Urubu tá com raiva do boi
E eu já sei que ele tem razão
É que o urubu tá querendo comer
Mais o boi não quer morrer
Não tem alimentação
Não sei se Anauld Rodrigues e Chico Anysio, quando compuseram a letra cuja estrofe central está em epígrafe, tinham a percepção de quão genial ela é. Carregada de humor, ela aponta um aspecto central da nossa psicologia social, aquilo que mais fortemente nos caracteriza: a hipocrisia triunfalista.
A vitória sempre repetida das classes dominantes é algo de direito divino e portanto impassível de discussão. Não se admite que se aponte o golpe de mão, a ação ilegal, a chicana, o oportunismo que sempre há por trás dessas vitórias. Não basta ganhar, há de se ter o direito ao segredo da infâmia.
A deposição da Presidenta Dilma Rousseff no congresso nacional avança rapidamente e breve estará consumada. É um golpe de Estado evidente, porque não há crime de responsabilidade, algo que a lei exige para tal processo.
Os golpistas agem como se nosso governo tivesse forma parlamentar e tivéssemos o voto de desconfiança ou o recall. Agem como se a Presidenta fosse apenas chefe de governo e não chefe de Estado também. Desonestos até os píncaros, esquecem que a desconfiança no parlamentarismo derruba também o parlamento…
Mas, têm vergonha de serem chamados de golpistas! Os apoiadores do golpe nas camadas mádias e altas têm vergonha da palavra golpe. Essa gente age como se tivesse direito divino ao silêncio quanto às evidências. Pode-se engendrar um golpe de Estado, mas é proibido chamar-lhe por outro nome além daquele que escolherem os próprios golpistas.
É a reivindicação da exclusividade na construção da narrativa nacional. É um reflexo da suprema hipocrisia que nos acomete desde sempre, aquela hipocrisia em que tudo é permitido desde que não se descubra. Nossa roupa por excelência é o véu.
O triunfalismo é tão patético que mostra sua face canalha na vergonha frente ao estrangeiro. Os golpistas estão envergonhados de serem chamados pelo nome correto e sua obra pelo nome golpe de Estado por meios de imprensa de fora do Brasil. Sentem-se à vontade para externar seu desconforto com narrativas diferentes das suas próprias.
Isso não é algo novo, evidentemente. Há um paralelo interessante com os torturadores da mais recente ditadura havida no Brasil. Todos sabem quem são e o que fizeram; a coleção de atrocidades a que essa gente se entregou – por prazer, diga-se, porque era inútil estrategicamente – é conhecida; seus nomes são conhecidos.
A despeito das evidências, não aceitam serem chamados de torturadores, o que está em diametral oposição à grande valentia que ostentavam diante de vítimas fragilizadas. Nos atos de torturar, os torturadores afirmavam-se plenos, mostravam-se, falavam, riam, tudo ostensivamente. Isso é contrário à vergonha que sentem de serem chamados pelo que foram.
Outra coisa bastante sintomática é que essa gente – tanto os antigos, quanto os novos torturadores e golpistas – sente mais vergonha frente aos estrangeiros. Enquanto são chamados pelos nomes corretos no Brasil, o incômodo não é tanto e eles conseguem até lidar, porque estão certos do triunfo dos que dispõem da narrativa da imprensa mainstream.
Mas, quando a imprensa estrangeira chama a deposição ilegal de golpe de Estado e seus executores e defensores de golpistas, o mal estar é generalizado. Beira o desespero, pela percepção imediata da impotência relativamente à construção de outras narrativas.
Essa vergonha do estrangeiro é sintomática de algumas coisas mais ou menos veladas. A primeira é o complexo de inferioridade, a face outra da covardia do valente. A desonra e a covardia são evidentes nesta vergonha do estrangeiro.
Fosse gente realmente valorosa afirmava o que faz a despeito de outras opiniões, ou apenas as desprezava. Mas os covardes não desprezam, eles reagem desesperados, perplexos e servis, a suplicarem que as narrativas os protejam, que acolham suas mentiras sobre si mesmos, pois sempre foram tão obedientes.
Eles sentem-se traídos pelos patrões a quem serviram bem e lealmente. Eis o segundo aspecto: a vergonha do estrangeiro revela quem são os patrões desta gente golpista. Funciona de baixo para cima, como a vergonha da criança diante dos pais, ou a do cão que urina no tapete da sala. A vergonha do golpistas é frente ao seu dono que não lhe deu proteção discursiva quando ele agia para seu serviço.
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