Texto de André Raboni.
CHOVIA. A rua, deserta e fria, não estava convidativa. Sair era uma provocação ao bom senso. Em verdade, não chovia: gotejavam poucos pingos de umidade repulsiva. Trajei-me apropriadamente como se deve trajar um filósofo experimental: ao modo da ocasião. Enfastiado da ausência de perigo e do conforto de meu aquecido lar, vesti-me ao tom do clima e parti de minha caverna para ter com os outros.
Na rua poucas almas caminhavam. Menos paravam recostadas em postes ou árvores: cálidas de fungos úmidos.
O pedaço de rua, que, aqui, convém-nos saber: asfaltada, com velhos sobrados reformados, postes como pilares de fiações caóticas, canaletas de meio-fio embalsamadas por água e lodo, duas árvores na calçada mal conservada, separadas uma da outra dez metros – os dez metros que serão palco de nossa estória.
Nada nos custa gastar mais algumas linhas na descrição de nossos dez metros de rua e calçada: olhando na direção norte-sul: ao lado direito vêem-se seis sobrados. O primeiro deles, uma pequena venda, com fachada em azulejo português envelhecido; o segundo, em péssimo estado de conservação, cor de verde-nojento: em sua parte baixa habitava um lodo já vivido e caduco, porém não tão decrépito quanto o restante da fachada deste repugnoso sobrado.
Após este, outro sobrado cor-de-rosa murcha: duas janelas e uma imensa porta de madeira (a partir da qual julgava-se que ali deveria viver um gigante!…). Dali até a segunda árvore, mais três sobrados: um azul, outro rosa e o terceiro e sexto e último de nosso cenário, amarelo recém pintado.
Conforme o céu foi clareando, as pessoas foram-se atirando à rua; a umidade, reduzindo pouco a pouco. Passos e vozes movimentavam-se no ar e na calçada turva de acontecimentos.
No pé da árvore em frente à venda, sentou-se um mendigo maltrapilho fumando um filtro de cigarro.
Na venda, homens conversavam sobre o ocaso da puta da esquina, degolada por um cliente desconhecido. Tal conversa era atravessada pela rouca voz do mendigo maltrapilho – que trabalhava e pedia cigarros nos seus minutos de folga.
“Me dá um cigarro!” – Falava penosamente, estas que pareciam ser as únicas palavras conhecidas pelo pedinte. Toda vez que soava esta voz um cachorro sarnento deitado tranqüilamente ao lado dele levantava as orelhas, num gesto de cumplicidade.
Do lado esquerdo da rua, estendia-se toda a parte frontal de um mercado, cuja fachada, cor de vermelho-velho-alaranjado, abrigava diversas lojinhas.
Ao passo que avançavam as horas, mais transeuntes saíam às ruas: mais demanda para o mendigo-maltrapilho… Que fumava e prestava seus serviços de Demiurgo-do-perdão, arauto da caridade piedosa.
Vá lá! uma moedinha para o mendigo-maltrapilho ser um fio de indulgência!
“Aqui se faz, a tu se paga!”
Passavam neste instante seis humanistas pela frente da venda. Sentindo compaixão daquele ser recostado ao pé da árvore, quatro deles se abaixaram para ter com o mendigo:
– “Estás bem, amigo?” Disse um deles, repousando sua mão direita sobre o ombro do mendigo-maltrapilho, que fumava.
– “…!”. Respondeu o mendigo, atirando-lhe um olhar oblíquo, dando o último trago em seu filtro de cigarro e o atirando por cima do braço do humanista pousado sobre seu ombro, em um gesto que afastou assaz a mão do homem.
– “Estamos aqui para lhe ajudar.” Argumentou o segundo.
– “Me dá um cigarro!” Disse-lhe, olhando raso, rápido e sincero, olho no olho, como quem cativa a permanência do outro com a discrição própria de um ser refinado.
Os outros dois humanistas ficaram em pé, alertando aos transeuntes o absurdo de haver um homem naquelas condições, em pleno século XXI.
Da venda, eu, de soslaio, pesquei alguns trechos do discurso dos dois humanistas que estavam em pé: “Vejam como este homem sofre! Isto é fruto do capitalismo!” e, “O sistema corrói a dignidade humana!” ou, ainda, “Temos que destruir o… e implantar uma sociedade…!”
Perdoe-me o leitor pela falta de empenho em transcrever todo o discurso; confesso que a conversa ao lado sobre a degola da puta da esquina estava bem mais interessante.
Aos poucos, a situação em frente à venda foi ganhando proporção intrigante; a ponto de tornar-se mais interessante do que o papo sobre o destino da puta.
Mais e mais pessoas se juntavam aos humanistas em redor do mendigo-maltrapilho. O mendigo, sentado, nada falava, apenas fumava, agradecia algumas indulgências com um breve movimento de cabeça ou piscar de olhos. De quando em quando se ouvia sua voz rouca emitir um diligente “Me dá um cigarro!”.
Pessoas foram se sentando, solidárias ao estado miserável no qual se encontrava o mendigo-maltrapilho. Todos atentos e cegos ao discurso dos humanistas, solidarizavam-se com o estado de miséria surda de toda a situação.
Na esquina, um caminhão acabara de estacionar. O mendigo olhou-o largamente… de tal forma que me pareceu ver sua alma se ausentando do lugar onde se achava seu corpo e indo ter com o caminhão…
Gozando de status elevado, o mendigo-maltrapilho apenas abria a boca e as pessoas em volta lutavam para ver quem conseguiria primeiro lhe meter um cigarro entre os dentes, e outros mais se digladiavam para acendê-lo. Quase sempre, o primeiro humanista conseguia, por estar em posição privilegiada… O que foi, aos poucos, despertando inveja nos demais presentes.
Em poucos minutos a calçada estava lotada de gente piedosa, vinda de todas as partes (até sotaque americano pude identificar!). Todos embriagados de compaixão pelo mendigo-maltrapilho e pelas mazelas do mundo, multiplicavam a dor – supostamente – existenciada pelo silencioso e sofrível mendigo, que pedia cigarros. Até eu tentei (sem sucesso) conceder um cigarro a ele.
Algumas velhinhas choravam, crianças assistiam com olhos esbugalhados de assombro e estranhamento àquele espetáculo inédito na rua. Os homens gritavam enlouquecidos contra o mundo; ouviam-se preces em voz baixa, clamando a Deus que acabasse com aquele sofrimento coletivo…
Uma leve chuva começou a cair como lágrimas de um deus sensivelmente humano e piedoso. De leve, a chuva engrossou em poucos segundos. O mendigo-maltrapilho ergueu-se. As pessoas ao redor se calaram, entreolhando-se interrogativamente como quem espera uma ação – esperavam talvez algum discurso que anunciasse uma fatalidade metafísica e transcendental ?
Um gesto de revolta imanente e revolucionário? Uma convocação para a luta? Mas, para a luta de quem?
Com olhar profético e solene o mendigo disse a todos que ali se achavam:
“Alguém me dá um cigarro!”
E se foi afastando a passos lentos, ultrapassando sobrado a sobrado, até recostar-se sozinho, no pé da outra árvore, dez metros ao sul, aonde contou suas moedas e acendeu seu cigarro. Ergueu a vista e observou a multidão piedosa e intrigada ainda em lágrimas mudas, e viu o cão sarnento vindo em sua direção.
Na esquina, o caminhão ligara seu motor e partiu elegante e soberbo em um movimento ligeiro e preciso diluindo aos poucos todo o cenário e ganhando velocidade rapidamente derrapou na umidade divina da rua subindo a calçada e trucidando 90% daqueles que ali se achavam começando pelos humanistas, depois as velhas, os homens e as mulheres.
As crianças, semelhantes a rodas girando sobre si mesmas, em gestos habilidosos e astutos, salvaram-se para um novo começar.
O mendigo-já-não-tão-maltrapilho (quando comparado àqueles corpos mutilados) parecia divertir-se como nenhum homem jamais se divertira antes! Desde que há homem na Terra! E há tão pouco tempo que existem homens na Terra!
O mendigo passara por entre os homens como por entre os animais!
Assistiu a tudo dez metros ao longe. Dei as costas para o filósofo tentador que eu experimentara e retornei para o minha segura e aquecida caverna cor-de-rosa murcha.
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