Manifestações massivas houve em grande parte das maiores cidades brasileiras e continuam, com maior ou menor força, a depender de que vertente seja considerada. Iniciaram-se a partir do Movimento do Passe Live – MPL, na sigla que facilita tudo e revela o jornalitismo que impregna a escrita. O MPL voltou-se contra um absurdo imenso, que são os preços dos transportes públicos no Brasil, preços que drenam parcela significativa da renda dos usuários e custeiam serviços ruins.
Isso da haver manifestações massivas surpreende uns, desagrada outros e mete medo em alguns. É comum, da parte do governo, minimizar as coisas e da parte das oposições, propor repressão radial, por um lado, e tentar apropriar-se, por outro. As manifestações são movimentos políticos, o que é inescapável e ainda bem que assim é.
Na raiz do MPL está a ascensão de parcelas da pobreza e da classe média muito baixa a condições melhores. Isso ocorreu nos últimos dez anos e pode ser explicitado por números até para os impermeáveis que vivem a vida entre o apartamento de 150 m2, o Land Rover blindado e o shopping center com estacionamento caro e não servido por linhas de ônibus. Se esta gente perceberá mesmo a evidência dos números, é outra coisa.
Mudar ainda que timidamente a estrutura de apropriação de rendas de um país populoso é algo que insere no jogo variáveis com que os mesmos promotores da mudança não contavam. Eles, com as poucas exceções de sempre, pensam em termos organizadinhos demais e ficam pela estória do pessoal estar a comprar mais TVs e geladeiras.
Acontece que o maior consumo de TVs e geladeiras é a parte evidente do encontro dos interesses dos ascendentes e dos sempre estabelecidos. Haverá, sempre, espaços de não intercessão entre os interesses desses grupos. Os vendedores deslocar-se-ão em helicópteros, tratar-se-ão no Sírio ou no Einstein e contarão com uma benevolência inercial quando tiverem que recorrer a serviços públicos não essenciais.
Aí, os interesses desconectam-se. Para quem viu a situação melhorar timidamente no que se refere ao poder aquisitivo, breve será o intervalo para perceber que certas coisas, a despeito da melhora inicialmente mencionada, continuam estruturadas muito mais a favor de quem oferece serviços concedidos, principalmente.
É também muito natural que os governantes se acomodem e creiam que serão endeusados ou pelo menos reconhecidos perpetuamente pelo que já foi obtido. Mas, é sinal forte de vitalidade social pedir mais e isso houve com o MPL.
O desconcerto atingiu, tanto governo, quanto oposição e seu braço condutor, a imprensa. Uma semana intermediou a tomada de posições dessas duas partes envolvidas. Governos, em várias esferas, viram rápido a necessidade de reprimir a crescente violência e vandalismo dos movimentos, mas sem violar a proporcionalidade, como a tinham violado com violência brutal, no início.
Oposição e imprensa levaram aproximadamente uma semana até passar do convite reiterado à repressão brutal à percepção de que podiam apropriar-se dos movimento como se eles fossem à partida, específica e unicamente contra o governo federal. Nesse ponto, recuaram dos convites à repressão e passaram a criar pautas para os movimentos que não eram as deles movimentos.
Do ponto de vista da oposição, abria-se uma maravilhosa janela para inserir algo que nunca têm: povo. A partir daí, seria mais fácil dar a segunda volta do golpe sempre sonhado e trabalhado: tornar a coisa um caso judicial. Daí que inseriram os ovos da serpente: o anti-partidarismo – que nesses casos atende pelo incorreto termo apartidarismo – e a contrariedade a coisas que um movimento de massas não consideraria nem reputaria relevante, como se deu com a artificialíssima objeção à PEC 37.
Tão grande foi o descompasso entre o que os media diziam ser objetivos dos protestos e o que percebem as pessoas e vêem nas TVs, que a coisa revelou-se um tanto absurda. É complicado até para o mais rede globo dos seres negar que usaram de mão muito pesada no viés forçado que deram às coisas. As manifestações iniciadas pelo MPL não eram contra o governo, elas eram para além do governo.
O governo, este insistiu, inicialmente, na tolice de ver somente infiltrados a soldo para desvirtuarem os movimentos. Claro que infiltrados a soldo há muitos, porque Cabo Anselmo não é algo único, mas não é possível, tampouco que Cabo Anselmo seja 100%. Nesse ponto, a Presidente Dilma parece ter percebido com bastante acuidade de que se tratava, e disse haver boa-vontade em conversar com os proponentes reais, disposição de revidar o vandalismo puro e simples e vontade de aperfeiçoar o jogo político.
Sabiamente, o MPL denunciou a inautenticidade da virada à violência que se viu na maior parte dos protestos subsequentes aos momentos iniciais. Isso que se põe sob a sigla MPL quer tarifas de transportes adequadas e quer aprofundamento da democracia. Ora, isso convém aos integrantes deste governo que não tenham sido inteiramente capturados pela autoreferência ou pela inércia do salvador que se crê merecedor de sacrifícios diários no altar da celebração acrítica.
Seria inteligente que o núcleo a pensar o que foram melhoras evidentes nos últimos anos percebesse que seu projeto é deles e dos destinatários também, que são os manifestantes não voltados à porralouquice do contra todos e tudo e contra PEC 37 e outras irrelevâncias deste tipo. Os governantes não terão espaço para querer manter a autocracia. E não terão espaço para querer manter-se no governo se acharem que manifestações são nada, porque afinal eles seriam os depositários da verdade na condução de um povo incapaz de conduzir-se.
Haverá quem o perceba, espero eu. Porque, do contrário, a coisa toda volta a ser o substrato de apoio porralouca ao golpe que se dará contra a maioria, inclusive contra os que foram desempenhar patéticos atos de vandalismo. A parte vândala e pautada por uma lista de prioridade que parece advinda exatamente de onde estaria o alvo da manifestações, essa é massa de manobra clássica e sempre serve ao que se triunfante os porá em situação ainda pior.
Se a lógica formal fosse essa maneira divina de decifrar e expor a realidade, perceberiam todos que os movimentos não são, nem o pedido de derrubada de um governo, nem uma falsificação totalmente manipulada contra o governo. As manifestações – excluindo-se vândalos, infiltrados, neo-nazis e coisas do gênero – são vontade de participar na política, porque querem mais e não aceitam retrocessos, embora essa última negativa ninguém enfatize.
Para o governo hoje chefiado pela Presidente Dilma, o caminho mais sensato a trilhar passa por expurgar os elementos do governo que creem em simplismos e acham conveniente aliar-se à imprensa inimiga para tachar os manifestantes de alienados. E deixar de insistir em dizer -se aberto a conversas com movimentos organizados. Terá que falar com organizados e desorganizados, embora nunca tenha que conversar com criminosos, porraloucas ou nazistas a soldo.
Para a oposição, conviria que deixasse de achar sempre a melhor estratégia o quanto pior melhor. Além de ser facilmente identificável a patifaria, porque o comerciante em prejuízo não ouve conversa besta ideológica, a baderna não agrada a todos e nem sempre é eficaz pô-la na conta do governo, porque há contradições tão grandes que até a proverbial imbecilidade da classe média tem limites e é capaz de ver a farsa, quando evidente demais.
O que o povo quer, deve ser escutado. O mais difícil de tudo é que o médio classista ouve o que lhe diz quem não comunga com ele dos mesmos interesses. O médio classista é o sujeito que abomina o suicídio social, mas está sempre à beira dele por não pensar organizadamente com sua própria cabeça.
Hoje, manter tudo como está implica – a provar o dito proverbial do Príncipe de Salina, ou terá sido Tancredi, não lembro – mudar quase tudo. E, para desespero de quem tentou apropriar-se das manifestações e montar o cavalo selado, mudar tudo para manter tudo é dar mais uma volta nos parafusos da melhora de distribuição de rendas e principalmente no da democracia direta.
Acredito que a frase é dita por Tancredi ao seu tio, o príncipe de Salina e, pelo que me lembre, ela é ao contrário do que você disse: “Mudar quase tudo significa manter tudo como está”. Quanto à PEC 37, ela é um absurdo sem tamanho, já que tira poder de fogo do MP, da Receita e dos Tribunais de Contas. Mas me parece que você tem razão quando afirma que ela foi colocada artificialmente nas manifestações, assim como outros temas. Um fato ridículo que aconteceu foi uma pesquisa sobre corrida presidencial feita por um jornal de São Paulo e que culminou em Joaquim Barbosa como primeiro lugar da lista, figura que, na minha visão, não tem condições de ser líder de qualquer coisa, principalmente por ter um ranço um tanto quanto autoritário e de superioridade. Não parece ter qualquer tino administrativo, como a boa parte dos juristas, burocratas natos que são.
Respeitando as opiniões em contrário, permito-me tecer o seguinte comentário: no Brasil, o Ministério Público e a Polícia Judiciária integram uma República. É saudável, portanto, para uma República, que os seus órgãos tenham atribuições definidas e bem delineadas. Isso é uma conquista do cidadão. A partir do momento que um órgão quer se sobrepor a outro entra em cena a prepotência. A concentração de poderes é antagônica ao Estado Democrático de Direito. Lembre-se de que toda investigação, ainda mais a policial, deve ser isenta. Tenho dificuldade em perceber isso quando se acumula no mesmo órgão as funções de investigar e acusar. Desse ponto de vista, as liberdades e garantias dos cidadãos previstas no art. 5. da CF correm risco, na minha modesta opinião.
Corrigindo: se acumulam.
Acrescentaria que nada, na CF 88, prevê expressamente o poder investigatório do ministério público.
Isso foi algo que se consagrou aos poucos, pelo uso. Nesse sentido, a proposta de emenda 37 vem apenas explicitar uma proibição que é implícita no silêncio.
Não convém que o mesmo órgão investigue e acuse, porque pode investigar com a prévia decisão de acusar. Ademais, ao mp cabe a fiscalização das polícias judiciárias, o que não é pouco poder, mas é pouco usado pelo mp.
E, ainda mais, o mp pode pedir quantas diligências achar necessárias à polícia judiciária.
Mestre,
fugindo completamente do assunto, se puder e com uma internet boa, assista ao show no link abaixo. Trata-se de tributo a George Harrison. Show magnifíco, liderado e organizado por Erick Clapton. Na primeira parte, há uma orquestra indiana espetacular regida pela filha do músico Ravi Shankar, muito bonita por sinal.
http://www.youtube.com/watch?v=j9Dr1anRP9w
É verdade há esse risco. Mas a polícia também pode investigar com a prévia decisão de indiciar e nem por isso ela perde a sua legitimidade para a investigação. Não podemos tomar a exceção (a má-fé na investigação) por regra (uma investigação realizada dentro dos parâmetros legais). Eu diria que mais perigoso que investigar e acusar centralizados num mesmo órgão seria investigar, acusar e decidir como funções de um mesmo órgão, o que já aconteceu na história da humanidade. Eu não vejo tão graves problemas em investigar e acusar centrados no MP, até porque a decisão quanto à condenação advirá do Poder Judiciário, onde deverá ser assegurado o contraditório e a ampla defesa e todo o chamado devido processo legal. Ademais, o risco de “investigar com a prévia decisão de acusar” pode ser conseguida também com o pedido de diligências do MP à Polícia Judiciária, ou seja, ela não terá investigado formalmente, mas terá conseguido direcionar a investigação da forma que desejara, ou seja, perigoso do mesmo jeito, mas, repito, trata-se de uma exceção para mim. Acredito que quanto mais órgãos investigando melhor, já que um pode contribuir com o outro para o melhor deslinde do caso a ser esclarecido. É claro que as questões corporativistas atrapalham muito, mas existem vários profissionais que colocam a sua função acima desse corporativismo ridículo. Acredito que um bom passo para a solução disso tudo seria a feitura de uma legislação única disciplinando os poderes investigatórios de cada órgão (Polícias, MPs, TCs etc), mas sem retirar tal poder de qualquer um deles. Um caminho também, para evitar aquele risco acima mencionado, seria separar, no caso do MP, quem participa da invetigação e quem denunciaria, ou seja, promotores diferentes para cada fase. Salvo engano, em Portugal existe uma divisão parecida como essa em relação aos juízes. Feita as devidas adaptações, eu não vejo problemas em ser aplicado à atividade do MP.
Rodrigo, temos visto muita seletividade do mp no oferecimento de denuncias e no arquivamento ou manutenção de processos em estranha latencia.
Isso, que poderia parecer pontual e próprio do atual inquisidor geral, na verdade observa-se ja há algum tempo e com vários inquisidores gerais.
Creio que concordaras comigo que esta seletividade e, no mínimo, estranhíssima
Ou seja, há o indesejável risco do mp mover-se primordialmente por vaidade e secundariamente por percepção de oportunidade de chantagem, a despeito da contundência do termo.
Nao devemos esquecer que a denuncia e ja meia condenação, porque conforme a imprensa queira, ela trata denuncia como verdadeira formação de culpa.
Concordo com você, Andrei. Mas vê-se que isso ocorre muito na cúpula. Entretanto, se se for observar o trabalho feito na ponta, verás que tem muito serviço bem feito e sem nenhuma intenção prévia de má-fé. Mas eu entendo que quem costuma aparecer na mídia é a cúpula e é esse centro de poder que acaba chamando a atenção, o que leva a se tomar a parte pelo todo.
É verdade, Rodrigo, foste preciso ao apontar que a politização da investigação, a retenção ou aceleração delas e o oferecimento seletivo de denúncias é algo próprio de um grupo reduzido.
O mp em geral move-se por interesse de dar respostas às demandas da sociedade, além de justificar-se, é claro, pois é um órgão caríssimo.
Creio que o mp devia abrir-se mais à percepção popular e isso não apenas por meio de certa publicidade que se tem feito.
Numa democracia convém que se exponham os custos, porque a avaliação popular e mediática um dia faz-se presente e nós tendemos a posturas esquizofrênicas, o que é lastimável.
No modo de operação clássico brasileiro, um órgão ou instituição – mesmo que flerte com a imprensa aqui e acolá – pode ser alvo de mudanças bruscas daquele terrível tipo acaba-se ao invés de reformar-se.
Isso está muito forte neste país e basta ver o que se tem levado o público a crer da política. Demonizou-se a política, o que é um absurdo e um desserviço ao Estado de direito. E fizeram isso oportunisticamente, porque esta política que aí está é a que aí sempre esteve.
Caso, amanhã ou depois, convenha ao 01% e à imprensa que para ele trabalha destruir o mp, o tcu ou o judiciário, ela o fará, sem qualquer memória de um dia os ter incensado como veículos da vontade divina na terra.
Assino embaixo. Sem mais comentários.