Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Morte na zona, danação eterna e indulgência papal… no interior do Piauí nos anos 50.

Um conto – ou talvez crônica – de autoria de Sidarta.

Há uma região no estado do Piauí, na fronteira com o Maranhão, conhecida como “caminho do céu”, pois quase todas as localidades na estrada principal possuem nomes de santos católicos.

A última localidade nessa estrada poderia ter qualquer nome, mas achei mais apropriado chamá-la de “Anus Mundi”, uma vez que parece ser isso mesmo e não me lembro, nem mais achei no Google Earth  o nome real do famoso lugar.

Nos anos 1940, saiu de Anus Mundi para ir estudar em Teresina um rapaz de futuro promissor, não tão baixinho, de cabeça tão pequena e sem pescoço como a maioria dos seus conterrâneos, e também dotado de uma boa voz (era locutor esportivo e torcia invariavelmente pelo Anus Mundi Futebol Clube – AMFC do Piauí).

Em Teresina, estudou direito e, nos anos 1950, conseguiu publicar um artigo em um jornal com uma proposta de tese sobre uma questão polêmica: atirar em alguém pelas costas, sem a vítima perceber quem estava atirando, era um crime maior ou menor do que atirar de frente?

O caso é que matava-se e morria-se muito de bala em Anus Mundi e redondezas por aqueles anos e, assim, a tese podia ter interesse prático!

Um advogado experiente do Ceará, aproveitou-se da discussão e passou a insinuar que se o criminoso conseguisse pegar a vítima olhando para um espelho, essa não poderia alegar que o tiro foi dado pelas costas (se escapasse do tiro) pois, para a vítima, ela percebeu o tiro como que vindo de frente pelo espelho.

Os advogados estavam tomando consciência das vantagens de conhecer um pouco da teoria da relatividade de Einstein, além do arsenal comum de lógica elementar.

A tese ganhou discussão e o nobre, jovem e promissor advogado conseguiu uma bolsa de estudos para fazer um estágio na Itália, onde conheceu o papa de Roma e também aproveitou a viagem, e parte do dinheiro economizado da bolsa, e comprou do Vaticano um certificado de indulgência, que supostamente lhe perdoava automaticamente alguns tipos de pecados, sem ter que  os confessar a um padreco qualquer.

Dentre os pecados incluídos no certificado (e aí eu desconfio que houve falcatrua, pois só era mostrada uma cópia heliográfica do certificado… o original o proprietário dizia que o mantinha em um cofre secreto), estava a dispensa da danação eterna se o proprietário do tal certificado emitido pelo Vaticano de Roma morresse, por exemplo, de repente… na zona.

Já no fim dos anos 1950, o bispo da diocese que englobava a localidade de Anus Mundi anunciou uma visita pastoral, um evento de importância monumental para a comunidade anusmundense.

Não há como descrever os preparativos dos moradores para a chegada do bispo, e até pessoas que já tinham deixado Anus Mundi para ir morar em Fortaleza, em São Luis e em Teresina (diziam que havia anusmundense até em São Paulo) vieram para prestigiar a visita do bispo.

Dentre os anusmundenses notáveis, veio o brilhante advogado que foi estudar em Teresina nos anos 1940 (já lidava em Teresina com uma bem conceituada banca), o proprietário da indulgencia papal.

Para não esticar muito a estória, vou rápido aos finalmente.

Na véspera da chegada do bispo, um vereador local muito querido teve o azar de morrer na zona…. e a notícia logo chegou aos ouvidos do bispo, assim que colocou os pés em Anus Mundi.

A pena para a alma do querido e azarado vereador era excomunhão seguida de danação eterna, não havia dúvidas.

Foi aí que o brilhante advogado anusmundense, o criador da idéia que gerou depois a tese da relatividade do caminho da bala diante de um espelho, resolveu oferecer alugar (vender? só por uma fortuna incomensurável) o seu papel de indulgência papal “até para morte na zona”, para que o documento fosse recopiado com o nome do recém falecido político, e apresentado ao bispo para que se conseguisse o perdão para a alma do querido vereador “Zé das Nêgas”.

Iniciada a coleta de donativos para a aquisição “da cópia da cópia” do documento papal, acertou-se com o bispo que “Zé das Negas” não iria para o inferno, mas que a igreja ficaria com todo o dinheiro coletado para alugar e fazer uma cópia do certificado de indulgência para “morte na zona”.

Foi a única vez que eu soube que um advogado esperto não conseguiu fechar um negócio com um cliente “realmente em desespero”; o advogado chefe da banca do concorrente era simplesmente um delegado oficial comissionado de Deus na terra.

7 Comments

  1. Davi

    Muito boa crônica. Por essa e por outros comentários já postados aqui, percebe-se que este Sidarta é um gozador, sujeito que possui uma ironia muito fina, muito engraçado.

  2. Davi

    Interessante é que esse povo de “anus mundi” a essa época ainda estava comprando indulgências…

  3. andrei barros correia

    Pois é, achei o contista ou cronista refinado na ecrita e na ironia.

  4. André Raboni

    hahahahahaha
    Pense num cabra danado de bom na caneta-teclado!
    Muito bom!
    Sidarta, você deveria escrever mais.
    Tenho certeza que você deve de ter estórias fantásticas guardadas aí nessa cachola – e seria um deleite sabê-las.

    Grande abraço!

  5. André Raboni

    Tomei a liberdade de reproduzir o escrito no meu humilde Desterritório.

    http://desterritorio.blogspot.com/2010/12/morte-na-zona-danacao-eterna-e.html

    Sensacionais, a estória e o estilo de Sidarta!

  6. andrei barros correia

    O cara é bom mesmo, André. Estimo que ele escreva e dê a conhecer as estórias que tem na cabeça.

  7. André Raboni

    Eu aguardo ansiosamente por isso, Andrei!
    Abração pra você e loas para o grande contista Sidarta.

    Hoje será um dia cheio de compromissos, passarei o dia na rua. Então, desde já deixo aqui um bom dia!

    Abraço!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *