A questão dos limites do endividamento público norte-americano são muito reveladoras do nível de avidez da banca. Que os limites devem ser aumentados, é algo quase evidente e simples. A dívida norte-americana é imensa, em termos absolutos, mas não é tão significativa em termos relativos. Há estados que devem muitíssimo mais, como proporção de seus PIBs.
Ninguém minimamente razoável acreditou algum dia que as promessas de pagamento são pagáveis, caso exigidas. Elas são garantidas por inércia e urânio. Dívidas assim não são para serem pagas, o que é óbvio quando lembramos que o devedor imprime a moeda em que as restantes dívidas são denominadas.
Assim, o estado norte-americano tem a enorme vantagem da moeda, embora seja aprisionado pelos credores, que escolhem quanto emprestam e a quê preço. A dívida pública é um programa de transferência de rendas da população para meia dúzia de credores, bancos e outros estados.
Se os republicanos levarem a chantagem ao limite e não recuarem e se Obama, por seu lado, também não recuar, o mundo será outro, depois do calote oficial do que sempre se soube impagável. Seria a quebradeira generalizada, o que me parece uma oportunidade histórica rara.
A questão gira em torno da divisão da conta. Obama quer tributar mais os mais ricos, que há muito não pagam impostos nos EUA. Os republicanos aceitam trocar a aprovação do limite de endividamento pela extinção da pouca assistência social que ainda há no país. Não aceitam qualquer aumento de tributação nas camadas elevadas.
Eles podem levar o mundo à queda financeira – e ao imenso tumulto inicial que haveria – por insistirem na consagração da imunidade tributária absoluta dos muito ricos que, diga-se, já são quase imunes.
Claro que Obama irá recuar, porque não é imbecil e sabe que o destino de quem não recua frente aos interesse dos oito, dez ou vinte é saber finalmente a resposta à questão atormentadora da humanidade: há sobrevida? E claro que vastas massas cada vez mais pobres de norte-americanos pagarão a conta da sucumbência ampla, geral e irrestrita aos interesses financeiros.
O que ainda me chama bastante atenção no caso norte-americano, principalmente pelas imensas proporções que as coisas têm por lá, é a incapacidade de reação popular. Sim, na Europa impõem-se medidas similares, ou seja, em função exclusiva dos interesses de quatro ou cinco banqueiros, mas os pagadores ainda conseguem perceber que estão sendo obrigados a baixarem as calças.
Nos EUA, o nível de envolvimento político e de detenção de informações – além da capacidade de associa-las e dissocia-las – é muito baixo. O fulano reduzido à miséria, que morrerá sem tratamento porque não o pode pagar, ainda fará esforços para julgar-se culpado por tudo, ele, que foi um perdedor, um vagabundo naquele sistema maravilhosamente bem-disposto, que premia os fortes e capazes.
Ele nunca perceberá que não há fortes e capazes, senão os que surfam a inércia da onda social da acumulação. Que isso tudo era discurso viável quando as migalhas abundavam. E ele ficou refém inescapável dessa prisão discursiva e vai, ou penalizar-se, ou tornar-se um vândalo afogado em bourbon ordinário do Tennessee.
Quando essa bomba explodir, não sei se ainda haverá alguém mais razoável, entre os que decidem mesmo, o inner circle, que perceba a única solução, terrível mas a única: algum fascismo. Sim, porque é a forma de controle que a direita tem para massas muito empobrecidas, ignorantes e dispersas. Se não for um fascismo, será a fragmentação.
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