Contribuição de Leo de Picos para a coletânea literária de Anus Mundi, Piauí
…corria o final da década de 50. Enquanto o mundo se maravilhava com o sucesso do programa espacial da União Soviética e o Brasil efervescia com a Bossa Nova, a longínqua cidade de Anus Mundi, confins do Piauí, vivia o seu negro isolamento do resto do planeta. Os seus nativos conviviam com aquilo que lhes era disponível, além do trabalho: algumas diversões, como o pequeno cinema da cidade, alguns circos mambembes que vez por outra ali aportavam e, para os homens, os cabarés!
Dentre as casas de orgias da cidade, a mais famosa pertencia à cafetina Alaíde Macarrão que, apesar de viver de uma profissão nada agradável para a maioria das pessoas, principalmente para as madames da sociedade, era amiga e tinha como clientes boa parte dos homens influentes da cidade.
Alaíde freqüentava as missas dominicais e era amiga do Padre Almiro. Como se pagasse penitência, ajudava com bons trocados a paróquia e as línguas ferinas das beatas diziam que por isso era tão amiga do vigário. Algumas chegavam a dizer que o padre também era seu cliente e que vez por outra ia ao seu bordel aumentar o rol dos seus pecados. Essa notícia chegou até ao Bispo, que abafou o caso, mas, em compensação, vetou-lhe a promoção para Monsenhor. Compensações…
O coletor de rendas da cidade era o senhor Otávio Leicam. Homem benquisto, casado, pai de família, educado, que fazia questão de cumprimentar todo mundo, apesar de não ser político. Pertencia a uma das famílias mais tradicionais da cidade. Católico fervoroso, fazia parte da irmandade de São Sebastião, padroeiro do município. Além de chefe da coletoria, era ele, também, Presidente da Sociedade Musical 20 de Janeiro.
Seu Otávio tinha um defeito de nascença: era FANHOSO.
Sempre às quintas-feiras chegavam de Piri-Piri algumas quengas novas para o cabaré de Alaíde Macarrão, que as selecionava uma por uma e separava-as pelo gosto de cada cliente. Feito isso, mandava seu homem de confiança, Biu de Serafim, avisar com muita discrição que havia chegado carne nova no pedaço.
Seu Otávio, homem de meia idade, nunca deixava escapar uma noitada com uma dessas meretrizes, mas também nunca foi homem de dormir fora de casa. Prezava a discrição e as aparências, enfim.
Entrava no cabaré pela porta dos fundos para não ser notado. Não era chegado às bebidas, mas antes de se lambuzar com a rapariga, tomava uma cerveja pilsen natural. Dizia que, gelada, podia prejudicar sua a voz, que não era lá essas coisas.
Um belo dia, saciado da sua fome de sexo, Seu Otávio Leicam ensaiava a sua saída discreta do recinto. Na ocasião, não adiantava sair pela porta dos fundos, pois o ambiente já estava todo tomado pelos seus freqüentadores e por qualquer porta que saísse seria reconhecido.
De repente, Alaíde Macarrão tem uma idéia brilhante, pede licença aos presentes e diz que vai apagar a luz por um instante, para a saída de um homem de bem. Escuro total! Seu Otávio sai tateando com a ajuda do seu velho guarda-chuvas. Ao passar pela sala, com sua voz roufenha, apegado aos bons modos e aos hábitos, diz: BOA NOITE SENHORES, FIQUEM COM DEUS. Todos respondem em uníssono: BOA NOITE SEU OTÁVIO, ATÉ LOGO. PASSE BEM!
Muito boa crônica essa de Leo de Picos.
A deduzir do nível de detalhes, o cronista deve ter conhecido pessoalmente muitos dos personages da estória que contou.
Pelo visto, Anus Mundi vai aparecer qualquer dia na lista de cidades notáveis do Google e do Wikipaedia; personagens famosos não faltam.
Coisa linda a manutenção dos bons costumes…Ótima estória.
Davi, gostei da sua observação sobre a manutenção dos bons costumes.
Contou-me Leo dos Picos que, em Teresina, nos anos 1960’s e início do anos 1970’s, as grandes decisões políticas no estado passavam quase sempre pelo “salão nobre” da “Casa da Ana Paula”, que tinha “menina” importada até de Manaus.
No livro de Vargas Llosa “Pantaleão e as visitadoras”, ele fala muito bem dos dotes das amazonenses que “trabalhavam” no Peru.
Os piauienses sabem prezar a qualidade e os bons costumes; Leo disse ainda que, em meados do século passado, a própria gerente do estabelecimento em Teresina tinha feito estágio em São Paulo e porisso “as meninas” eram tão competentes e a freguesia tão fiel e refinada. Falava até com um leve sotaque de Jaboticabal, abusando dos rrrrr’sss.
Para se ter acesso ao “salão nobre” da Casa da Ana Paula só com cartão de apresentação de algum juiz, desembargador, deputado, grande contrabandista ou pessoa realmente importante na sociedade; a “classe média” tinha que ter uma assiduidade já estabelecida, ou pagar muito, para adentrar ao salão principal…
É possível que o coletor de renda de Anus Mundi tivesse acesso àquele salão especial nas suas idas à capital….
Sidarta, Pantaleão e as visitadoras é excelente!
É de se esperar que os tais estabelecimentos, quando nas capitais, fossem ainda mais refinados, senão como é que senhores tão importantes poderiam frequentá-lo com dignidade e honradez?
Davi, vou fazer uma honesta confissão: cheguei a conhecer o estabelecimento da “Ana Paula” em Teresina … como turista.
Coisa de primeiro mundo nos anos 1960!!!
Trabalhava pelo interior do Piauí e do Maranhao e nossa base era em Teresina, onde pegávamos o avião para voltar para casa na Paraíba, com escala em Recife, depois de cada temporada de 15 dias de trabalho “no mato”.
No dia de folga em Teresina aproveitávamos para esfriar o corpo na piscina do hotel (“calor não faz aqui, calor faz no Piauí!!!”) e à noite ir tomar uma cerveja com os colegas de trabalho no terraço da Ana Paula, “olhando o movimento e voltando à civilização”.
Com o nosso salário de funcionário público do governo não dava para ir além das cervejas no terraço externo, ah,ah,ah
Pelo tratamento diferenciado que alguns frequentadores recebiam logo à chegada, dá para deduzir que eram “notáveis” na sociedade piauiense daqueles tempos.
É Sidarta, esse tipo de diversão tem acabado, hoje estes estabelecimentos são muito mercantilistas, você vai, serve-se e vai embora, não é mais um ambiente de convívio com os amigos. Acho isso uma pena.