Não escrevo somente a propósito do jogo entre Barelona e Milan – e principalmente pela forma como o jogo foi narrado e comentado – mas para falar de uma forma de estar diante das coisas, generalizada. O vulgo é agredido pelo excelente, porque o vulgo acredita-se régua e objeto a ser medido, em tudo.
A prová-lo, pelo paradoxo, temos a mania do vulgo de sempre objetar àlgum comentário ou percepção mais elevado o nunca se dever fazer generalizações. Ora, a generalização é precisamente o pano de fundo sobre que se destaca o extraordinário, ou o incomum, ou o sublime, ou o sutilíssimo aspecto a não ser visto. Uma generalização não se basta como proposição, ela fará aparecer, por tênue contraste, o que está fora do alcance da vista média.
Assim, embora o vulgo goste da oposição do não generalizes, ele vive sua zona de conforto na generalização que, de tão ampla, faz do excepcional não o aspecto de relevo, mas um ponto apenas mais distante do grande geral que é a percepção comum. Ou seja, o geral do vulgo tem as excepções normativamente previstas, como a dizer que ele cogita de exceções, quando, na verdade, delas não se quer aproximar.
O vulgo diz que toda regra tem excepções a repetir um lugar-comum sem cogitar o que possa significar. Não é à toa que teme, mais que a qualquer outra coisa, a esquizofrenia, a dissociação absoluta, o inapreensível no esqueminha habitual de afirmar qualquer coisa acriticamente.
O museu do Louvre – mudo de discurso esquizofrenicamente, súbito lembrando da desconcertante pergunta que já escutei de um – vive cheio de gente e está supostamente repleto de obras de arte. Pode-se admitir que dentre o grande número de obras, haja delas excepcionais, sublimes, até. Pois bem, o estar o Louvre sempre cheio quer dizer que o vulgo admira a arte, a beleza, algum sublime? Não, quer dizer que os donos do Louvre são gênios que perceberam a alma vulgar, que facilmente obriga-se a certos comportamentos.
O vulgo e o médio são a mesma e terrível coisa. Ele não pode, como podem o comum de aldeia e o excelente, por exemplo, dizer que a Gioconda é uma merda. Ele não pode porque não pode – violaria o dever de ter uma certa declarada opinião – e porque realmente nada acha daquilo. Na verdade, cumpre uma obrigação que a falta de liberdade a permear-lhe a vida impõe-lhe, e só.
O vulgo gosta do campo, do balanço das folhas, de um ponto alto na curva do rio, de ver a raposa a correr furtiva no mato? Pode ser que goste, mas é mais provável que goste de dizer que gosta, porque em tal ou qual época isso consagrou-se de bom tom. Assim, ele irá para o campo, não para ver o que próprio ao campo é, mas para ver e ser visto pelo resto da massa vulgar que se pôs em marcha para o mesmo.
Bem, hoje jogaram Barcelona contra Milan. Para quem anda à volta dos quarenta anos, Milan é um nome mágico, como para os mais novos são os de todas as equipes inglesas, independentemente do que estejam realmente fazendo. O Barcelona é uma equipe fora do comum, que pode vencer ou perder, mas sempre oferece um espetáculo de balé futebolísitco. É de tal forma, que se se pusesse uma pessoa que viu dois jogos de futebol na vida ela perceberia o encanto que há naquela forma de jogar e não esconderia a impressão.
Mas, é próprio do medíocre ver o excelente desde a cela em que está aprisionado. Assim visto, sob a ótica do privado de liberdade, o excelente passa pelo filtro do ressentimento e da inveja do preso que vê a liberdade. Ele é matizado pela racionalidade mais humana que há, aquela que reduz ao meio o que se não fosse meio invalidava o próprio observador, que não conhece o excelente e, por isso, não o pode admirar.
Seria simples se os fulanos que narram e comentam futebol na TV brasileira simplesmente agissem como adeptos típicos, conforme cada época, de Milan, Chelsea ou Madrid. Isso é o mesmo que os funcionários da Rede Globo celebrarem o Flamengo do Rio de Janeiro até hoje, porque ele foi uma boa equipe nos princípios dos anos 1980 e porque o patrão era torcedor desta equipe.
Mas, a coisa vai mais além que submissão ao modelo recebido em uma época. A submissão é ao mais humanamente baixo que há, que é a racionalização pela média, postura indisfarçável e raivosa. Hoje, a cada avanço irresistível de Messi ou de Iniesta ou Alves, correspondia uma objeção a sujerir ineficácia, seguida das habituais inúteis estatísticas: nas últimas dez ou vinte partidas ganhou a equipe A, quando jogou no estádio B ou C.
A sinceridade aflorava ao dizer-se que o Milan devia fazer isso ou aquilo para defender-se, quando, diante dos fulanos, desenrolava-se um espetáculo de futebol de conjunto, dado pelo Barcelona. Eles não podiam ver o Barcelona jogar, que aquilo era pura agressão ao sujeito balizado pelo espírito de manada, pela observação normativa e burocrática.
Ora, muita gente fala do funcionário público como protótipo do vulgo, e está certa. É a média perfeita, composta de falta de nobreza, carreirismo, falsa tomada de riscos, disposição para o discurso longo e vazio, preguiça, oportunismo, cupidez. Isso tudo é verdade, mas é também para toda a camada média, esteja ela no serviço público ou na iniciativa privada. As grandes diferenças que haveria não passam de lugar-comum em que, na verdade, ninguém acredita.
Os fulanos que narram o futebol são funcionários públicos. Eles têm roteiros pre-estabelecidos que não admitem exceções além daquelas previstas que, portanto, não são exceções. São profissionais da leitura rápida e guiada, a quem escapará qualquer coisa excepcional. Escapará, mas existirá. E ele, incapaz de a perceber livremente, vivamente, ficará preso e com raiva. Ele entreverá o excepcional, mas apenas superficialmente e, quase auto-punindo-se, investirá contra ele.
Eu vi o jogo Milan x Barcelona pela TV… e vi também o Real jogando hoje contra um time de Chipre cheio de brasileiros e de portugueses.
Prefiro não mais torcer por time nenhum para que não tenham o direito de fazer a minha pressão arterial subir de graça, mas gosto de ver futebol sem maracutaia (que eu suspeite que existe) pela televisão, deitado no sofá e comendo alguma coisa.
O Barcelona pode até não ser tão agressivo quanto um Real Madrid, mas é sem dúvidas, como você falou, um corpo de balé. Ver Messi, Iniesta e Xavi endoidecendo a defesa inimiga em curtos espaços e toques rápidos é um prazer para a vista, mesmo que outros treinadores (Mourinho parece que ainda não descobriu a fórmula de parar o Barcelona) já tenham armado esquemas defensivos e de contra ataque que dão algum resultado, como se esforçou para fazer o Milan com um elenco meio preguiçoso ou cansado…
Mesmo um virtuoso como Messi ensaia muito com os companheiros e não há um egoísmo muito visível de se sair do coletivo para a busca do destaque individual.
No Real de Cristiano há também virtuosos, mas parece que ensaiam menos balé e mais blitzkrieg em alta velocidade.
Há uns dias vi pela televisão Belo Jardim 3 x 0 Náutico. Acho que o técnico do Belo jardim andou vendo tapes de jogos recentes do Barcelona (ou eles sabiam o mapa topográfico preciso da localização dos buracos no seu campo e conseguiam tocar bem a bola melhor sobre esses acidentes geográficos). Envolveram o Náutico no toque de bola até conseguirem irritar o narrador da televisão… e tiveram cuidado para não motivar o juiz a marcar pênaltis oportunos.
Isso de ficar vendo os grandes balés e shows artísticos do Barcelona e de outros também grandes tem me feito perder o gosto por ver mais jogos de futebol da paróquia, cheios de pancadaria, furadas, buracos no campo, iluminação deficiente, juízes de futebol subornados ou míopes, bolas não bem esféricas, etc.
Preservemos a qualidade do espetáculo mesmo que um grande seja abatido e que o Bayern ou o Chelsea seja o campeão da UEFA esse ano !!!
A coisa está de um jeito, para o Barcelona, que transcende aquilo que se sentia, por exemplo, com a seleção brasileira de 1982. Sabíamos que ela daria espetáculo, mas não era possível esperar sempre vitórias.
Claro que não digo que se possam esperar sempre vitórias do Barça, mas a equipe é muito mais que excepcional no espetáculo visual. Ela é produtiva e consegue manter o jogo mesmo que esteja perdendo.
É profundamente insinuante. O que Messi fez arrancando do meio de campo até o gol não é trivial.
Claro que pode acontecer, mas não imagino que Chelsea ou Bayern aguentem o Barça. No final das contas, quem tem mais possibilidades de êxito é mesmo o Madrid, se Benzema jogar o que vem jogando.
muito bom, recomendo:
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-brasilianasorg-sobre-a-crise-do-neoliberalismo#comment-847491