Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O rolezinho, os novos-ricos, os novos-pobres e a demofobia.

O maior risco de ensinar por meio de exemplos é ter êxito…

A vacuidade, os maus modos, a forma atabalhoada de estar, o ser barulhento e a busca incessante da redenção no consumo foram diligentemente ensinados às massas, independentemente de suas classes sociais. Óbvio que cada classe age segundo seus interesses e que adota uma estética própria, o que é meio de identificação externa.

As partes mais aquinhoadas financeiramente das massas erigiram o centro comercial – shopping center, na nossa abissal caipirice – em mais que templo. Tornaram-se os espaços privilegiados porque seguros e plenos de um grupo mais ou menos uniforme socialmente. Fica claro que essa essência de segurança baseia-se pura e simplesmente na segregação por classe, o que revela a identificação dominante de pobreza com criminalidade.

Insegura da eficácia do discurso gerador da crença nos lugares adequados, ou seja, insegura de que os pobres saberiam reservar-se aos seus espaços exclusivos, as classes mais altas cuidaram de resguardar suas áreas de convívio de algumas maneiras. A mais evidente é geográfica e com dificuldade de acesso: os centros de compra são erigidos em locais cujo acesso ideal dá-se por automóvel, por exemplo.

Outra estratégia de resguardo passa pela estética, por signos que levam o diferente a perceber-se inadequado e envergonhar-se. Isso ainda é resquício de fases mais sofisticadas de exclusão, fases bem caracterizadas pela expressão pobre que sabe o seu lugar. Assim, o excluído é que cuida de excluir-se, posto que a crença na inabalável diferença solidificou-se nele.

Ocorre que a sedução consumista fincou raízes profundas e afastou as barreiras físicas e a aceitação das crenças. Jovens de periferia inundaram centros de compras reservados à classe alta e expuseram aberta e francamente sua estética. Isso assustou a clientela preferencial, que viu nos episódios dos rolezinhos algo semelhante aos famosos arrastões, embora de criminalidade não se trate.

O que escandaliza, deixando eufemismos de lado, é a predominância da pele escura, uma estética dos trajes, do falar, da gestualística diferentes das marcas de pertencimento dos frequentadores habituais. Não é mais feio nem mais bonito que a estética da classe alta, mas é diferente.

É demofobia, sem mais nem menos. Mas, ela precisa esconder-se e lançar mão do discurso do medo da violência, ainda que não tenha havido mais violência que a comumente produzida pelos adolescentes de classe alta.

Dizem que esses espaços são privados e que, por isso, é legítima a discriminação e o impedimento da entrada dos jovens das periferias. Inclusive, essa variante nova do apartheid foi confirmada judicialmente, em São Paulo, o que está longe de surpreender quando se sabe para quem trabalha o poder judicial. Todavia, não se cuida de espaços meramente privados, na medida em que os centros de compras são espécies de sucessores das praças públicas.

Não é aplicável ao centro de compras a lógica própria de um condomínio residencial, em que os donos escolhem quem entra e quem não, porque o critério de discriminação que pretendem aplicar aos centros comerciais não é lícito e a clientela a ser admitida não é composta de condôminos do espaço comercial.

Todavia, aqui aparece algo bem revelador: o grupo dos clientes a serem admitidos age como se fossem condôminos, como se fossem os donos dos centros de compras e assim legitimados a exigirem a obstrução aos que não se incluem na categoria dos proprietários do espaço. Da mesma forma essa classe dominante age relativamente aos espaços inteiramente e conceitualmente públicos, mantidos pelo Estado.

Enfim, o escândalo com os rolezinhos dos jovens da periferia é resultante da mistura de duas coisas muito antigas: demofobia e patrimonialismo.

5 Comments

  1. Sidarta

    Sei não…. mas ainda penso que lojas em shoppings vivem de vendas a quem lá vai comprar.
    Invadido o espaço por “vitimas da sociedade e que não vão ao shopping comprar”, acredito mesmo que a interpretação dos donos das lojas e da classe “qualquer coisa acima do diletantista que quer se mostrar no espaço socialmente curioso para ele” , é de ameaça à ordem pública (é assim mesmo que entendo, pois não tenho a menor satisfação em caminhar dentro de um shopping me sentindo ameaçado por um arrastão), e daí o direito de fechar as portas dos shoppings como medida preventiva de defesa, deixando inclusive de vender até a quem vai sociologicamente “estudar o fenômeno” e ter a sua carteira ou celular subtraído, se não levar uns empurrões.
    Já fizeram arrastões em vários shoppings que conheço e a abordagem de disparo do arrastão também prevê entrada pacífica dos seus participantes nos shoppings.
    Não vai ser qualquer coisa incentivada pela imprensa para gerar notícias a vender que vai melhorar distribuição de renda ou aumentar emprego ; ou estudam como foi o rolê em outubro de 1914 e a proposta a que se propunha , ou os rolês tropicalistas se desmancharão no ar (o meu pai até apreciava um “rolé bife de filé – escrito no cardápio em francês – e chegou a ler e a me dizer que a nobreza tirava o palito de sustentação do filé enrolado antes de servir para ser comido, informação que passou muitos anos atrás ao maitre de um tradicional restaurante do Recife).
    Meanwhile, cher tovarish, evitarei os shoppings por uns dias e me refugiarei na dasha nos fins de semana, solitário ou em companhia de uns poucos que ainda apreciam um honesto Chablis….

  2. Andrei Barros Correia

    Veja só, Sidarta.

    Essa gente vestida, usuária de gestos e expressões estranhas aos habituais consumidores de centros de compras, quer comprar.

    A periferia, para desespero dos marxistas, quer consumir e não quer pensar nem fazer revolução de coisa nenhuma.

    Estranho, nisso, é que a burguesia não compreenda que o negócio é a favor dela. Ou que demore a compreender. O sujeito começa a ficar imbecil quando expulsa clientes.

    Então, estão presentes três fatores que realmente inspiram cuidados: medo; direitismo e instrumentalização do popular.

    As três coisas acima significam fascismo….

  3. Sidarta

    Eu também acho que isso não é movimento revolucionário, mas shopping tem praça de alimentação e não praça de eventos políticos.
    Por que não se agenda rolezinho em quermesse de festa religiosa ou em uma igreja evangélica qualquer? Porque fica fora do contexto e a biblia fala de que até Jesus acabou na porrada um rolezinho no templo de Jerusalém.
    Discordo com relação à relação com o fascismo: nem Stalin nem Hitler aceitariam rolezinho a bem de protestos ou de testar as suas instituições por puro divertimento, como querem fazer entender.
    Desfilar e protestar por uma causa bem definida no meio de uma avenida é legítimo, mas queimar ônibus e quebrar vitrine de loja é crime contra o patrimônio.
    Precaver-se contra a exposição à proximidade do fogo e da pólvora não me parece direitismo nem instrumentalização do popular. Que tenho medo de um estouro da boiada, não nego.
    Com relação à alegação de que a classe C compra, concordo, mas ter que cada um que vai comprar levar junto mais mil amigos para orientar as compras não me parece normal, nem mesmo se o comprador for parlamentar e ter que andar sempre com todos os seus assessores para orientá-lo sobre o modelo de boné ou de tênis a adquirir.
    Para mim o planejamento e a organização dessas manifestações, especificamente os rolezinhos para denunciar o racismo dentro de shoppings, estão sendo gestados pelos cabos Anselmo’s da atualidade.

  4. Severiano Miranda

    Eu não tenho a mais mínima idéia de como é essa situação de “rolezinho” que se desenha ai, fora uma ou outra notícia, e/ou comentário de twitter.
    E por isso mesmo, o que vou falar, pode não ter pé nem cabeça, mas no final das contas, os centros comerciais no Brasil, viraram centros de convivência, por ter segurança privada. E há quem queira dizer que são centros que têm função pública pois abriga coletivos. Com o que não concordo, se a segurança é privada, o local também uai. Já pra proibir gente de entrar, hão de se basear em termos bem concretos, pois também existe crime de racismo. Isso posto, o que leva a classe C ou a que seja, a também passar a buscar esses locais, não seria a expressão de busca e anseio por locais de convivência seguros para essas mesmas classes? Coisa que talvez não se relacione tanto assim com o consumo, que de fato existe, assim como existe gente que se aproveita da situação desses mesmos “rolezinhos” para cometer ilícitos…
    Não sei… São mais perguntas e suposições que afirmações, como disse, não sei nem uma virgula a respeito do assunto.

  5. Andrei Barros Correia

    Sidarta, com uma das perguntas que fizeste, chegaste ao ponto.

    Esse pessoal não faz rolezinho em igrejas, por exemplo, porque sacrificam nos altares do consumo.

    O rolezinho só é contra uma coisa: a impossibilidade material de adquirir tudo aquilo que o público frequentador pode.

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