Talvez mais preciso fora ter dito, no título, essencial à não percepção da desigualdade, o que é muito confortável para a maioria. Mas, é óbvio que se celebra a igualdade como se sacrificam os filhos ao Legislador dos pobres do deserto ou a Ártemis, para a boa consciência ou para ter bons ventos guerreiros.
Esta igualdade primeva, cantada como axioma fundador dos preconceitos religiosos mediterrâneos e, muito depois, do liberalismo, é a base sólida sobre que se constroem desigualdades cada vez mais profundas. Aqui, refiro-me às econômicas, sociais e de gênero, ademais de outras históricas menos destacadas.
A igualdade cantada hoje é caricatura do que se recebeu de Atenas. A original era clara, não terna, não natural, histórica. Era igualdade política de 10% da população, nada mais. Assim, é algo que se compreenda: a igualdade dos aristocratas que matavam e saqueavam, mas precisavam ter as coisas em bons termos entre si.
Naturalizada pelo cristianismo e pelas revoluções burguesas, torna-se em monstro negador da história, a bem de perpetuar um estado muito histórico. A igualdade natural, essa nunca se percebeu bem, nem foi festejada, por mais evidente que seja ela entre preto, branco, amarelo, quando se mergulha a rasas profundidades suficientes para descer abaixo da primeira camada melaninizada.
A naturalização da igualdade é partir de um dado para inserir nele axiologias disfarçadas. O valor é o mérito – o substituto no vulgo para a graça – que permite a certos indivíduos triunfarem sobre outros. Sendo todos iguais, o triunfante vence por seus esforços, que seriam possíveis também para os perdedores. Daí que da igualdade, explica-se a desigualdade.
Profunda desonestidade intelectual, esta tão sólida no pensamento dominante. Extrair justificativas para resultantes de processos históricos em algo natural e, pior, inicialmente igual naturalmente, é misturar água e vinho e perder ambos. Na história, não há igualdade.
A democracia burguesa avançou tanto no seu fetiche que passou a impor opressão desnecessária a elementos que não a punham em risco. A tal igualdade natural evoluiu da explicação da perda pela preguiça para um motivo de esquecimento da existência de vulgo e excelência. Esta diferença, advirta-se, não é nem poderia ser razão para que uns e outros sejam considerados merecedores de perecimento. Ela é.
Nisso há igualdade e há democracia; e elas são vigorosas, estão nos pobres e nos ricos, nos poderosos sem dinheiro e naqueles com dinheiro, nos subjugados, enfim, em todos os grupos que se separem por critérios econômicos e sociais. A maioria – independente de mais ou menos dinheiro e poder – é profundamente vulgar e ignora duas coisas: dignidade e delicadeza.
Embora raras, essas qualidades existem. Porém o vulgo, seja banqueiro ou mendigo, toma a raridade pela inexistência e não as vê. Ou, entrevendo-as, faz de tudo para bani-las como indesejáveis que são, acusadoras de sua vulgaridade, causadoras de inquietações, como inquietantes são todos os sinais de que algo melhor era possível.
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