Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O Nardo de Betânia.

A passagem é conhecidíssima e acho que devia ser mais lembrada por quantos andam a falar em nome do Galileu. Em João, o mais direto, está em 12:3-8. Conta esse evangelista que Jesus estava em Betânia e foi jantar na casa de Lázaro, o que ele ressuscitara. Então, Maria derrama uma libra de nardo puro nos pés do Galileu e os enxuga com os próprios cabelos.

O nardo, convém lembrar, era um perfume realmente caríssimo. A narrativa segue apontando que a coisa foi escandalosa e que Judas Iscariotes teria reputado um verdadeiro absurdo aquele desperdício e que se poderia vender o nardo e apurar trezentos denários para dar aos pobres.

A essa objeção de cunho prático, até bastante sensata, o Galileu opõe outra de inteligência, prática e mística, muito superior. Ele diz que os pobres sempre exisitirão e ele não. Aquilo era, na verdade, uma unção pré sacrificial. Eu diria que o Galileu era bastante inteligente objetivamente e defendeu que cada qual faz das suas coisas o que quer. Além, é claro, de apontar uma provável hipocrisia de Judas.

Pois bem. Não tenho negócios com padres e freiras, nem com suas congregações. Ocorre que uma instituição de freiras mantém um abrigo para velhos carentes. A velhice é uma tragédia e acompanhada da pobreza aproxima-se a viver na encruzilhada do Estige com o Aqueronte. O teto do abrigo caiu e a situação dos velhos piorou. Por isso, as freiras solicitam doações para reconstruir a estrutura.

Fui à instituição para doar algum dinheiro. Cheguei e falei com o indivíduo responsável. Disse quanto era a doação e ele pôs-se a preparar o recibo. Havia na sala duas dessas senhoras piedosas de classe média alta, que iam fazer as suas doações.

Esse pessoal, sentindo-se em território seu, não se contém. Uma delas viu ou ouviu a quantia, pouca, que eu doava e interpelou-me. Cordialmente, é verdade, mas com aquela imperatividade segura que pode ser chamada, sem maiores riscos, de arrogância. O que o senhor faz, perguntou-me. Percebi o que se passaria e fui evasivo propositadamente. Disse: sou funcionário público. A senhora parou um instante, sorriu complacentemente, e insistiu: o senhor pode ajudar mais esses pobres velhinhos. É verdade, respondi.

Não me contive e perguntei-lhe: a senhora conhece a estória do nardo, com Jesus, em Betânia? Ela ficou confusa, pois conhecer de ter ouvido falar, certamente conhecia, mas de ter lido e de lembrar-se, era muito difícil. É curioso, mas essa gente desconhece as bases do  que pensa defender, embora isso seja de pouca importância. Balbuciou um sim, tímido. Pois é, minha senhora, o novo testamento tem coisas interessantes e se o nardo é meu, faço dele o que quiser.

7 Comments

  1. Julinho da Adelaide

    Andrei. Uma das características dos nossos catolaicos é exatamente desconhecer o credo que professam. Durante muito tempo houve uma rivalidade de uma conhecida minha, muito carola, com sua empregada doméstica, protestante. Confesso que a peleja me divertia, principalmente pelo fato da última ser muito mais instruída nos cânones de sua religião, e respondia à altura, lá delas, a cada provocação da patroa. O problema é quando a ignorância está a serviço da arrogância. Ai é faca amolada.

    • andrei barros correia

      Julinho,

      Esse episódio que contas é precioso e devia ser realmente muito divertido.

      Os reformados propriamente ditos, como são bibliólatras, saem-se muito bem nesses embates que, no fundo, são mais sociais que religiosos.

      A personagem da senhora católica prototípica desempenha o papel de fiadora do poder social conservantista. Daí seus modos seguros e afirmativos, capaz de meter-se em tudo, sabendo de quase nada.

      A zebra é que supostamente age a partir de um substrato teórico que desconhece. Porque esse pessoal tem uma preguiça de ler enorme.

  2. Julinho da Adelaide

    Verdade Andrei. Alias tenho um amigo que fala, de maneira absolutamente empírica, que um dos motivos da “prosperidade” protestante é o fato deles, por tentar interpretar a bíblia, acabam por exercitar mais os miolos que a média dos católicos. E já que são contra-corrente do catolicismo e sofrem preconceitos vários, a auto-defesa, e o ataque, acabam se tornando uma necessidade diária.

    • Andrei Barros Correia

      Julinho,

      Essa é uma variante das idéias de Weber. De minha parte, acho bastante restritivo, porque deixa fora da explicação muitos períodos históricos.

  3. Julinho da Adelaide

    Sem dúvida Andrei. Li um livro chamado Bandeirantes e Pioneiros do Viana Moog que como o título sugere disseca de forma exaustiva as diferenças entre Brasil e Eua e põe por terra esses mitos racistas de preguiça, indolência, desonestidade inatas e específicas a alguns ascendentes brasileiros. Discute weber pois não da pra falar no assunto sem fazê-lo, mas foge do lugar-comum.

  4. Severiano Miranda

    Rapaz, olhe pelo lado bom, poderia ter sido mamãe a te interpelar na ocasião, e ela, com certeza, deve ter alguma ascendência judia, de forma que, acredito mesmo, que caso ela não houvesse sido também funcionária pública, venderia gelo a esquimó…

    • andrei barros correia

      Mas, certamente, se fosse Glorinha, seria muito mais divertido. Porque ai eu proporia: Vamos aumentar as doações, nós dois?

      E não ia ficar a falar de nardos, nem de Jesus.

      A propósito, Severiano, tua mãe trabalha com os velhos ou com as crianças, no São Vicente de Paulo?

      A outro propósito, agora: estás em Campina, em Recife ou em Massaranduba? Passou-me pela cabeça uma engenhosa ação terrorista e acho que tu és talhado para a missão.

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