Não falarei do entreguismo, força que subjaz ao golpe de estado dado em 1964, no Brasil. Falarei dos efeitos laterais da ação para manter o Brasil mais fielmente vassalo de interesses externos.
Instalada no poder a corporação militar a serviço de Jonhson – e, portanto, dos bancos e do complexo industrial-militar – houve condições para a ascensão social de partes da classe média, que nunca tivera grandes poderes decisórios, ainda que fossem os de escolher despachar um papel de um setor a outro de uma repartição pública.
O pessoal próximo aos níveis superiores tratava diretamente com os representantes do Departamento de Estado e das grandes corporações. Esse grupo apropriava-se imediatamente de dinheiros recebidos de fora e roubados do Estado. Era questão de receber, comprar imóveis e pronto. Os mais grandes, mandavam dinheiro para a Suiça.
Essa gente mais de cima é violenta no que consente na violência e no que rouba muito; é a violência no atacado, contemplada e planeada em conversas amenas e sem planilhas. Maquiavel explica esse grupo, o que torna as coisas muito mais fáceis de se perceberem.
A pequena classe média, aquele fermento de todos os fascismos, atua em outra frente. Rapaces a não poder mais e medrosos na mesma medida, gozam das migalhas que caem da mesa dos donos do poder e têm uma característica muito própria: ódio. A par com a vontade de poder, têm algo terrível, que é o ódio aos melhores, aos mais pobres e aos mais honrados. O poder real não odeia, manda.
Nenhum poder ditatorial pôde negar-lhes a saciação de seus desejos. Nenhum Rei e nenhum Bispo de Roma pôde negar aos seus subalternos o direito a queimarem seus inimigos. Claro que boa parte dos bandidos estetas nunca deixou de se escandalizar com isso, mas não deixou de praticar a política que mantém o poder: então, se querem queimar, violar, espancar suas vítimas, que o façam.
No Brasil do golpe de 1964, a distribuição dos subornos à classe de apoio fez-se primorosamente. Quem queria subornar a função pública pôde; quem queria ganhar dinheiro deixando-se subornar, pôde; quem queria espancar, meter cabo de vassoura no cú dos inimigos, dar choques nos testículos, afogar, fazer chafurdar na merda, arrancar unhas, pôde fazê-lo.
Quem, mais pudico e aveso a sangue e fezes e urina e gritos lancinantes quisesse aproveitar-se podia apenas progredir nas carreiras públicas ou nas IBMs, Coca-colas, Fords, Volkswagens e outras mais corporações privadas que gozavam de amplo espaço.
Quase trinta anos depois do fim formal desta festa de sangue sem suor, boa parte dos escravos ascendentes é gente rica. Sem nada do que a teoria pueril do merecimento prediz, grande parte dessa gente é rica, hoje. É rica e tão ou mais desprezível que era há quarenta anos. É rica e muito pouco rica em relação aos que sempre foram e são.
Pensando-se bem, essa gente não é pior que os donos do poder, que não são os eleitos de qualquer partido. Mas, o que essa camada média faz, quando ascende a recebedora preferencial das migalhas do poder, é, sim, o pior. Os piores príncipes são-no porque precisam deixar esse grupo fazer o que quer. Eles, os príncipes, consentem nisso, porque o poder é comprar a camada média, seja para beneficiar a uma minoria, seja a uma maioria.
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