Jeitinho brasileiro é expressão consagrada pelo uso amplo, que acarreta ambiguidade e perda de precisão. Qualquer coisa usada muito prodigamente sofre esse problema da perda de significação precisa, o que deveria levar as pessoas a pensarem o que pretendem dizer realmente.
Isso que se chama jeitinho brasileiro é uma forma de agir derivada da apropriação pelas massas do exemplo fornecido pelas classes dominantes. Todavia, a raiz desse agir costuma ser escamoteada por meio do destaque de aspectos laterais ou, simplesmente, pela não abordagem do objeto e de suas origens: é a técnica da caricatura, que pinta as coisas em tintas fortes e contrastantes até serem somente uma representação pitoresca que nada tem a ver com o representado.
O jeitinho é, pois, algo que o brasileiro acredita ser uma criação original, exclusiva e, mais importante, popular. Ele não é popular na origem, porque ao povo não são dadas essas liberdades para o protagonismo na definição dos comportamentos prototípicos de um povo. Na verdade, ele é a reivindicação do povo na participação no vale-tudo que sempre foi possível às elites.
As camadas populares assim pediram e assim obtiveram uma pequena complacência e possibilidade de flexibilizarem regras que insistentemente se dizem gerais, amplas e obrigatórias para todos. Ou seja, um pouco do que a minoria sempre teve e nunca escondeu, embora sempre a dizer que as regras existem e valem para todos. Aqui, vem à mente a inevitável pergunta: para quê a insistência em regras?
Com relação ao jeitinho brasileiro, duas inclinações são nítidas, diametralmente opostas, embora ligadas uma à outra. Há os que o celebram como criação originalíssima dos brasileiros e há os que o atacam a partir da lógica da tolerância zero. São duas formas de propagar a estupidez. Não pretendo ater-me à má-fé como motivo, tanto da celebração, quanto do ataque, que essa motivação é menos interessante, na medida em que é racional.
A celebração da originalidade, da espontaneidade e da felicidade que seriam ínsitas ao jeitinho é filha da ignorância histórica e de outras culturas. Ora, o jeitinho brasileiro não é mais original que outras formas de estar no mundo próprias de sociedades com profundas concentrações de rendas e divisões estamentais marcantes e sempre veladas. Assim, ele é tão brasileiro como africano sub-saariano, como andino, para ficar em dois exemplos genéricos.
O jeitinho satisfaz a necessidade de sermos os legisladores imediatos de todos os casos concretos das nossas vidas. Assim é que violamos todas as regras de trânsito de automóveis – e todos os dias, reiteradamente – porque é rapidinho, porque estamos prontos a desviola-las. Paramos onde não pode, mas é rapidinho, ou seja, deixa de ser uma violação porque ela é fugaz; retornamos onde não pode, mas é coisa pequenina e tem quem faça pior.
No fundo, é como se disséssemos que a lei é absolutamente inútil. Não é o caso de dizermos que a lei comporta excepções, mas de a interpretarmos tão frequentemente e em causa própria, que significa sua inexistência. A regra torna-se conforme à nossa vontade em todos os momentos; é uma regra tão aberta a interpretações que regra não é, apenas interpretação. Aliás, esse é um aspecto que deixa ver o quanto de plebeísmo tomou conta do poder judiciário, que age da mesma forma.
O jeitinho é personalismo levado às últimas consequências, ao contrário dos traços de gentileza social que pretendemos ver nele. É todo sujeito a agir em benefício próprio, segundo regras que são a negação das regras, fazendo a lei a todo momento para si. Isso é fermento de dissolução de alguma coesão social porventura ainda existente. Não é algo a ser celebrado.
Na visão diametralmente contrária, há quem veja o jeitinho como simples falta de rigor, ou seja, sob a óptica da tolerância zero. Ora, a tolerância zero equivale à inteligência zero. A total falta de escape é incompatível com a vida, pois as excepções existem. A lógica da tolerância zero é contrária à noção de julgamento segundo as intenções do agente. Na verdade, é a instituição da punição sem julgamento, porque se a tolerância é zero, não se toleram defesas!
A condenação veemente do jeitinho como simples falta de rigor é ignorância histórica profunda. Nunca faltou rigor, no Brasil, para as classes menos favorecidas, o que se evidencia nas suas condições de vida: são as maiores vítimas de violência; são as maiores vítimas da deficiência do sistema de saúde pública; são as maiores vítimas do péssimo sistema de educação privada.
São ridículas – ou hilárias, a depender do senso de humor do observador – as acusações de leniência e falta de rigor, como raízes do jeitinho. Ele nasceu exatamente como forma não autorizada de escape das violências profundas sofridas diariamente pela maioria das pessoas no país. Ele não inverte a equação, ou seja, ele não torna justamente pagas as violações historicamente sofridas.
O jeitinho brasileiro não é original mesmo no que parece ser. É o conúbio, para pior, dos interesses do 01% e dos 99% restantes.
Ótimo tema e bom desenvolvimento.
Oscilo normalmente entre um “caminho do meio budista” e uma tentação a partir para a tolerância zero.
Entretanto, como ando parando mais para refletir sobre como pessoas que tiveram de exercer mais responsabilidade política e social na vida reagiram a eventos em que poderia ser invocada a tolerência zero, lembro-me de uma frase que atribuem ter sido dita por Nikita Kruschev a John Kennedy na crise dos mísseis russos em Cuba: “jamais acue um gato em um canto de parede, ele não vai ter para onde correr e vai saltar de unhas abertas em cima de você”.
Isso me faz, às vezes, não abominar tanto “o jeitinho” e me concentrar no que significa o “koan MU” do budismo para balizar as minhas ações no que é mesmo relevante a cada momento.