio ao programa e principalmente aos cubanos que vieram. Eles são um perigo real à estrutura de segregação social tão bem montada e mantida no Brasil.

É absolutamente desconcertante para um brasileiro munido do mínimo de auto-crítica conversar com médicos normais, com médicos a se comportarem como pessoas comuns. E os cubanos são assim totalmente normais e mais bem instruídos em termos de cultura geral que seus similares brasileiros. Dispostos à conversação, falantes de um castelhano fácil de compreender, esforçadíssimos para falarem português, curiosos mas não invasivos, disponíveis para responder à nossa curiosidade.

A ameaça reside exatamente em que os mais pobres emancipam-se a pouco e pouco na medida em que têm acesso a serviços de saúde prestados por pessoas que não se portam como semi-deuses nem pensam só em dinheiro, nem trabalham primordialmente para a indústria. Depois que descobrem ser possível outra realidade diversa daquela do inacessível, caro, grosseiro e funcionário de laboratório, quererão o serviço a que têm direito.

As pessoas que utilizam os serviços de cuidados básicos de saúde estão encantadas com essa acessibilidade, disponibilidade, assiduidade que realmente observa-se nos cubanos. Elas são capazes de perceber as diferenças, entre elas a mais evidente: a presença física do médico cubano em todo o período de trabalho. Na verdade, bastaria a assiduidade para perceber as diferenças.

Aparentemente, a histeria da máfia de branco brasileira não tem muito sentido, além de reação contra a diferença, até porque os estrangeiros do mais médicos não podem fazer qualquer coisa além de trabalhar em programas de saúde da família – PSF. E somente podem passar até três anos no Brasil, depois têm de retornar. Ou seja, os estrangeiros do mais médicos não representam qualquer ameaça ao mercado dos médicos brasileiros, pois com eles não competem.

Acontece que os médicos brasileiros trabalham para a indústria de medicamentos, equipamentos de imagens, próteses e etc. Assim, reproduzem os discursos destas indústrias e voltam-se contra uma medicina de cuidados básicos que não pede exames desnecessários, nem preceitua remédios inutilmente.

Faz bem a classe dominante em temer os médicos estrangeiros, pois eles fornecem os parâmetros para o povo perceber a aberração que é a indústria da medicina no Brasil, que só trabalha para si e seus patrões, relegando o principal, que são os pacientes, para prioridade penúltima.

A pequena burguesia e a necessidade de levar a classe baixa ao suicídio político.

A política é o espaço dos conflitos de interesses de grupos e classes, ou seja, o espaço próprio da luta de classes. Na política, está pressuposto o escolher, o tomar decisões a partir de alternativas possíveis. Não se trata, portanto, do âmbito do bem e do mal, não é o campeonato da moralidade. Aqui, está em jogo a apropriação de parcelas da riqueza gerada num certo espaço; quem fica com quanto.

Os grupos minoritários precisam esconder essa realidade a qualquer custo e, por isso, oferecem o discurso moralizante como forma de afastar o que efetivamente está em jogo. Os grupos minoritários, que correspondem aos dominantes, precisam evitar que os maioritários percebam que não há correspondência de interesses entre as diversas classes.

No Brasil, a disparidade na apropriação das rendas é de fazer corar qualquer pessoa bem alfabetizada que não esteja a soldo de interesses maiores. Ela, em resumo, justifica-se discursivamente na mitologia do mérito, o nome que se usa para inércia social. 90% dos meritocratas brasileiros estão onde estão porque nasceram onde nasceram. Mas, para a rapina é preciso crença, então essa gente acredita na mistificação da meritocracia.

Pois bem, de alguns anos para cá, anos que correspondem precisamente aos dois governos do Presidente Lula e aos quatro da Dilma, a desigualdade recuou. A melhora na distribuição das rendas resultou bem para todos, mas evidentemente esses benefícios não foram proporcionalmente iguais para todas as classes.

Os mais acima ganharam muito, tanto vendendo bens de consumo e imóveis, quanto vendendo dinheiro. Os mais abaixo ganharam mais, relativamente, porque tiveram acesso a pouco, depois de muito tempo com acesso a nada. Os do meio também ganharam, mas menos que os demais estratos. Os do meio e principalmente da parte superior do meio, são a pior gente que há, não apenas no Brasil. Incapazes de guerra, recorrem à sabotagem.

A redução das desigualdades fez-se de maneira óbvia: programas de rendimentos mínimos e aumentos do salário mínimo. Isso, além de certo conforto material, levou às fronteiras do rompimento do pensamento da eterna servidão e às raias da crença quimérica na igualdade. Os de muito de cima acharam ótimo, à exceção de um e outro profunda e sinceramente imbecil e fascista in pectoris. Os de cima celebram o aumento do mercado interno, salvo quando são entreguistas a ponto de trabalharem contra si próprios.

A classe média alta, esta não perdoa a inclusão social de vastos milhões de concidadãos. Ela é capaz de perceber que o movimento de ascensão dos pobres reduziu tensões e criou mercados para seus serviços, mas não tolera que o Estado tenha despendido com os ascendidos dinheiro que ela classe média alta queria para si. A questão é de divisão do roubo e de simbologia do poder.

Hoje, às vésperas de eleições presidenciais, a classe média alta vota para tomar para si os dispêndios estatais com programas de redução de desigualdade social. São contra aumentos do salário mínimo e contra o bolsa família porque querem estes dinheiros para si, na forma de isenções de imposto de renda e de isenções de imposto de importação de automóveis.

Para essa gente, a disputa é por dinheiro e, secundariamente, por manutenção de símbolos de poder. Os funcionários domésticos encareceram, no Brasil, de doze anos para cá. O trabalho doméstico é estigmatizado como o mais próximo ao nada e ainda permanece destituído de direitos e assimétrico a todos os outros trabalhos, sem que haja razão para isso.

A classe média alta viu-se obrigada a gastar mais para manter seus servos domésticos e, mais que isso, obrigada a fazer de conta que os considerava iguais, embora apenas pessoas com salários menores. No íntimo, encheram-se de rancor e buscam reverter esta situação. Aí está a esperança de quantos se oferecem contra a candidatura da Presidente Dilma: o rancor da classe média alta.

Precisam convencer os da classe baixa a votarem contra quem lhes melhorou a vida materialmente. Contam com a preciosa ajuda da imprensa dominante, que é contra qualquer coisa que diminua a concentração de riquezas, porque teme que venha na esteira a desconcentração do poder mediático. Só há uma forma de levar a classe baixa a votar contra si mesma: fazer acreditar na identidade de interesses.

Para tanto, é fundamental fazer acreditar na inexistência da luta de classes e na indiferenciação política. Isso implica espetáculo e moralismo, o que é ofertado maciçamente na imprensa. Tal estratégia tem boas chances de êxito, mas resta algo a considerar.

Caso a direita ganhe as eleições presidenciais de outubro e tenha mandato para executar seu programa concentrador e entreguista, terá que dispor de meios para aplacar as reclamações que emergirão inevitavelmente dos que rapidamente regridirão. Será difícil fazê-lo somente com editoriais de jornais televisivos e novelas. Mais difícil ainda será fazê-lo com repressão policial.

Como quer que seja – e não é remota a possibilidade da direita ganhar – fica para a classe baixa e para a esquerda clara a necessidade de evidenciar que política é conflito de interesses e não campeonato de moralidade.

A juridiquice a serviço da demofobia e contra a constituinte da reforma política.

Resultou da assembléia constituinte instalada pela emenda nº 26 à constituição de 1969 o que se esperava dela: um documento de compromisso, muito longo, mal redigido, apto a alimentar o fetichismo litigante, enfim, uma obra feita à semelhança dos seus autores, tanto quanto às suas capacidades, quanto relativamente às suas aspirações.

Claro que há coisas boas e elas são, basicamente, o elenco dos direitos fundamentais, abrigados sob a cláusula de imutabilidade exceto por rutura institucional plena. Não podiam escapar a esta tendência jurídica à irrealidade, a par com a não aceitação de suas pretensões geológicas. A conformação do Estado, essa ficou especialmente mal feita, o que não se sabe se foi de caso pensado ou por puro descuido.

A federação não apresenta incompatibilidade com o parlamentarismo e deveríamos ter adotado esta forma naquela ocasião. Posteriormente, sempre foi adiada ou afastada a discussão, porque ela sempre retornou como golpe de ocasião contra o grupo instalado no poder. Semelhantemente dá-se com a reeleição para cargos executivos, que deveria ter sido prevista no texto original e que foi criada como golpe, depois, ao sabor de circunstâncias.

Curiosamente, os constituintes quiseram proclamar, logo no início, que o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos, ou diretamente. A fórmula, a despeito de meio piedosa, está suficiente e merece o destaque. Tanto merece, que foi esquecida pelos guardiões das juridiquices, que aspiram muito mais à criação de um Estado tecnocrático que à democracia.

Certamente que a puseram lá no início e sem ambiguidades – algo raro nos textos legais brasileiros – porque nela nunca acreditaram. O poder nunca emanou do povo, nunca foi por ele exercido e a expectativa das classes dominantes é que nunca fosse, ainda que timidamente.

Agora, fala-se na convocação de plebiscito para consulta popular sobre a instalação de constituinte parcial a visar a reforma política. Melhor seria dizer reforma do Estado, mas o nome não compromete a ótima idéia. A governação do presidencialismo de maioria circunstancial é especialmente complicada no Brasil e as coisas precisam ficar mais claras, até para ficarem mais baratas.

Parece-me que mais uma vez perder-se-á a ocasião de afastar a figura do Chefe-de-Estado das intrigas mesquinhas do dia-a-dia, ou seja, não haverá parlamentarismo. De qualquer forma, convém redesenhar o presidencialismo brasileiro e retirar do congresso nacional as possibilidades tão amplas de ser chantagista e pusilânime, ou seja, dar-lhe responsabilidades a par com seus vastos poderes.

O espectro político ideológico não comporta tantas variações quantos são os partidos políticos. Conclusão óbvia é que várias agremiações representam as mesmas coisas ou representam coisa nenhuma, o que vem a dar praticamente no mesmo. Não se cuida de querer alguma espécie de bipartidarismo, mas da evidência da utilidade da cláusula de barreira.

O financiamento das campanhas eleitorais tem de ser público, a partir de um fundo a ser repartido conforme as representações existentes antes do pleito futuro. Isto evita a captura despudorada dos partidos pelos interesses econômicos e afasta a insegurança jurídica subjacente aos financiamentos privados por caixa 2.

Todavia, além dos aspectos puramente eleitorais, ou seja, relativos diretamente à forma de se fazerem eleições, é ocasião para reformar o Estado e inibir um jogo perigosíssimo que se tem visto aprofundar-se. É necessário estabelecer o que é o poder judiciário, que padece da legitimidade do voto popular.

O aplicador – e excepcionalmente intérprete – da lei não vai além disso, porque não pode escolher nem criar a regra sem para isso ter sido escolhido pelos cidadãos. O judicial brasileiro viola esta regra básica há tempos e fá-lo sem quaisquer críticas consistentes nem dá sinais de querer retornar a ser o que pode ser num panorama estritamente formal.

O Brasil tem uma aberração chamada justiça eleitoral, que avança sempre no seu afã de legislar sobre as eleições, superpondo umas às outras camadas de resoluções confusas e muitas vezes contraditórias. Vezes há que avança contra competências do poder legislativo como se fosse uma brigada de ungidos de Deus.

 É comum a insegurança persistir até depois das eleições e é possível entrever que situações mantidas em suspensão servem bem à causa da desmoralização da política, algo que interessa às corporações burocrático-jurídicas, mas não ao país.

Evidentemente, a corporação jurídica, dentro e fora do Estado, cerrou fileiras contra a convocação da constituinte exclusiva para a reforma política. A demofobia funciona como o medo do fogo nos animais que não falam: é instintiva. É tão forte que a primeira barreira violada é a da coerência.

Ora, nada há de juridicamente impróprio na convocação de uma constituinte parcial e específica, por meio de plebiscito. A própria constituição vigente previu os instrumentos de participação popular direta, bem como as duas formas de consulta aos cidadãos: plebiscitos e referendos.

Por outro lado, a reforma que se busca não atinge os fetiches supremos dos juridiquistas, as cláusulas pétreas. Aqui, não me contenho e abro um parêntesis para admirar o gosto do ridículo e o romantismo tardio do juridiquismo. O sonhar com regra petrificada beira a loucura! Não se petrifica nada na história e o direito está dentro dela, não fora.

Se os constituintes não tiveram a coragem de evitar fórmulas democráticas e a criação de instrumentos de participação popular, seus sucessores deveriam obedecer às aparências e jogar o jogo pelo regulamento. Aberrante é, com medo do que pode resultar, trabalharem contra a idéia socorrendo-se de grupos que, se puderem, suprimem o próprio congresso.

Enfim, não interessa à melhoria da governação do país afundar-se em discussões tão bizantinas quanto insinceras sobre a possibilidade da instalação da constituinte parcial e específica, após aprovação popular da convocação. É perfeitamente possível submeter a idéia ao povo e instalar a assembléia constituinte, porque, afinal, a soberania é popular.

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