Romae omnia venalia sunt.
Salústio
Em Roma tudo está à venda, dizia-se. Um tremendo erro, porque muito ou quase tudo não é tudo. Exatamente por não haver essa coincidência total, é necessário postulá-la, como verdade absoluta, inescapável e válida em toda parte. O surto moralista de Salústio, indignação sincera, serviu bem aos que tudo compram e aos que tudo vendem.
O grande problema das estruturas de poder concentrado e a servir-se da massificação como meio de domínio é precisamente que nem tudo está à venda. Daí que é preciso submeter os recalcitrantes, aqueles que resistem como forma espontânea de estar no mundo, porque não sabem ser diversamente.
Dá-se que o Presidente do Uruguai é um homem simples, inteligente, culto, adepto da redistribuição de riquezas, austero na vida pessoal, fora de moda, avesso ao fausto, avesso à cerimônia, relativamente pobre materialmente. E fez um bom governo.
Era preciso que um tipo humano assim fosse cooptado, mais que derrotado eleitoralmente. Porque cooptado torna-se não perigoso e totalmente à mercê da manipulação. Da forma que é, presentemente, Mujica é quase invulnerável, porque todo autêntico e coerente.
Não há fotos suas a jantar no Tour D´Argent, escondido, a trair e contrariar a austeridade que se lhe associa. Não há passeios toscanos em Ferraris de último tipo, a levantar a contradição e o embuste que seria o seu VW Fusca de 1987. Não há contas bancárias na Suíça nem em Luxemburgo, a traírem a imagem de homem apenas remediado.
Se essas coisas houvesse, estaria tudo bem, Mujica seria um refém, seu discurso um embuste, sua vida uma farsa. Mas, o homem não cabe nas caixas disponíveis para a compreensão massificada rotulada. E, pior, não é um fingidor, não é poeta.
Pois bem, Mujica desloca-se num Volkswagen Fusca, ano 1987, azul. Um carro velho, comum e que vale nada. Ele não usa este carro para chamar atenção, ele simplesmente não dá qualquer importância a carros, pois se desse poderia ter outro, mais novo, mais tecnológico, mais possante.
Não é possível, numa sociedade massificada, que um presidente da república use um fusca 1987 para seu transporte, exceto se for propositadamente para criar uma mitologia. Se for sinceramente, como Bergoglio usava um Renault mais velho ainda, é algo a ser trazido para o âmbito da excentricidade, para que seja compreendido pelas massas como uma farsa simpática.
Eis que um milionário árabe dispõe-se a fazer o papel que dele se espera. Como milionário embrutecido que é, fazedor de coleções, presta-se a oferecer um milhão de dólares norte-americanos pelo carro velho de Mujica, que não vale mais que um mil dólares.
Isso é coisa própria de guitarras ou carros de astros de bandas de rock. De roupas de artistas de cinema ou de TV. De qualquer coisa de celebridades. Isso de se colecionarem irrelevâncias porque pertenceram a um certo fulano qualquer, célebre por algo que ninguém percebe ou todos percebem bem. Algo do território do despudor e da sociedade do espetáculo, que nivela tudo ao colecionável.
Aparentemente, Mujica respondeu à oferta dizendo que iria pensar a respeito. Diz-se que ele teria afirmado que se vendesse o carro sem valor pelo milhão de dólares doaria o dinheiro para a construção de casas. Espero que tudo seja falso ou que, sendo verdadeiro, Mujica tenha tempo de recuar na aceitação do pourboire.
Não se vende algo de U$ 1000 por U$ 1.000.000. Uma transação assim não faz do comprador um parvo; faz do vendedor um clown vendido. Receber um milhão de dólares pelo que vale nada faria de Mujica um sujeito cuja trajetória esvaiu-se num segundo. Pouco importa que dê o dinheiro para as casas dos pobres, para o Banco do Uruguai ou para um fundo de proteção das missões.
Não é suborno no sentido clássico do termo, evidentemente. É muito pior: a troca da dignidade por uma oferta a princípio incompreensível, a redução do extraordinário ao comum; a entrada na massa do homem que estava fora dela.
Andrei, sinceramente, eu entendo o argumento, mas do mesmo jeito que entendo o argumento, não irrelevaria a ação de Mujica… Até, mesmo achando que entendo seu argumento, poderia dizer que a opção dele é condizente com sua trajetória também…
Rapaz, achas mesmo? Se o que move Mujica é o desapego mesmo, a ataraxia diante do que se diz luxuoso, a princípio penso que seria até bom ele vender o carro a esse paspalhão e doar o dinheiro à caridade…
Ele está diante da maior armadilha que já se lhe pôs.
Se vender nivela por baixo, torna-se comum, aceita consigo o que é próprio que se faça com artista de TV.
Quem tem de pagar caridade é o Estado uruguaio.
Excelente artigo e concordo com a sua conclusão de que quem tem que gastar com caridade é o estado uruguaio. No budismo quase tudo é relativizável, menos a dignidade ;que Mujica mantenha o seu fusca no quintal da sua casa.
Mujica, finalmente, manteve o fusca… =)
Manteve a dignidade. O fusca é detalhe, tá velhinho…